Lançamento de CD com Estudos Contemporâneos para piano

E mar vai em voo aberto
já pássaro aventureiro para as descobertas.
Maria Isabel Oswald Monteiro

Em 1985 dei início a um projeto de Estudos para piano que deveria estar concluído em 2015, fato que realmente ocorreu. Trinta anos de prazo!!! Conhecer o longo caminho e apreender uma panorâmica do gênero nessa tumultuada fronteira entre dois séculos. A finalidade era precisa, entender a evolução técnico-pianística e a criação de compositores contemporâneos a respeito desse gênero tão específico que corroborou a glória de Chopin, Liszt, Scriabine, Rachmaninov, Debussy e outros.

Vários compositores de mérito foram convidados para a feitura de Estudos. Recebi cerca de 80 Estudos ao longo de 30 anos, vindos da Europa, das Américas e do Extremo-Oriente. Inicialmente gravei Estudos Históricos, as integrais dos Estudos de Scriabine e Debussy, pois as composições do gênero criadas por Chopin e Liszt foram profusamente gravadas nessas últimas décadas. Mais tarde gravei CD com Estudos de dez destacados compositores belgas que criaram para o projeto, assim como outro CD unicamente dedicado aos Estudos brasileiros de concerto idealizados para a coletânea, exceção aos Seis “Estudos Transcendentais”, de Francisco Mignone, que datam de 1931.

O presente CD de Estudos Contemporâneos (France, ESOLEM, 2017) contém criações de quatro compositores notáveis. São eles o búlgaro Gheorghi Arnaoudov (1947- ), os portugueses Eurico Carrapatoso (1962- ) e Jorge Peixinho (1940-1995) e o francês François Servenière (1961- ). A escolha desses Estudos residiria no fato de estarmos diante de quatro linguagens absolutamente distintas. Sob outra égide, fazem jus ao título do CD, “Éthers de l’Infini”, pela carga de energia cósmica e até sagrada que poderia perfeitamente ser atribuída às obras. A gravação foi realizada na capela de Saint-Hilarius em Mullem, na Bélgica flamenga. Desde 1999 minhas gravações têm sido realizadas nessa capela, sob os cuidados precisos de Johan Kennivé, excepcional engenheiro de som.

François Servenière escreveu sete “Études Cosmiques” inspirados na série de acrílicos sobre tela do imenso pintor Luca Vitali (1940-2013). O compositor explora  muitos processos consagrados na literatura técnico-pianística, legando contudo suas impressões digitais em cada Estudo. Tem-se, portanto, a virtuosidade envolvida por um sedutor senso da cor. A linguagem musical de Servenière está sempre a serviço da música, jamais a buscar a virtuosidade pela virtuosidade, que revela tantas vezes o vazio de ideias. Servenière fala direto ao coração e os sete “Études Cosmiques”, tão diversos em suas construções, traduzem o grande piano. Que ele ama Fauré, Debussy e Ravel é inquestionável. Não obstante, Servenière ama o jazz e os ritmos sedutores d’além mar. Ele observa que, devido às condições particulares do instrumento piano, “há parâmetro importante a ser dominado pelo intérprete, a fim de projetar o ambiente e a cor sonora dos ‘Études Cosmiques’ nessa acústica ou dimensão espacial — ou aquática —, como se os sons estivessem sendo lançados, sem retorno possível, no Universo… Toda a música e os segmentos estão intimamente ligados às fortes impressões iniciais sentidas após descoberta, análise e pesquisa das obras ‘abstratas’ de Luca Vitali. A exegese musical atém-se logicamente à do espaço e suas decorrências”. A morte súbita de Luca Vitali provocou forte emoção para ambos, compositor e intérprete. Alguns dias antes do falecimento, Luca Vitali (1940-2013) acabava seu último quadro da ‘Série Cosmique’, acrílico sobre tela, que ele denomina ‘Outono Cósmico’ e dedica a François Servenière, que escreveria composição in memoriam do pintor. O magnífico conjunto de sete ‘Études Cosmiques’, com ‘Outono Cósmico’, deve enriquecer doravante o grande repertório dos Estudos de Concerto para piano.

Clique para ouvir o primeiro Estudo Cósmico de François Servenière, Borboletas de Luz

Eurico Carrapatoso compôs uma “Missa sem Palavras” (cinco estudos litúrgicos). A obra, polifônica e plena de domínio escritural, encanta pela beleza de suas linhas e oferece ao intérprete a possibilidade de uma visita ao de profundis da sensibilidade. Carrapatoso nos conduz à senda que leva à descoberta de um devir pleno de paz. Revela: “Na ‘Missa sem Palavras’ o conceito de estudo está longe da asserção convencional da palavra, tão frequentemente associada à expansão do termo, tantas vezes associada à extroversão do elemento virtuosístico ou à exploração de determinados domínios técnicos de um dado instrumento. Trata-se, antes, de uma viagem pelo mundo interior, introspectiva, ao sabor das inflexões produzidas pela leitura de um texto expresso na partitura. Este texto sacro refulge no fragor bronzino do latim. Escrito na partitura, faz dela parte intrínseca. Mas não será verbalizado, no sopro da voz. Está lá para dele ser feita uma leitura íntima, secreta. O intérprete cantará os mistérios do texto canônico através dos seus dedos e não da sua voz. Os dedos serão como os de Pepino, o Breve, rei dos franceses: taumatúrgicos, operando prodígios pelo toque. Penso, por isso, que estão reunidas as condições para se lhe poder chamar ‘Estudos’, não tanto pelo desafio técnico, que sempre esteve, aliás, muito longe de ser a minha intenção, mas pelo desafio místico, dado todo o universo metalinguístico que lhe subjaz”.

Clique para ouvir Gloria da Missa sem palavras de Eurico Carrapatoso

O compositor Gheorghi Arnaoudov é um dos mais importantes da Bulgária. Sua linguagem, livre de uma estética, traça um percurso criativo pleno de originalidade. É evidente em sua música a busca de um som puro que se propaga em ressonâncias refinadas, mercê de todo um cuidado com a pedalização, a possibilitar a permanência sonora até a extinção completa. Após recital em Sofia no ano de 1996, convidei Arnaoudov para enriquecer a coletânea de Estudos. O magnífico “Et Iterum Venturus (Ele voltará na glória), título que faz alusão ao Credo da liturgia cristã, explora os timbres do piano e a dinâmica em seus limites extremos. Estudo que valoriza os longos silêncios nascidos após a extinção absoluta das sonoridades e a preceder a continuação do discurso musical. A riqueza de “Et Iterum Venturus” está construída paradoxalmente a partir de motivos aparentemente simples que se transformam, baseados sobre fundamentais  onde preponderam o  intervalo de quinta e também sua inversão, consubstanciando papel relevante para essa viagem do ppp ao fff, pois “Ele voltará na glória”.

O “Étude V Die Reihe-Courante”, do compositor português Jorge Peixinho, foi composto três anos antes de sua morte. Era bom pianista e tocava com facilidade o repertório português de seu tempo. Nós dois realizamos uma turnê pelo Brasil em 1994, apresentando unicamente repertório português. Segundo o compositor, herdeiro de tantos processos de linguagem que ele captou durante sua estada em Darmstadt, sua música segue caminho natural. Cada obra tem ligações de parentesco com criações anteriores e, por consequência, com as que deverão ser compostas. O ‘Étude V’ apresenta uma série de fórmulas familiares na produção de Peixinho. Diria que todo um acervo técnico-pianístico, apreendido do repertório de três séculos, sofre metamorfoses. Sabe-se a origem dos procedimentos, mas estes sofrem processos de recriação. Sob aspecto outro, a presença soberana da série (Die Reihe), razão primordial da obra, apreende a concepção advinda de Arnold Schoenberg (série-tema), como a de Anton Webern (princípio estrutural). Observa o compositor: “Não se trata de uma obra serial! O ‘Étude V pretende ser uma reflexão sobre o profundo significado histórico e mítico da série, a série reificada e simbólica; uma visão crítica de seus pressupostos teóricos e filosóficos e, ao mesmo tempo, uma homenagem (comovida) ao seu papel histórico propulsor da modernidade neste vertiginoso caminhar da música no século XX”.

O conjunto de Estudos do presente CD é de riqueza singular, pois composto por grandes compositores contemporâneos que apresentam distintas propostas, mas os quatro igualmente pensadores da música. A escolha do repertório foi, portanto, intencional, o mais premeditado dos quatro CDs de Estudos que gravei anteriormente. O gênero Estudo deverá ainda, durante decênios, surpreender compositores, intérpretes e também o público. O piano agradece essas obras desafiadoras, nesse gênero propenso tantas vezes à aventura musical em seus limites extremos de execução.

This post addresses the launching of my new album “Éthers de l’Infiniti”(France, ESOLEM, 2017) on 27 April in Gent, Belgium, with works by four outstanding composers: the Bulgarian Gheorghi Arnaoudov (1947- ), the Portuguese Eurico Carrapatoso (1962- ) and his compatriot Jorge Peixinho (1940-1995) and the French François Servenière (1961- ). It is a singular set of Etudes, since it consists of great contemporary composers with different proposals, but all of them music researchers. The choice of repertoire was thus intentional. The piano appreciates such challenging contributions to a genre prone – at its extreme limits – to musical adventures that just reveal a void of ideas.