O compositor frente ao desafio musical permanente
Musica movet affectus, provocat in diversum habitus sensus.
(A Música desperta afetos e provoca diversos sentimentos e atitudes)
Santo Isidoro de Sevilha
(560-636)
O blog anterior suscitou por parte dos leitores-ouvintes uma série de considerações. A escuta dos “Études Cosmiques” para piano de François Servenière, obra inspirada nas telas do saudoso amigo e pintor de tantos méritos Luca Vitali, fez com que, independentemente das opiniões concordantes a respeito da qualidade da coletânea, a tão decantada “emoção” viesse à tona.
Um dos temas que serviu para discussões acaloradas ao longo dos séculos, mormente a partir da segunda metade do século XIX, foi o que se refere à música como possibilitadora da transmissão de sentimentos. Mencionei Jean-Philippe Rameau no blog precedente, que afirmaria que “a música é a linguagem do coração”. Eduard Hanslick (1825-1904), escritor e crítico musical austríaco, mas nascido na Boêmia, foi um dos mais influentes críticos do século XIX e defensor ferrenho da denominada “música pura”, em detrimento da música direcionada aos sentimentos, ao programático ou mesmo ao descritivo, a primeira a ter seu amigo Brahms como exemplo e, para a segunda, mais acentuadamente Liszt, Berlioz, Wagner, Bruchner… Hanslick afirmaria em sua obra capital datada de 1854, “Vom musikalisch-Schonen” (“O Belo Musical”), que “o efeito da música sobre o sentimento não possui nem a necessidade, nem a exclusividade, nem a continuidade que um fenômeno deveria apresentar para poder estabelecer um princípio estético”. Paradoxalmente, Hanslick, a partir de seu “formalismo”, pode ser entendido como um dos pioneiros dos conceitos abstratos que levariam a determinadas tendências que, oriundas das primeiras décadas do século XX, hoje são bem diversificadas e mutantes.
Após tecer considerações sobre as propostas composicionais de Servenière em sua produção, focalizando, no caso, os sete “Études Cosmiques” + “Outono Cósmico” para piano, acrescentaria que, durante sua formação, transitou por várias tendências. Recebi do autor dos Estudos comentários sobre o blog anterior. Antes de traduzir sua mensagem, transmitirei ao leitor a posição do compositor francês Serge Nigg (1924-2008), primeiro a compor obra dodecafônica em França e admirado no período. Tendo abandonado tendência “cultuada” e vigente no país, escreve: “desgraça ao músico que não sentiu a necessidade de aderir aos princípios da escritura serial dodecafônica; taxado por sua inutilidade, era ele condenado ao silêncio ou à execração pública. O mais extraordinário é que tínhamos a certeza de estar agindo em nome de uma liberdade a ser ganha. Vivíamos a ilusão de formar a elite musical de nosso tempo. Daí pois, se o povo não estivesse contente com a sua elite, era simples, mudar-se-ia o povo” (“Serge Nigg, compositeur”, série Temoignages, nº 3, Université Paris-Sorbonne, OMF, 2010).
De maneira franca, Servenière abre-se na mensagem enviada. Sabe também dos percalços que passou e continua a sofrer, mas é cônscio do valor de sua obra. Tem interesse a autoavaliação de um compositor. Muitos a fizeram. A revelação implica o desvelamento de tantos anseios guardados secretamente. Nesse espaço, não poucas vezes comentei a qualidade do compositor francês, mormente na área que me é mais afeita, a pianística, considerando a qualidade inquestionável de sua escrita transparente, hodierna e inovadora, mercê de acervo conquistado no labor de décadas. Escreve Servenière:
“Não esperava tamanho elogio de sua parte. Agradeço-lhe o post bem pensado a respeito de meu labor como compositor. As pinturas de nosso saudoso amigo Luca Vitali estão muito bem apresentadas. Fico feliz ao lê-lo comentar que minha escrita pianística é referência para nossa época, seguindo a tradição do piano que foi edificada por pianistas e para as mãos de pianistas. Faço-lhe uma confidência. Em nenhum momento, durante a escrita dos “Études Cosmiques”, atentei para a compatibilidade do que estava a brotar com a física de minhas mãos. Meu cérebro de músico foi calibrado para essa maneira de compor, a pressupor, em vários momentos, a plena abertura das mãos. Seus comentários são pertinentes.
No que concerne à minha carreira, sou consciente do que realizo e de ter escolhido um caminho menos visível, comparado ao de tantos confrades que estão sempre buscando os holofotes e o ouro advindo da divulgação, não apenas na criação da música contemporânea como na voltada à música ligeira. Sou consciente igualmente de que minha obra, completamente diferenciada daquela solicitada ainda hoje aos compositores ditos acadêmicos, permite-se ser original, apesar de, paradoxalmente, estar ligada à filiação do passado. Portanto, não compreendo a atitude do criador musical, como o exemplo que você rememora ao tratar do encontro com o compositor inglês, premiado em concurso de composição, que negligenciou completamente a filiação com o passado, criando, na realidade, uma obra impossível de ser tocada!!! E de pensar que todo o caminhar da música pela história, monodia, polifonia, harmonia e seus desdobramentos, até processos mais enxutos como o minimalismo, têm origem!!! Se recusarmos a gênese – mencionemos Pitágoras -, por que não recusar o fogo, a roda, a pólvora e toda a civilização a que pertencemos?
Breve, se bem que isolado em minha época, afastei-me da música contemporânea francesa ligada às Instituições proclamadas, pela qual tinha absoluta idiossincrasia, retomando os caminhos do passado (século XIX até 1950), continuando a trilhar o meu, a buscar aumentar as conquistas do século XX, ampliando-as através de projetos inusitados no senso literal do termo (ainda não apresentados ao público). Isso se apresenta em minha obra orquestral, sobretudo aquelas após o início deste século. Entre meus eleitos do século passado mencionaria Ravel, Stravinsky, Debussy, Prokofiev, Scriabine, Dutilleux. Sinto-me continuador das conquistas deste último. Todavia, não sou tão ousado como Dutilleux, pois não sou uma criança que passou pelas guerras, sendo que minha obra está mais voltada à empatia harmônica com os humanos e sua escuta agredida pelo mundo atual. Buscarei criar obras mais voltadas ao belo e menos ao horror, incluindo denúncias à barbárie, etc. Tecnicamente eu me sinto próximo dessa maturidade de escrita. Tudo o que escrevo para orquestra a partir de agora inscreve-se nessa linha, não ao nível da harmonia, para mim mais clássica, mais jazística, mais sincera, diria, mais temática e menos pasteurizada. Sob o prisma da construção mental, encontro-me nessa clareza bem francesa. As minhas obras precedentes, aquelas de antes da entrada do novo século, eram obras da juventude, fundamentos essenciais para as criações da maturidade.
Sob outra égide, seu texto me fez refletir sobre minha carreira, pois preciso policiar-me para não ser um compositor exclusivamente ‘para piano’. Mercê de minha formação bem acadêmica sou vocacionado para orquestra. Tenho um espírito profundamente polifônico, o amálgama com a harmonia é o meu hobby. O piano é o instrumento rei, o meu, adorando-o mais do que todos, tornando-se pois a alavanca essencial de minha inspiração. Não obstante, não tenho nenhuma vocação intimista em minha arte. Confesso-lhe que também não sou vocacionado para a música de câmara. Dedico-me, sim, a compor para orquestra, desde a juventude. É certo que a composição para orquestra custa muito mais com vias à produção e à consequente apresentação. É minha armadilha atual, pois há a necessidade da notoriedade para que criações orquestrais sejam difundidas. Não tenho Conservatórios à minha disposição, nem contrato de residência junto às orquestras, consequentemente torna-se imperioso buscar novos caminhos para começar essa nova fase de minha vida de músico, a última.
O seu blog, incrivelmente ditirâmbico, sobre os ‘Études Cosmiques’, levou-me à reflexão profunda durante umas boas horas, pois a minha verdadeira vocação estaria colocada ultimamente um pouco de lado, graças ao acúmulo de outras obrigações criativas e materiais dos últimos anos. Todas essas obrigações conduzem-nos a repensar nós mesmos, nossas aspirações, nosso de profundis que a modernidade com suas atribulações, leva-nos a deixar em segundo plano. Todas as problemáticas recaem sobre pais criativos e artistas, e essas se concentram em nossos caminhos tão particulares. Obrigam-nos a nos colocar sempre em questão de maneira permanente, permitindo-nos fixar limites, encruzilhadas, caminhos a apreender, aspirações que remontam à infância na lista de nossas prioridades. A vida é curta e passa diante de nós numa velocidade infernal. O fato de ter-me tornado avô amplifica essa tomada de consciência. O que pode se passar no seu espírito, meu caro amigo, ao ter-se tornado bisavô?”. Tradução: JEM.
Fica o registro sincero e raro de um músico pelo qual tenho a maior admiração não apenas como grande músico que é, mas também como pensador de respeito e figura humana ímpar.
In an almost confessional tone, the French composer François Servanière talks about his career, his penchant for writing orchestral music, the value of his work and the awareness that all choices must be paid for. A sincere and rare account of professional achievements made by a great composer, intellectual and human figure whom I greatly admire.
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