Duas Entrevistas que resistiram ao tempo

Compreender a música
não é advinhar a história que ela conta ou o enigma de seu título.
Compreender a música
não é apreender o motivo secreto de sua inspiração.
A música não se explica que através dela mesma.
Roland-Manuel
(“Plaisir de la Musique”)

Competência gera competência e o que dela emana dificilmente tem prazo de validade. A releitura, após quase 60 anos, de “Plaisir de la Musique” fez-me revisitar duas entrevistas concedidas pelos insignes compositores Henri Dutilleux (1916-2013) e Arthur Honegger (1892-1955) ao programa radiofônico parisiense conduzido pelo notável professor de Estética Musical, compositor e crítico musical Roland-Manuel (1891-1966), do Conservatório de Paris (1947-1961), sempre acompanhado pela pianista Nadia Triguine (1917-2003).

Nas entrevistas que trataram das formas musicais, uma foi dedicada à fuga, uma das mais herméticas da criação musical. Convidado, Henri Dutilleux tratou da temática de maneira bem clara, tornando-a palatável ao grande público.

Fuga é termo de origem latina. Palavra apropriada, pois fundamenta-se na imitação. As várias vozes vão se sucedendo em alturas diferentes nessa constante imitação, uma após a outra, como se cada voz estivesse a fugir da que a precede. Se pensarmos em forma bem simples temos o cânone, e um exemplo que todo leigo conhece, a célebre canção francesa “Frère Jacques”, é típica. Contudo, a construção de uma fuga é bem mais sofisticada, e requer, por parte daquele que compõe, maestria na feitura. Todavia fugas há que mereceram ser esquecidas, pois meramente deveres escolares, necessários, frise-se.

Mencionei, no livro publicado pela Université Paris-Sorbonne (2012), o encontro em Londres com um jovem na idade madura que, ao me oferecer um Estudo para piano para a minha coleção de Estudos (1985-1915) – na realidade impossível de ser executado por qualquer pianista, tais os malabarismos sem razões –, foi por mim questionado sobre se alguma vez compusera uma fuga. Respondeu-me que se tratava de uma forma ultrapassada e que jamais o fizera. Curiosamente Roland-Manuel, indagado por Nadine Triguine, responderia que não conhecia “exercício mais indispensável e mais humilhante para a vaidade de um jovem compositor”. Estou a me lembrar que ao regressar a Paris, após apresentar-me em Lisboa a convite do grande compositor Fernando Lopes-Graça (1959), a um pedido meu a respeito de uma complementação teórica na capital francesa, Lopes-Graça foi incisivo ao indicar-me Louis Saguer (vide blog Louis Saguer  “Em defesa da Música Portuguesa”, 27/06/2009), um músico completo, nascido na Alemanha e naturalizado francês (1907-1991). Ao me apresentar ao mestre disse-lhe que permaneceria ainda uns poucos anos em Paris. Imediatamente completou que, se eu analisasse todas as fugas do “Cravo Bem Temperado”, de J.S.Bach, e alguns tempos de Sonata, dar-se-ia por satisfeito em seu mister. Foi o que aconteceu e esse extraordinário aprendizado serve-me até hoje, passados 60 anos.

A origem da forma fuga antecede largamente J.S.Bach. Contudo, deve-se ao imenso Bach magnificar a forma ao compor o “Cravo bem Temperado”, constituído de dois cadernos de 24 Prelúdios e Fugas cada (1722 e 1744, respectivamente). Não há na coletânea, constituída por fugas de duas a cinco vozes, duas fugas com a mesma organização. Se Bach realizou essa obra hercúlea, a equacionar a problemática da afinação do cravo – dogma durante o período -, conferindo às notas enarmônicas (dó sustenido e ré bemol) a mesma afinação, fato não contemplado anteriormente, legaria ao mundo a suprema feitura da forma fuga, jamais ultrapassada. Praticada esparsamente por compositores da dimensão de Mozart, Beethoven, Liszt, César Frank, o “Cravo bem Temperado” corresponderia certamente à criação mais estudada do gênero por cravistas e pianistas através dos tempos.

Henri Dutilleux, em sua explanação, pormenoriza com a proverbial clareza, a clarté tão profundamente enraizada na cultura da França, toda a constituição formal da fuga. Expô-la ultrapassaria o propósito deste blog, infelizmente.  A uma posterior observação de Roland-Manuel, a dizer que quase não mais se escreve fuga, mas que o estilo fugato (uma das formas da “família”) tantas vezes está presente nos desenvolvimentos das composições sinfônicas e líricas, Dutilleux conclui: “quando um compositor ataca uma fuga durante o desenvolvimento em uma obra, é por estar no seu limite… A fuga é sem dúvida a base de toda a composição, mas atualmente (década de 1940, diga-se) ela perdeu esse atrativo, que, aliás, encontra-se na Suíte ou na Sonata, como exemplos”. Ao mencionar fugas mais recentes, cita “o final do concerto para dois pianos de Stravinsky, obra puramente cerebral, ou então a fuga do ‘Tombeau de Couperin’, de Ravel”. Apesar de indispensável nos bancos escolares, finaliza Dutilleux: “queiramos ou não, a forma está atualmente descartada; tratá-la novamente é entrar na senda do neo-classicismo, o que certamente se torna o pior dos males, não sendo mais um fim em si, mais um meio”. Roland-Manuel, tendo anteriormente inserido opinião corrente, que circulou desde o romantismo em expressões atribuídas a Beethoven, Schumann e outros, que consideravam o “Cravo bem Temperado” como o pão cotidiano de todos os pianistas, coloca ponto final ao debate, “Amém”. Considere-se que, se para o estudo da composição a fuga enriquece a experiência do jovem compositor – “exercício mais indispensável e mais humilhante para a vaidade de um jovem compositor”, reprisando Roland-Manuel -, para o pianista o estudo do “Cravo bem Temperado” apresenta-se ainda como rigorosamente essencial, pois possibilita ao intérprete a total independência sonora propiciada pelo caminhar das várias vozes inerentes à forma, aperfeiçoando o emprego do peso digital diferenciado para cada voz e a propiciar a abertura para tantas outras formas. Desconhecer a monumental obra de J.S.Bach terá consequências futuras em uma formação musical.

Arthur Honegger foi um dos convidados para debater tema concernente a Beethoven. Roland-Manuel é claro: “Convidei-o, pois é um músico insuspeitável por suas posições não dóceis em relação aos românticos, embora estes lhe tenham servido de inspiração, mas ninguém melhor do que ele tem horror desse bazar heteróclito e lunático, onde a música vive de palavras e de imagens absurdas”. Honegger inicia: “O desenvolvimento dessa literatura parasita me consterna. Não é fato extraordinário que a iconografia fez mais pela celebridade de Beethoven do que toda a sua música? Sua figura, interpretada e deformada pelo cinzel de gravadores, pincel dos pintores e formão dos escultores, tornou-se a verdadeira imagem do Artista. Poderíamos dizer que Beethoven divide com Dante, que ninguém mais lê, mas cujo busto a burguesia mundial conserva, o privilégio de representar o gênio sob a forma amarga e atormentada”.

A respeito do repertório, Honegger observa a preferência dos pianistas pelas Sonatas precedidas de titulações póstumas: “Por que Sonatas ao Luar, Patética, Aurora, Primavera?” Acrescentaria a Appassionata, exaustivamente apresentada. Não seria ratificação ser a Sonata op. 31 nº 2, Tempestade, muito mais frequentada pelos pianistas em detrimento das op. 31 nºs 1 e 3? Pessoalmente prefiro a op. 31 nº 3 em quatro movimentos, de notável equilíbrio. Honegger, ao falar sobre a Nona Sinfonia, comenta: “Vou escandalizá-los, mas encontro maior grandeza e importância no Quarteto em dó sustenido. Sei que para o público a grandiosidade da Nona Sinfonia advém de seu aparato sonoro, daí sua notoriedade… Beethoven apelou às massas corais, que cantam as palavras de Schiller – Ode à Alegria. Como a Nona Sinfonia é quase que inteiramente consagrada às formas da música pura, o ouvinte tem a necessidade de se explicar a si mesmo, ao inventar um senso, acrescentado um programa”. O compositor nascido em França, mas de nacionalidade suíça, faz a comparação entre a Quinta Sinfonia e a abertura Coriolano “que não deve nada à intensidade dramática do alegro da Quinta. Contudo, Coriolano não dá lugar a nenhuma divagação. Não se pode inventar o drama, pois ele lá está. Não obstante, a Quinta, Sinfonia do Destino, é aquela na qual no início bate-se quatro vezes à porta…” Honegger afirma a seguir que não se pode falar de Beethoven sem pensar na linguagem de seus ascendentes, Haydn e Mozart, e que “a surdez atroz que se instalaria paulatinamente antes dos trinta anos foi algo providencial para seu gênio, pois o separou do mundo exterior, permitindo-lhe trabalhar o seu próprio interior, o que o fez conceber o que jamais teria feito se sua audição não tivesse sido murada precocemente, protegida pois contra o afluxo do mundo exterior”. Roland-Manuel acrescenta que o sobrinho de Beethoven já escrevera sobre essa proteção, mercê da perda da audição.

No diálogo entre os dois ilustres músicos, discutiu-se classicismo e romantismo na obra de Beethoven e essas “divergências” enriquecem o conhecimento interpretativo. Depois de uma afirmação de Roland-Manuel, a dizer que “Beethoven é romântico de temperamento, mas profundamente clássico de tendência, conservando tanto que possível as formas e as tradições do estilo clássico”, ouve de Honegger: “Torna-se necessário nos desembaraçarmos das imagens trágicas de Beethoven teatral e maldito, popularizado pela imagem. No meu ponto de vista, Beethoven é um clássico que infringe as formas regulares, sem cessar de lhes ser fiel. Sua música não tende senão a prolongar o reino do classicismo e de suas convenções. Não seria pois um romântico voluntário”. Roland-Manuel retruca, a dizer que “Beethoven é romântico por temperamento, pois sua música ressoa, talvez contra sua vontade, o conflito do indivíduo em luta com seu destino, que na realidade é conflito romântico por excelência. É nesse sentido que os românticos puros, como Schumann, Berlioz, Liszt e Wagner, adotaram-no e o admiraram”. Honegger ainda observaria que “Beethoven não encarna o romantismo, mas introduz o clima romântico na música”, recebendo de Roland-Manuel as considerações finais sobre a temática a envolver o romantismo no compositor alemão, que teria influência decisiva em França e fora dela. Com  Beethoven, conclui, “a música cessou de ser ciência para tornar-se consciência”.

Ao leitor diria que os volumes de “Plaisir de la Musique”, que avidamente li no final dos anos 1950, hoje dimensionam-se distintamente. O acúmulo das décadas acentua interpretações diferenciadas de um texto. Fico a pensar. A complexidade voluntária dos discursos apresentados na Academia, a envolver temas que poderiam ser expostos com maior clareza, tem-se intensificado, mormente após o crescente aperfeiçoamento de apresentações em power point. Já observei no longínquo 2009, sob outra égide, que a “hermenêutica”, a substituir a palavra interpretação, termo este transparente, poderia ser sintoma do vazio de ideias. Estou a me lembrar de  ter participado de Congresso sobre Música em uma das universidades federais no país na década de 1990. Na minha apresentação “ousei” pronunciar palavras como evolução e povos primitivos, tendo imediatamente recebido críticas vociferadas por parte de antropólogos, que contestei no ato, mencionando a seguir livros publicados no Exterior em que esses termos eram aplicados exatamente no contexto adequado. Bem teve razão o professor de História da Universidade da Califórnia – Los Angeles (UCLA), Russell Jacoby,  ao escrever The Last Intellectuals (vide blog: “Os últimos intelectuais”, 21/03/2009). Escreve o autor que o pensamento livre, que era exposto na primeira metade do século XX nos Estados Unidos pelos intelectuais especialistas em Sociologia, Filosofia, Artes, Jornalismo, Política Internacional, Economia, permitia-lhes estarem em contato direto com o público, sendo a criatividade fruto da independência do pensar. Sob outro aspecto, reuniam-se em restaurantes, bares, participavam de contatos sociais sem amarras, e a permanente troca de ideias enriquecia o pensamento livre. Havia uma vida boêmia, indispensável ao fluxo do pensamento, que provocaria a permanência na história de tantos brilhantes intelectuais americanos. Russell Jacoby, em seu livro, acredita que a necessidade da sobrevivência, que levou tantos desses intelectuais à Academia, bloquearia o fluxo criativo do pensar, instaurando-se pois o hermetismo das ideias, que leva à consequente ininteligibilidade de tantos textos, dissertações, teses e papers.

Para concluir, diria que “Plaisir de la Musique” tem a riqueza da competência plena externada sem subterfúgios, sem o espírito ex cathedra tão nocivo, a possibilitar o entendimento transparente do pensamento que, na realidade, deveria sempre ser inteligível.

No fluxo dos blogs tenciono por vezes introduzir a consequência de leituras de livros que percorri com imenso prazer tantas décadas passadas, e que presentemente manuseio, mercê da catalogação em curso.

Resuming the post of last week about the book “Plaisir de la Musique”, I present excerpts from the interviews given by composer Henri Dutilleux (1916-2013) commenting on the musical form fugue and composer Arthur Honegger (1892-1955) talking about Beethoven. In both cases, professional competence in clear, low-jargon language, without the needless complexity of academic speech.