Tema sempre recorrente
Do ponto de vista dinâmico,
o conflito central opõe os desejos da vida gloriosa
e os desejos de morte presentes na origem.
André R. Missenard
(“Narcissisme et rupture”)
Quando o tema é a figura do herói, vasta literatura, que perpassa da Grécia Antiga aos tempos modernos, seja em epopeias, romances e narrativas, desperta sucessivamente interesse às gerações durante o passar dos milênios. Quantos não foram os heróis reais ou aqueles vivificados pela mitologia que alimentaram inúmeras vertentes humanísticas? Mitificados, permanecem na história e na imaginação dos homens. Presentes nas artes visuais, na literatura e na música, perduram até os nossos dias, causando admiração e debruçamento voltado às pesquisas sobre a figura do herói. Quanto já não foi escrito, analisado por especialistas, envolvendo-o? O mito do herói sempre existiu e não desaparecerá. Tem-se o modelo, idealiza-se o personagem que poderá servir de exemplo, seja em momento extremo e único que caracteriza a ação imediata de um salvamento, à constância na ação heroica perpetrada através de aventuras voluntárias que o comum dos mortais vê-se impossibilitado de realizar.
Muitos estudos reportam até à gravidez como ato heroico e seguem acompanhando o desenvolvimento da criança, do adolescente em seu caminho à idade adulta. Análises vêm o herói como arquétipo. O leitor interessado encontrará abundante literatura a respeito, mormente a envolver disciplinas como a psicanálise e, em casos específicos, estudos psicobiográficos que levam à compreensão de personagens tidos como heróis nos mais variados campos.
Vem o tema após conversa com o amigo Marcelo, que habitualmente encontro na feira livre de sábado. “Não seriam os tripulantes da expedição Kon-Tiki os verdadeiros super-heróis da modernidade, em detrimento dos famigerados personagens que infestam as criações cinematográficas rendendo somas volumosas?”, perguntou-me Marcelo. Marcamos um curto no domingo à tarde no Natural da Terra e conversamos a respeito.
A edificação do herói pode ser seguida desde o encaminhamento dos pais visando à vida gloriosa dos ungidos, seja em qual área “escolhida”, ou mesmo no ato “voluntário” que contrariaria desejos paternos e se apresentam como opposit às aspirações almejadas por ascendentes. Seria possível entender que, por vezes, embrionariamente uma semente de “heroísmo” exista e que basta um instante do acontecido para que o ato heroico emerja sem sequer resquício de qualquer ação voluntária anterior voltada à figura do herói. Quando recentemente o imigrante malinês Mamoudou Gassama, de apenas 22 anos, escalou com intrepidez absoluta os cinco andares de um prédio na França, agarrando-se como o mais hábil dos símios a grades e beirais de um edifício, a fim de salvar uma criança dependurada numa sacada e que certamente iria cair, tipificou na essência essencial esse ato heroico que provavelmente jamais teria sido por ele imaginado. Incontáveis exemplos acontecem diariamente e heróis anônimos surgem em catástrofes de todos os tipos. Incêndios, tsunamis, terremotos, desabamentos provocam em tantos cidadãos comuns, que nunca pensaram em situações semelhantes, o impulso que leva ao ato heroico.
Quantos não foram os blogs que escrevi sobre Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944), autor que admiro profundamente, tendo como livro de cabeceira seu extraordinário Citadelle. Herói, sobrevoou o Atlântico Sul em um monomotor, a serviço da Aéropostale. Perdeu companheiros e morreria tragicamente no fim da guerra, de maneira misteriosa, com a queda de seu avião não distante de Marselha aos 31 de Julho de 1944, possivelmente abatido por caças alemães. No ano 2000 destroços do avião foram encontrados e livro foi escrito pelo mergulhador Luc Vanrell e o jornalista Jacques Pradel na busca de esclarecer o enigma. Conselhos para que não realizasse a missão de observação a que se propôs não demoveram a obstinação de Saint-Exupéry. O herói em arriscado encontro “voluntário” que o levou à morte. Anteriormente, Jean Mermoz (1901-1936), o extraordinário piloto da Aéropostale, desapareceria no Atlântico Sul em sua 25ª travessia. Henry Guillaumet (1902-1940) estaria presente em um dos livros mais marcantes de Saint-Exupéry, Terre des Hommes, após queda nos Andes em 1930 na sua 92ª travessia sobre a cordilheira, das 393 que realizaria nessa região montanhosa. Caminhou durante sete dias até ser encontrado. Teria dito a Saint-Exupéry: “O que eu fiz, eu te juro, nenhum animal teria feito”. Morreria tragicamente depois de seu avião ter sido abatido por caça italiano sobre o Mediterrâneo. Outros aviadores franceses sucumbiram durante esse período heroico nessa longa viagem da França ao Chile, sempre a serviço.
Quanto a Thor Heyerdahl (1914-2002), entende-se com clareza que a Expedição Kon-Tiki (1947) não foi um capricho (vide blog anterior). A construção do projeto foi longamente arquitetada. Sabia de todos os riscos, mas desafiá-los a fim de provar sua teoria suplantou todas as opiniões, que viam a possibilidade da tragédia na empreitada visando à travessia de 4.300 milhas em precária jangada. Crescia o herói. Todo o esforço preparatório dá a medida da obstinação. Com cinco companheiros chegou a termo numa aventura que ficou consagrada.
Neste espaço já resenhei livros de Sylvain Tesson, que me surpreende sempre, mercê de voluntária necessidade de enfrentar longas marchas a pé através do planeta, não apenas para evidenciar ser possível realizá-las, como no intuito de revelar civilizações outras, possibilidade de sobrevivência em áreas inóspitas ou mesmo denunciar descasos. Passou por perigos que o levariam fatalmente à morte. Num prosaico acidente em Chamonix em 2014, quando “escalava” um prédio de poucos andares, caiu, entrou em coma e subsistiu com graves sequelas que persistem. Parcialmente recuperado, continua com suas aventuras. Teria declarado, logo após sair do hospital, que acredita que irá morrer de maneira violenta. O herói a cumprir sua trajetória.
Esse breve relato sobre alguns heróis modernos tem origem também em minha infância. Aos dez anos de idade, li com avidez “Os Doze Trabalhos de Hércules”, de Monteiro Lobato. Aqueles feitos heroicos encantaram a criança que eu fui e na adolescência e juventude, entre as muitas leituras, as façanhas de personagens intrépidos ficaram na memória. Só para citar três que abordam figuras que permaneceram na história e no imaginário, mencionaria “Haníbal”, de Mirko Jelusich (Porto Alegre, Globo, 1942), “A Conquista da Terra”, de Wilhelm Treue (Rio de Janeiro, Globo, 1945) e “A Vida de Nun’Álvares”, de Oliveira Martins (Lisboa, Parceria António Maria Pereira, 1944). Aos oitenta anos ainda tenho prazer de ler determinadas aventuras ou feitos que foram vencidos ou tragicamente abortados. Afinidades temáticas fincam raízes e essas só se aprofundam. Parece-me um bom sinal.
This post is a brief consideration about a few modern heroes and their outstanding feats, impossible to be achieved by common mortals. They are: Saint-Exupéry, Jean Mermoz, Henry Guillaumet, Thor Heyerdahl and Sylvain Tesson.