Navegando Posts publicados em novembro, 2018

Depoimentos enriquecedores

Les oiseaux sont des artistes
bien plus grands que nous, les humains.
Olivier Messiaen

Neste terceiro e derradeiro post sobre “Messiaen – l’empreinte d’un géant” apresento os últimos depoimentos constantes do livro da pianista e escritora Cathérine Lechner-Reydellet. Ratifico que entrevistas e depoimentos de coetâneos, que conviveram ou foram alunos de Messiaen, apreendem o cotidiano musical participativo, fator a corroborar a edificação futura de outras biografias sobre o compositor francês, que certamente virão a público.

Do jornalista, crítico musical e produtor respeitado Claude Samuel há preciosa entrevista conduzida por Catherine Lechner-Reydellet. Retirei posição personalíssima sobre o cidadão Messiaen, que bem se assemelha àquilo que o compositor russo Alexandre Scriabine (1872-1915) confessava em seus “Carnets inédits” sobre o grande EU (ao compor) e o pequeno eu (o cotidiano). Claude Samuel se expressa: “Messiaen era desconfiado, ingênuo, atento e concentrado, sentindo-se envergonhado quando diante de problemas da vida cotidiana, pois incapaz de resolvê-los; estava sempre distante, no seu mundo fora do tempo e fora do espaço reparável”.

O caso da compositora, pianista e pedagoga Odette Gartenlaub (1922-2014) é sui generis. Pianista, aluna da legendária Marguerite Long, entre outros insignes pianistas-professores, obtém o primeiro prêmio por unanimidade no Conservatório Superior de Música de Paris e é laureada no Concurso Internacional Gabriel Fauré. Estudou composição com mestres respeitados em França e em 1948 obtém o Primeiro Grande Prêmio de Roma de composição, atribuído pelo Conservatório. A láurea a faz estagiar três anos na famosa Villa Médicis em Roma. Importa considerar que, por ser de ascendência judaica, foi “cassada” do Conservatório através de vexatória carta do então Diretor, Claude Delvincourt, seguindo instruções do Ministro da Educação Nacional, que rezava: “é conveniente não manter ou admitir no Conservatório nenhum aluno judeu” (25/07/1942). Faz-se necessário mencionar o fato, pois Gartenlaub passaria anos difíceis, “excluída do Conservatório e impossibilitada de prosseguir seu caminho”, como afirma Lechner-Reydellet. Correndo riscos, Olivier Messiaen escreve-lhe quatro cartas, de 16 de Setembro de 1944 a 13 de Janeiro de 1945, para que retorne aos estudos. Odette Gartenlaub não responde devido “aos anos de sofrimento que deixaram uma incomunicável dor, um sentimento de abandono”, como afirma a autora.

Michel Fano, engenheiro de som, compositor e realizador, foi aluno de Messiaen em sua classe de estética e de análise musical no Conservatório de Paris entre 1950 e 1952. Em 1972 realizou com Denise Tual um documentário sobre o compositor: Messiaen et les oiseaux. Fano afirma que o filme é mais do que um documentário. “Buscamos reencontrar um ‘Messiaen’ ao longo de sua vida com suas diferentes fontes de inspiração”.

Do regente, compositor e pedagogo Jean-Sébastien Béreau, atente-se a uma observação sutil. Ensaiava Oiseaux Exotiques quando foi interrompido por Messiaen, que observou: “Está muito rápido”. Volta a ensaiar e Messiaen ainda considerou rápido. Béreau dirige-se ao compositor, a observar que estava a seguir suas indicações escritas na partitura, recebendo a seguinte resposta: “Os movimentos metronômicos são apenas uma indicação, jamais uma obrigação! Tem-se de considerar o lugar, a acústica, os músicos. Aqui, neste lugar, está muito rápido”.

Bruno Ducol, compositor, sente o legado do Mestre em suas criações musicais, que exploram lugares distantes: “Voltando hoje sobre os passos de minha geografia pessoal, constato em seus planos inúmeros segmentos que recortam, independentemente das correntes artísticas, as perspectivas de Messiaen”.

O aluno Iradj Sahbaï, prêmio de composição em 1975 na classe de Messiaen, expõe minucioso e substancioso estudo a explicar “A  métrica grega segundo Messiaen” e “A rítmica hindu segundo Messiaen”, dois importantes contributos entre os depoimentos. Em outro capítulo do livro, Iradj Sahbaï, músico francês de origem persa, há o comentário de fato real que obliterou durante décadas outras tendências composicionais em França, mormente em Paris, e que, hélas, perdura: “a busca a todo preço do jamais ouvido ou escrito dominava a atmosfera musical da época e, inexperiente, mas de maneira sincera, eu seguia o fluxo da moda, frequentava todos os Festivais de música contemporânea, cujo lema era uma prioridade básica: fazer tábula rasa do passado”.

Camille Roy, aluno de Messiaen no Conservatório de Paris, obteve em 1961 um Primeiro Prêmio de análise musical. Produtor e Diretor de várias instituições, afirma: “Messiaen foi descobridor de talentos, mas um inquieto, não um doutrinador. A mais bela prova da incrível fecundidade desse ensinamento é, talvez, a obra de Gérad Grisey, que podemos considerar como o moderno continuador de Jean-Philippe Rameau…”.

Adrianne Clostre (1921-2006), compositora de mérito, frequentou de 1947 a 1950 o curso de estética e análise musical de Olivier Messiaen no Conservatório de Paris. Em conferência aos 10 de Dezembro de 2002 na Universidade Sorbonne Paris IV, Adrianne Clostre faz relevante observação: “A paixão de Messiaen pelos pássaros! Tinha orgulho de seu saber e do título de ornitólogo, que teve origem em sua espiritualidade. É fácil considerar o pássaro como símbolo do Divino, fato a ele atribuído não apenas pela leveza, sua inacessibilidade e o espaço celeste no qual evolui. Quando um canto de pássaro intervinha na música, na 6ª Sinfonia de Beethoven ou no 2º ato de Siegfried, não é o canto do animal: o compositor imprimia sua marca humana, transformava-o. Em Messiaen, é o contrário: o pássaro imprimia sua marca sobre a música, a natureza inspirava diretamente o compositor, sem transformação”.

Gérad Gastinel, compositor com obra vasta e qualitativa, frequentou mais de cinco anos a classe de composição de Olivier Messiaen. Um relato merece ser transmitido ao leitor: “Messiaen sentia-se à vontade no Instituto ou diante de ministros durante recepções oficiais, assim como no coração de uma floresta a ouvir os pássaros ou no meio de estudantes. Se parecia aberto aos outros, também poderia estar fechado na ‘torre de marfim’ de seus pensamentos. Sempre humilde e, entretanto, sensível às honrarias, reservado mas plenamente consciente de seu valor e de sua força, esse personagem estranho, único e profundamente complexo escondia sem dúvida, sob sua simplicidade desconcertante, uma vontade inabalável de independência. No mesmo momento que fixava sobre nós seu olhar pleno de gentileza, poderia igualmente estar nos contemplando como se fôssemos de um outro mundo”.

Jean-Louis Petit, compositor e regente, também estudou com Messiaen, entrando em 1959 no curso de filosofia musical ministrado pelo autor do Catalogue des oiseaux no Conservatório de Paris. Relevante segmento de seu testemunho que a autora deixou como derradeiro, possivelmente para reflexão. Jean-Louis Petit focaliza com precisão o nocivo “policiamento”, a contagiar mentalidades em formação ou, o que é pior, figuras já na idade madura. Relata Jean-Louis Petit efeitos da reapresentação de importante criação de Olivier Messiaen, Turangalîlâ-Symphonie para piano, ondas Martenot e grande orquestra: “Para essa reapresentação fomos convidados. Entre alguns alunos compositores e antigos discípulos, a maioria adepta ferrenha do serialismo puro e da eletroacústica. Era de bom tom manifestar uma certa condescendência, desprezo até, em relação à música de Messiaen, qualificada de ‘xaroposa’! Entre confrades, professores de composição ou de matérias outras do Conservatório Superior de Música de Paris desdenhavam Messiaen, apontando-lhe o dedo quando este falava de SUA linguagem musical, como se essa linguagem não pertencesse somente a ele, o descobridor e o criador exclusivo. Inveja? Recalques interiorizados e mal digeridos? Não saberia responder!” Jean-Louis Petit ainda observa de maneira contundente: “Em nome de uma ilusória modernidade, na realidade de um conformismo primário de base, não posso compreender, tampouco admitir a rejeição sistemática de certos compositores de tudo que foi feito para a grandeza, o interesse, o sabor da música ocidental em geral e da escola francesa em particular, notadamente a riqueza do verticalismo dos sons, a diversidade de timbres e ritmos, a engenhosidade do contraponto e da polifonia, o aprofundamento na arte popular, exclusividade de certos povos, encontráveis precisamente na música de Messiaen sob a forma de uma tradição milenar em uma época precisa, através do pensamento metódico e criativo de uma só pessoa”.

In adendo ao livro “Messiaen – l’empreinte d’un géant”, não analítico, diga-se, mas a trazer elementos fundamentais à compreensão das escolhas e preferências de Olivier Messiaen, assim como seu didatismo, mencionarei José Antônio de Almeida Prado (1943-2010), que frequentou  como ouvinte os cursos de Olivier Messiaen, de Outubro de 1969 a Maio de 1973, apesar de não constar da lista das classes do compositor estabelecida por Jean Boivin (“La classe de Messiaen”, Mésnil sur l’Estrée, Christian Bourgois, 1995),  motivo possível de sua ausência entre os depoentes. José Francisco Bannwart defendeu em 2011 tese de doutorado na Université Paris-Sorbonne-Paris IV, sob o título: “La musique religieuse pour piano d’Almeida Prado”. Participei do júri que, após pormenorizado debruçamento, louvou a qualidade da tese.

Testemunho de José Antônio de Almeida Prado é anexado ao texto da tese e “acrescentaria” um depoimento a mais no livro em apreço: “Messiaen me fez trabalhar o samba brasileiro, colocando-o simplesmente como ritmo, sem pensar no samba, em nada a trabalhar uma hora a semicolcheia, passando a ser colcheia pontuada, outra hora a fusa e começar a trabalhar essa frase rítmica transformando, destruindo a sua identidade original, até chegar a um outro objeto rítmico que não é mais samba, mas uma outra coisa. É a desconstrução. Isso ele fez de tal maneira que não houve nenhum outro aluno importante que não tenha sofrido essa influência de Messiaen. A riqueza com que Messiaen analisou a Sagração da Primavera, de Stravinsky, a ponto de o próprio Stravinsky dizer: ‘Eu não sabia que era tão interessante assim’. É o que Lacan fez ao ler Freud. Ele releu Freud seriamente vendo como poderia ser nos dias de hoje. É o que fez também Santo Tomás de Aquino quando leu o pagão Aristóteles, tirando-o do paganismo e cristianizando-o. Então, essa é a lição de Messiaen”. O Pe. Bannwart  afirma em sua tese: “Uma das especificidades da música religiosa de Almeida Prado é que ela é ‘católica’, ligada ao seu envolvimento com a Igreja Católica. Embora as fontes nem sempre sejam as mesmas, o percurso dos dois compositores nessa relação fé-música pode se cruzar”. Fui dedicatário de várias obras de cunho religioso de Almeida Prado: Três profecias em forma de Estudo (1988) e Quatro Corais para piano (1995-1996), apresentados em primeira audição em Potsdan (Alemanha Oriental – antiga DDR) em 1989 e em Gent (Bélgica) em 1996, respectivamente.

Conhece-se pouco Messiaen no Brasil. Grandes intérpretes o tem reverenciado através de apresentações e gravações e no YouTube há inúmeras composições do Mestre francês. Mereceriam ser visitadas. Todavia, Messiaen continuará a sofrer avaliação polêmica. Para aqueles ligados às tendências que proliferaram em França a partir do fim da Segunda Grande Guerra, entre as quais as que exploram a eletroacústica em suas múltiplas derivantes, Messiaen é entendido com desconfiança, pois a apresentar propostas que não atenderiam à utilização de novos recursos e processos sonoros decorrentes. Para a maioria dos intérpretes de Fauré, Debussy e Ravel, a obra de Messiaen é pouco frequentada. Apesar de ter sido um grande Mestre de tantos músicos que permaneceram e permanecem atuando, seria possível entender que o “enclausuramento” a que se propôs, fidelíssimo às suas teorias, tenha obliterado caminho aos pósteros. Segui-lo seria considerado imitá-lo? Talvez…

In the third and final post about the book “Messiaen – l’empreinte d’un géant”, by the pianist and writer Catherine Lechner-Reydellet, we resume the testimonies on the composer given by those who knew him. I take the liberty of including in this post a testimony by the Brazilian composer Almeida Prado (1943-2010) who, though not mentioned in Reydellet’s book, according to his own words attended Messiaen’s classes as a listener from 1969 to 1973 and whose works received considerable influence from his master.

 

 

 

 

 

 

 

Depoimentos que corroboram a edificação de um Mestre

Homem guiado por inabalável fé católica
e sem nenhuma convicção política,
colocando-se acima de quaisquer contingências,
pareceria ser um criador único,
a não ter jamais se submetido a nenhum sistema de criação
ou tendência que seja,
estruturado sobre suas próprias motivações sem renunciá-las,
buscando sempre transmitir uma mensagem de amor e de bondade.
Catherine Lechner-Reydellett

Os inúmeros depoimentos qualitativos sobre Olivier Messiaen, contidos em “Messiaen – l’empreint d’un géant”, tornam imperativo dividir em dois posts essas apreensões colhidas pela autora, Catherine Lechner-Reydellet, em um levantamento hercúleo, mercê da competência inquestionável dos depoentes, que agigantam a figura do compositor, tão bem captada no subtítulo do livro. Se no primeiro blog uma síntese dos textos de Lechner-Reydellet foi esboçada, os próximos dois posts complementarão a análise do precioso volume.

Observaremos conceitos emitidos por intérpretes, compositores e artistas outros, que foram alunos ou estiveram próximos de Olivier Messiaen. Esse trabalho de recolha de opiniões, por vezes coincidentes, outras trazendo novos caminhos para a construção do personagem, torna-se de grande valia, pois muitas lacunas existentes sobre o homenageado poderiam ficar perdidas para sempre. A visão de coetâneos amalgama-se naturalmente e de maneira verossímil à documentação “oficial”, vindo a enriquecer biografias. Traços inalienáveis da ação e do caráter são revelados e estarão doravante incorporados à figura estudada. Salvaguarda dos depoimentos estaria fixada na semelhança da narrativa exposta pelos depoentes em determinados segmentos. A escolha seletiva dos músicos e artistas, prerrogativa da autora, garante seguir o homenageado no hic et nunc, diferentemente das indispensáveis consultas às fontes primárias e outras tantas, que, necessariamente engessadas, não têm o “calor” de testemunhos confiáveis. Dos vinte e tais convidados por Lechner-Reydellet, selecionei segmentos narrativos, entendendo-os como contributos contundentes.

Primeiramente, Lechner-Reydelett apresenta depoimentos de organistas, pois Messian foi excelente instrumentista. Louis Thiry, após comentar o sagrado existente no órgão, expõe sua opinião: “O órgão não tem nenhuma pré-disposição especial para exprimir o sagrado: só os acasos da história, diria, fizeram-no adentrar as igrejas ocidentais”. Messiaen, católico de fé intensa, entendeu sempre a sacralização do instrumento e “de sua abundante produção organística, apenas duas peças não fazem explicitamente referência ao domínio do sagrado”, considera Thiry. Segundo o instrumentista, o fato de Messiaen ter sido durante décadas organista da Église de la Trinité marcou-o decididamente, inclusive a partir da qualidade, registros e possibilidades daquele instrumento. “O órgão da Trinité tornou-se para ele um campo de experimentação que, durante toda a vida, foi-lhe caro ao coração”, afirma Louis Thiry.

Raffi Ourgandjian, organista de origem armênia, traça aspectos de seu mestre: a necessidade imperiosa de saber ouvir, de apreender as vibrações, a profundidade da análise musical: “Existia em sua interpretação um fenômeno de magia para que compreendêssemos o senso do sagrado, do maravilhoso e do sublime, da poesia e do imaginário”. Ao analisar Orfeu, de Monteverdi, ou Tristão e Isolda, de Wagner, Ourgandjian observa um lado teatral de Messiaen, pois os alunos sentiam-se partícipes da cenas. Observa ainda um toque extraordinário de Messiaen ao interpretar as mais variadas obras para piano. Esse item é repetido através de inúmeros outros testemunhos. Todavia, o que mais marcaria o depoente seria o domínio do mestre no que concerne ao ritmo, por Messiaen considerado como essência essencial da música.

Loïc Mallié, organista e compositor, tece elogios sobre o professor: “Guardo uma lembrança que me comoveu quando de meu primeiro encontro em sala de aula. A acolhida tão simples, tão calorosa e o olhar do Mestre, que parecia atingir imediatamente o essencial”.

Olivier Latry, importante organista de sua geração, um dos titulares do órgão de Notre Dame de Paris, capta algo relevante concernente às improvisações no órgão da Trinité: “Maestria total de sua linguagem musical. Creio realmente que o órgão era para ele UM meio de expressão entre outros, mas não SEU próprio meio de expressão, sempre associado a um profundo sentimento religioso. Eu o vi, na tribuna da Trinité, ajoelhar-se durante a consagração, como exemplo. Tudo estava relacionado à sua fé; ele não tinha a menor necessidade de falar para que soubéssemos”.

O pianista Roger Muraro, um dos especialistas da obra de Olivier Messiaen, foi aluno de Yvonne Loriod e amigo de Messiaen. De interesse seus comentários sobre o compositor: “O tempo inexistia quando Messiaen ensinava as obras-primas da criação musical. Seus conselhos eram de ordem estética, jamais sobre a relação fé-música. Não empregava qualquer proselitismo. Messian dizia que o aspecto mágico dos contos de fada de sua infância reencontravam-se com força plena no catolicismo, verdade absoluta! Por vezes falava poeticamente para evocar a cor de um canto de pássaro”.

Ana Telles, pianista portuguesa de mérito que se dedica à música contemporânea, é professora da Universidade de Évora. Em seu depoimento, pormenoriza seus ensinamentos recebidos da intérprete ideal de Messian, sua esposa, a extraordinária pianista Yvonne Loriod. Com ela, Telles estudou parte do repertório do compositor. Interesse especial à explanação minuciosa de Ana Telles sobre a criteriosa didática de Yvonne Loriod, mas também a respeito de uma “exótica” maneira de diariamente estudar a denominada “técnica pura”, empregando dedilhados bem questionados. Ressalta que Yvonne Loriod realizava com dedicação extrema a revisão de todas as obras compostas pelo ilustre marido, a seu expresso pedido.

Depoimento da soprano alemã Sigune von Osten expõe seu minucioso trabalho junto a Messiaen em obras como Chants de Terre et de Ciel, Poèmes pour MiHarawi.

Catherine Lechner-Reydellet acarinha, não sem razão, o Festival Messiaen au Pays de la Meije, enfatizando sua importância, o apoio das comunidades em torno do Festival, apesar dos recursos modestos. Destaca o papel fulcral de Gaëtan Puaud, economista e apaixonado por música, na concretização do projeto. Tem interesse uma carta de agradecimento de Yvonne Loriod a Gaëtan Puaud. Nessa missiva, uma revelação sobre Messiaen: “A cada ano, desde 1950, ele peregrinava à La Grave e algumas vezes subia ao Lautaret e ao Galibier… onde se sentava sobre uma pedra diante da grandiosa paisagem, a fim de repousar lendo o teólogo Thomas Merton”. A seguir: “A fé, a natureza, o ritmo, os pássaros e as altas montanhas foram as fontes de inspiração de toda a obra de Olivier Messiaen”.

O organista e professor Michel Fischer, Mestre de Conferência na Universidade Paris Sorbonne, defendeu tese de doutorado sobre Messiaen, mormente a tratar da riquíssima visão rítmica do compositor. Em seu depoimento, explora a ciência plena de Messiaen sobre a rítmica grega e hindu, dela extraindo elementos essenciais em suas composições.

René de Obaldia, dramaturgo, memorialista, romancista e poeta, foi amigo de Messiaen. De seu profícuo relato ressalto pequeno segmento de missiva de Messiaen a ele dirigida: “Caro grande amigo, eis uma nova edição da obra-prima de minha mãe, escrita antes de e para meu nascimento e que influenciou fortemente minha vida. De Sapho à condessa de Noailles, passando por Louise Labé e Marceline Desbordes Valmore, todas as mulheres poetisas cantaram o amor. Só minha mãe cantou a maternidade…”. Cécile Sauvage (1883-1927), mãe de Olivier, escreveu inúmeros livros de poesia.

No terceiro e último post dedicado ao fundamental livro de Catherine Lechner-Reydellet, colocarei testemunhos fulcrais de outros ilustres intérpretes, compositores e artistas sobre Olivier Messiaen. Fica neste espaço um comentário preciso de Lechner-Reydellet: “Em sala de aula, Messiaen percorria todos os domínios do saber e da reflexão, a fazer, tantas vezes, referência aos grandes textos literários do passado, assim como às obras referenciais do presente. Para melhor transmitir seu conhecimento, explorava todos os campos de investigação possíveis, colocando à disposição de cada um os mecanismos que levavam a descobrir seus meios de funcionamento ou, então, de redescobrir e compreender as composições musicais essenciais que forjam as bases do saber, dando pois as chaves da compreensão de nosso universo musical”. Entendo basilares essas colocações, pois a Cultura Geral, tão decantada em tempos outros, embasada nos valores do passado ao presente, é pilar que corrobora a abertura do pensar. Sem ela, lacunas serão sentidas durante a trajetória de um músico. A presença de um grande talento musical não impede detectá-las, seja na interpretação, na composição ou na ação junto à sociedade. A força da mídia poderá negligenciar o fato, mas a lacuna instalada não passará incólume aos mais atentos.

In this post and in the next I come back to the book “Messiaen – l’empreinte d’un géant”, by Catherine Lechner-Reydellet, this time selecting some of the testimonies on Messiaen given by composers, musicians, friends and former students, adding to the understanding of this major twentieth-century composer. The author mentions that, as a teacher, Messiaen exhibited a vast scope of knowledge, quoting past and present literary texts, teaching his students to rediscover and consider the essential musical compositions that are the foundations of our musical universe. Personally, I see this transmittal of our cultural heritage as something of utmost importance, a real mind-opener that will reflect well on the work of future musicians.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

“Messiaen – L’empreinte d’un géant”

Falar da cor em Messiaen significa dizer
que a evocação da natureza, da atmosfera e do clima
forma um exemplo perfeito de inspiração que conduz à obra-prima.
Assim como a cor se situa no âmago da problemática do pintor,
assim também ela se apresenta como meio
de descoberta e sublimação na composição de Messiaen.
Catherine Lechner-Reydlett

Há livros biográficos que buscam retratar de maneira, a se esperar precisa, figuras marcantes da história da humanidade. Críticas ou laudatórias, as biografias sérias perscrutam desde as fontes primárias a outros variados mananciais que auxiliam a construção do eleito. O critério imparcial nem sempre está presente, o que, por vezes, inviabiliza avaliações.

A escritora e pianista Catherine Lechner-Reydellet, professora titular do Conservatório de Música e Arte Dramática de Grenoble, apresenta mais um livro sobre música, entre os vários ficcionais e poéticos de sua lavra, fazendo parte de um espírito multidirecionado. Em “Messiaen – l’empreinte d’un géant” (Paris, Séguier, 2008), a autora volta-se à tendência que tem adotado em obras anteriores sobre música, ou seja, textos pessoais e depoimentos de músicos que conviveram com  homenageados. Esse posicionamento pluralista e generoso nos induz a dividir o post em dois, um a abordar o que pensa Catherine Lechner-Reydlett após pesquisas aprofundadas e um outro a buscar a síntese dos ricos depoimentos, compartimentando-os em seus ineditismos, pois obviamente há nesses depoimentos opiniões convergentes. Sob outro aspecto, “Messiaen – l’empreinte d’un géant” pressupõe a admiração confessa da autora. A leitura do livro e o conhecimento prévio de muitas composições de Olivier Messiaen apenas ratificam a exatidão do subtítulo.

Olivier Messiaen (1908-1992) foi um dos mais influentes compositores franceses. Compositor, pianista, organista, regente e ilustre professor, Messiaen teve sob sua tutela no Conservatório Nacional Superior de Música e de Dança de Paris alguns dos mais ilustres músicos que se projetariam no cenário. Entre eles, Serge Nigg, Pierre Boulez, Karlheinz Stockhausen, Maurice Leroux, Mikis Theodorákis, Iannis Xenakis, Tristan Murail, Yvonne Loriod e o nosso saudoso e notável compositor José Antônio de Almeida Prado. Messiaen, católico convicto e amante inveterado da natureza, estabeleceu parâmetros inéditos para a composição e seu estilo rigorosamente pessoal causa até o presente admiração e reverência.

Catherine Lechner-Reydlett realizou trabalho exaustivo e profundo, a fim de levar ao leitor a diversidade criativa de Messiaen. Fê-lo bem, pois seus estudos levaram-na a apreender quase todas as facetas possíveis do grande compositor e, quando ausentes, complementadas nos depoimentos que serão tratados no próximo blog.

No fervilhar de tantas tendências musicais que grassaram ao longo do século XX, Olivier Messiaen estrutura um estilo a partir de uma fé católica imperturbável, “mesmo que esse engajamento nem sempre tenha tido defensores entre os puros agnósticos. Todavia, desperta a atenção, torna-se respeitado, pois forja uma trajetória original estabelecida com ciência e consciência, contribuindo para elevar a música francesa a um dos polos privilegiados da arte musical construtiva no mundo”, observa Lechner-Reydlet. A autora elenca uma série de contributos essenciais que deve ser consignada à ação de Messiaen. Entre esses, a estética fundamentalmente inovadora, devendo-se ao compositor duas grandes obras teóricas do século XX, “Technique de mon langage musical” (Paris, Leduc, 1944) e “Traité de rythme, de couleur et d’ornithologie – 1949-1992” (Paris, Leduc, 1994-2002). Após aprofundamentos voltados à métrica grega, aos neumas do cantochão e às linguagens de ilustres compositores que perduraram pela qualidade, assim como à rítmica de outros povos, Messiaen estabelece seus critérios inovadores.

Essencial durante a trajetória, ratifique-se, é a fé católica. Lechner-Reydellet situa de maneira a não deixar dúvidas esse aspecto, que teria influência decisiva na criação de Messiaen. Cercado pela contemporaneidade que aderira à negação de Deus – segmento expressivo nessa tendência -, nada abalaria o posicionamento de Messiaen. A autora posiciona bem aspectos do caráter do homenageado que, afável, gentil e generoso com os que o procuravam, reservava-se o direito de manter determinados isolamentos, que seriam a salvaguarda de seu mundo interior. Quantas não são as obras em que o Divino está presente: Transfiguration de Notre Seigneur Jésus-Christ, Vingt Regards sur L’Enfant Jésus, Saint François d’Assise, Les Trois Petites Liturgies de la Présence Divine, Les Visions de l’Amen e outras.

O piano é fundamental para Olivier Messiaen. Lechner-Reydellet dedica-lhe capítulo substancioso, a focalizar preferencialmente O Catalogue d’ Oiseaux. Menciona confissão do compositor: “Sempre amei o piano e sofri de um complexo ao pensar que era um organista-compositor e um pianista analista”.  A transcender outras composições, a magistral coletânea para piano, obra das mais importantes da literatura pianística em termos mundiais, o Catalogue d’Oiseaux, (1956-1958), criação de quase três horas, foi composto a seguir outra composição extraordinária, Vingt Regards de l’Enfant Jésus (1944).

O Catalogue des Oiseaux está dividido em sete livros, que reagrupam treze peças. A autora recorre a outra confissão de Messiaen: “as viagens e os estágios repetidos, necessários à notação dos cantos de cada pássaro, foram, por vezes, bem anteriores à composição das peças. Essas indicações tornaram-se bem precisas e o autor soube despertar as velhas lembranças de algumas horas ou de muitos anos”. Encerra a dizer “aos meus modelos alados e à pianista Yvonne Loriod”. Messiaen se casaria em 1961 com a dedicatária, sua ex-aluna, e Yvonne Loriod (1924-2010) tornar-se-ia a extraordinária intérprete de toda a criação pianística de Messiaen, justamente ela que apresentara em público, entre outras obras de seu imenso repertório, a integral do Cravo Bem Temperado de J.S.Bach e os 27 Concertos para piano e orquestra de Mozart.

Catherine Lechner-Reydlett debruça-se sobre a produção de Messiaen, a classe de composição mantida no Conservatório de Paris e o “Festival Messiaen au Pays de la Meije” criado em tributo ao homenageado. Como no próximo post abordarei a síntese de depoimentos de intérpretes e alunos colhidos criteriosamente pela autora, esses temas surgirão naturalmente, a realçar as qualidades inalienáveis de um dos maiores mestres da composição e do ensino do século XX.

My comments on the book “Messiaen – l’empreinte d’un géant”, written by Catherine Lechner-Reydellet, French pianist, writer and professor at the University of Grenoble. The book is a sound research on the French composer, organist and teacher Olivier Messiaen’s creative diversity, pointing out the influence of his devout Catholic faith in his production. An essential reading for anyone wanting to learn more about one of the most influential names in the history of 20th century classical music.