Depoimentos que corroboram a edificação de um Mestre
Homem guiado por inabalável fé católica
e sem nenhuma convicção política,
colocando-se acima de quaisquer contingências,
pareceria ser um criador único,
a não ter jamais se submetido a nenhum sistema de criação
ou tendência que seja,
estruturado sobre suas próprias motivações sem renunciá-las,
buscando sempre transmitir uma mensagem de amor e de bondade.
Catherine Lechner-Reydellett
Os inúmeros depoimentos qualitativos sobre Olivier Messiaen, contidos em “Messiaen – l’empreint d’un géant”, tornam imperativo dividir em dois posts essas apreensões colhidas pela autora, Catherine Lechner-Reydellet, em um levantamento hercúleo, mercê da competência inquestionável dos depoentes, que agigantam a figura do compositor, tão bem captada no subtítulo do livro. Se no primeiro blog uma síntese dos textos de Lechner-Reydellet foi esboçada, os próximos dois posts complementarão a análise do precioso volume.
Observaremos conceitos emitidos por intérpretes, compositores e artistas outros, que foram alunos ou estiveram próximos de Olivier Messiaen. Esse trabalho de recolha de opiniões, por vezes coincidentes, outras trazendo novos caminhos para a construção do personagem, torna-se de grande valia, pois muitas lacunas existentes sobre o homenageado poderiam ficar perdidas para sempre. A visão de coetâneos amalgama-se naturalmente e de maneira verossímil à documentação “oficial”, vindo a enriquecer biografias. Traços inalienáveis da ação e do caráter são revelados e estarão doravante incorporados à figura estudada. Salvaguarda dos depoimentos estaria fixada na semelhança da narrativa exposta pelos depoentes em determinados segmentos. A escolha seletiva dos músicos e artistas, prerrogativa da autora, garante seguir o homenageado no hic et nunc, diferentemente das indispensáveis consultas às fontes primárias e outras tantas, que, necessariamente engessadas, não têm o “calor” de testemunhos confiáveis. Dos vinte e tais convidados por Lechner-Reydellet, selecionei segmentos narrativos, entendendo-os como contributos contundentes.
Primeiramente, Lechner-Reydelett apresenta depoimentos de organistas, pois Messian foi excelente instrumentista. Louis Thiry, após comentar o sagrado existente no órgão, expõe sua opinião: “O órgão não tem nenhuma pré-disposição especial para exprimir o sagrado: só os acasos da história, diria, fizeram-no adentrar as igrejas ocidentais”. Messiaen, católico de fé intensa, entendeu sempre a sacralização do instrumento e “de sua abundante produção organística, apenas duas peças não fazem explicitamente referência ao domínio do sagrado”, considera Thiry. Segundo o instrumentista, o fato de Messiaen ter sido durante décadas organista da Église de la Trinité marcou-o decididamente, inclusive a partir da qualidade, registros e possibilidades daquele instrumento. “O órgão da Trinité tornou-se para ele um campo de experimentação que, durante toda a vida, foi-lhe caro ao coração”, afirma Louis Thiry.
Raffi Ourgandjian, organista de origem armênia, traça aspectos de seu mestre: a necessidade imperiosa de saber ouvir, de apreender as vibrações, a profundidade da análise musical: “Existia em sua interpretação um fenômeno de magia para que compreendêssemos o senso do sagrado, do maravilhoso e do sublime, da poesia e do imaginário”. Ao analisar Orfeu, de Monteverdi, ou Tristão e Isolda, de Wagner, Ourgandjian observa um lado teatral de Messiaen, pois os alunos sentiam-se partícipes da cenas. Observa ainda um toque extraordinário de Messiaen ao interpretar as mais variadas obras para piano. Esse item é repetido através de inúmeros outros testemunhos. Todavia, o que mais marcaria o depoente seria o domínio do mestre no que concerne ao ritmo, por Messiaen considerado como essência essencial da música.
Loïc Mallié, organista e compositor, tece elogios sobre o professor: “Guardo uma lembrança que me comoveu quando de meu primeiro encontro em sala de aula. A acolhida tão simples, tão calorosa e o olhar do Mestre, que parecia atingir imediatamente o essencial”.
Olivier Latry, importante organista de sua geração, um dos titulares do órgão de Notre Dame de Paris, capta algo relevante concernente às improvisações no órgão da Trinité: “Maestria total de sua linguagem musical. Creio realmente que o órgão era para ele UM meio de expressão entre outros, mas não SEU próprio meio de expressão, sempre associado a um profundo sentimento religioso. Eu o vi, na tribuna da Trinité, ajoelhar-se durante a consagração, como exemplo. Tudo estava relacionado à sua fé; ele não tinha a menor necessidade de falar para que soubéssemos”.
O pianista Roger Muraro, um dos especialistas da obra de Olivier Messiaen, foi aluno de Yvonne Loriod e amigo de Messiaen. De interesse seus comentários sobre o compositor: “O tempo inexistia quando Messiaen ensinava as obras-primas da criação musical. Seus conselhos eram de ordem estética, jamais sobre a relação fé-música. Não empregava qualquer proselitismo. Messian dizia que o aspecto mágico dos contos de fada de sua infância reencontravam-se com força plena no catolicismo, verdade absoluta! Por vezes falava poeticamente para evocar a cor de um canto de pássaro”.
Ana Telles, pianista portuguesa de mérito que se dedica à música contemporânea, é professora da Universidade de Évora. Em seu depoimento, pormenoriza seus ensinamentos recebidos da intérprete ideal de Messian, sua esposa, a extraordinária pianista Yvonne Loriod. Com ela, Telles estudou parte do repertório do compositor. Interesse especial à explanação minuciosa de Ana Telles sobre a criteriosa didática de Yvonne Loriod, mas também a respeito de uma “exótica” maneira de diariamente estudar a denominada “técnica pura”, empregando dedilhados bem questionados. Ressalta que Yvonne Loriod realizava com dedicação extrema a revisão de todas as obras compostas pelo ilustre marido, a seu expresso pedido.
Depoimento da soprano alemã Sigune von Osten expõe seu minucioso trabalho junto a Messiaen em obras como Chants de Terre et de Ciel, Poèmes pour Mi e Harawi.
Catherine Lechner-Reydellet acarinha, não sem razão, o Festival Messiaen au Pays de la Meije, enfatizando sua importância, o apoio das comunidades em torno do Festival, apesar dos recursos modestos. Destaca o papel fulcral de Gaëtan Puaud, economista e apaixonado por música, na concretização do projeto. Tem interesse uma carta de agradecimento de Yvonne Loriod a Gaëtan Puaud. Nessa missiva, uma revelação sobre Messiaen: “A cada ano, desde 1950, ele peregrinava à La Grave e algumas vezes subia ao Lautaret e ao Galibier… onde se sentava sobre uma pedra diante da grandiosa paisagem, a fim de repousar lendo o teólogo Thomas Merton”. A seguir: “A fé, a natureza, o ritmo, os pássaros e as altas montanhas foram as fontes de inspiração de toda a obra de Olivier Messiaen”.
O organista e professor Michel Fischer, Mestre de Conferência na Universidade Paris Sorbonne, defendeu tese de doutorado sobre Messiaen, mormente a tratar da riquíssima visão rítmica do compositor. Em seu depoimento, explora a ciência plena de Messiaen sobre a rítmica grega e hindu, dela extraindo elementos essenciais em suas composições.
René de Obaldia, dramaturgo, memorialista, romancista e poeta, foi amigo de Messiaen. De seu profícuo relato ressalto pequeno segmento de missiva de Messiaen a ele dirigida: “Caro grande amigo, eis uma nova edição da obra-prima de minha mãe, escrita antes de e para meu nascimento e que influenciou fortemente minha vida. De Sapho à condessa de Noailles, passando por Louise Labé e Marceline Desbordes Valmore, todas as mulheres poetisas cantaram o amor. Só minha mãe cantou a maternidade…”. Cécile Sauvage (1883-1927), mãe de Olivier, escreveu inúmeros livros de poesia.
No terceiro e último post dedicado ao fundamental livro de Catherine Lechner-Reydellet, colocarei testemunhos fulcrais de outros ilustres intérpretes, compositores e artistas sobre Olivier Messiaen. Fica neste espaço um comentário preciso de Lechner-Reydellet: “Em sala de aula, Messiaen percorria todos os domínios do saber e da reflexão, a fazer, tantas vezes, referência aos grandes textos literários do passado, assim como às obras referenciais do presente. Para melhor transmitir seu conhecimento, explorava todos os campos de investigação possíveis, colocando à disposição de cada um os mecanismos que levavam a descobrir seus meios de funcionamento ou, então, de redescobrir e compreender as composições musicais essenciais que forjam as bases do saber, dando pois as chaves da compreensão de nosso universo musical”. Entendo basilares essas colocações, pois a Cultura Geral, tão decantada em tempos outros, embasada nos valores do passado ao presente, é pilar que corrobora a abertura do pensar. Sem ela, lacunas serão sentidas durante a trajetória de um músico. A presença de um grande talento musical não impede detectá-las, seja na interpretação, na composição ou na ação junto à sociedade. A força da mídia poderá negligenciar o fato, mas a lacuna instalada não passará incólume aos mais atentos.
In this post and in the next I come back to the book “Messiaen – l’empreinte d’un géant”, by Catherine Lechner-Reydellet, this time selecting some of the testimonies on Messiaen given by composers, musicians, friends and former students, adding to the understanding of this major twentieth-century composer. The author mentions that, as a teacher, Messiaen exhibited a vast scope of knowledge, quoting past and present literary texts, teaching his students to rediscover and consider the essential musical compositions that are the foundations of our musical universe. Personally, I see this transmittal of our cultural heritage as something of utmost importance, a real mind-opener that will reflect well on the work of future musicians.