Uma autora a ser divulgada no Brasil

Quando o espírito
não está voltado naturalmente para o futuro,
tornamo-nos velhos.
Gustave Flaubert
(“Lettres inédites à Tourgueneff”)

Admiro profundamente o perfil da pianista, escritora e professora do Conservatório de Música e de Arte Dramática de Grenoble, Catherine Lechner-Reydellet. Nas várias atividades, Catherine se mostra competente. Se nos escritos sobre Música a autora revela constantemente um discurso didático, sóbrio, não faltando a admiração quando um contemplado em seus estudos – o ilustre compositor Olivier Messiaen – apresenta-se como fulcro das pesquisas, uma outra personagem, transfigurada, surge ao penetrar no universo da poesia ou da prosa. Estamos diante de dois patamares distintos, duas personas que só podem ser identificadas no uno indissolúvel através de duas linguagens que se amalgamam, a música e a poesia. Diria que, nesses casos, pode-se entender parcialmente o de profundis de Lechner-Reydellet. Seus textos extramusicais revelam um universo diferenciado, desde a escolha das palavras, dos conceitos ou da complexa interpretação destes. Termos inexistentes em sua literatura musical sobrevoam seu pensar e, em elos, estabelecem o ineditismo de sua poética. Esse precioso “gongorismo” estimula o leitor à busca da intenção real da autora. A releitura de tantas frases de difícil entendimento inicial, juntando-se a outras, estabelece a parcial compreensão do pensamento de Catherine. Impossível ficarmos indiferentes aos seus poemas que navegam tantas vezes no campo da prosa. De algumas frases busquei fazer uma tradução livre, a fim de que o leitor possa apreender determinadas variantes da poética de Catherine Lechner-Reydellet.

A incursão que a escritora realiza na poesia revela seus anseios em direção ao complexo entendimento homem-mulher num querer incessante, tantas vezes interrompido e recomeçado. Em “Aeternitas – Nasci – Vivere – Mori” (Paris, Harmattan 2009), a autora perscruta a eterna disputa dos ungidos pelo amor, mas cujas naturais diferenças levam a impasses:

Imóveis, suas mãos brancas
Apalpando, manipulando no ritmo das armas quentes,
Seu reflexo de alma santa, virgem e sempre tão gloriosa,
Tanto seu sorriso é lindo, tanto ele é luminoso.
até o desiderato final possível:
Atravessando os séculos, consome, perpetua,
Sobre a ignorância do mundo, aquilo que terá sido,
Nossos lugares de graça, esta unidade.

Em “Guerre oublié” (Paris, Hamattan 2013), Lechner-Reydellet se debruça sobre o homem diante de temas contrastantes, como a caminhada pela humanidade na desesperança ou a permanente memória de acertos e desacertos, impulso a outras possibilidades. A impressão que se apreende do texto poético-prosa é da constante preocupação com a temática voltada ao amor num sentido abrangente, onde não faltam o entendimento, os espinhos e a morte. Os 50 textos poéticos levam títulos simbólicos, que estariam igualmente propensos à prosa. Contudo, Lechner-Reydellet sabe extrair de cada temática a essência essencial. Se há homenagens relevantes – “Léonor Fini, decoratrice de théâtre, poète (1908-1996)” e “Pierre Emmanuel, poète et l’ami de toujours (1916-1984)” – temas outros instauram, nessa eterna dialética, caminhos para reflexão. Das cinco dezenas de textos poéticos, nenhum passa sem que sejamos levados a indagações, ao pensar. No poema 7, “Détail d’un jour”, tem-se:

Quanto tempo para calcular este ar fluido, irrespirável.
Alguns passos que farão a viagem?
Essa distância impossível, pontes, areia e pedriscos, caminhos seriam mais abordáveis,
Dois metros a mais, e o infinito, quando num relance, na solidão, no meio do deserto,
seus olhos se abrem e transpiram a bondade…

No poema nº 23, “La grâce prompte”, tem-se o tempo a passar e a rotina, o desencanto, a indecisão no julgamento:

Ele teria amado tanto ser ele mesmo, continuar a viver
Justamente onde o dia nasce,
Não saber que quantidade de palavras se reduziria sempre à
Quantidade de miséria.
Que no curso de um só dia, no ritmo do sol,
A ler seu grande jornal,
Ele seria incapaz de ter um julgamento sobre os outros
Pontos de vista.
Jamais as ideias claras quanto à sua vocação,
Sufocada e irreconhecível,
Meditando sobre sua sorte, um homem de imenso interesse,
Cordial e magnífico,
Mas a não acreditar que nas coisas tangíveis, um sentimento
De angústia,
Em grande escala, um dia um filósofo, um outro
Um carpinteiro,
Em permanência a se maldizer, com o tempo seu
Mal,
Nada a diferenciar a extensão de meio século.

A primeira leitura de “Le même en l’autre” (Paris, Harmattan, 2017) pode desconcertar o leitor pela ausência nominal de um personagem. Transparece em todo o livro algo de restrito, guardado, secreto. O poeta e professor Michel Cassir bem define “Le même em l’autre”: “tem-se a ligação improvável entre a mulher e seu duplo masculino, a menos que não seja o contrário, tão grande é a interioridade em movimento”. Há constante caminhar pelo cotidiano e pelo de profundis do personagem sem impressão digital, etéreo, mas a abordar alguns tópicos essenciais do condicionamento humano. Essa abrangência pode-se ler numa passagem essencial do instigante livro: “Ela buscava ver tudo, onde encontrar um refúgio, um espaço onde dormir, onde colocar suas palavras graves, sua oração límpida, ou simplesmente seu grito, sua voz que conteria, tão logo ela soubesse descrever essa ausência antiácida, para se construir e nascer uma vez por todas, nascer dele, de seu domínio, para enfim se provar que estava a viver”.

Friso, a capacidade de Catherine Lechner-Reydellet de se “metamorfosear” em veios literários tão distintos é admirável. Seria improvável conceber – não fosse a impressão digital da autora em todos seus livros – ter sido a mesma pena a percorrer textos sobre música e, num universo etéreo, as páginas a receber a poética sensível e fascinante.

Today’s post addresses three books by Catherine Lechner-Reydellet, French pianist, writer and professor at the Conservatoire de Grenoble: Aeternitas, Guerre oubliée (both in verses) and Le même en l’autre (novel). Unlike her works about music, clear and didactic, Lechner-Reydellet fictional writing is philosophical and complex, defying conventional frames and often requiring a second reading to unveil its meaning. It is sometimes hard to believe that fictional and non-fictional books have been written by the same hand, were it not for the author’s unmistakable fingerprints hovering over her varied output. Lechner-Reydellet is a multi-faceted author who seems to take on a whole new persona in her fiction. Reading it is a rewarding experience.