Navegando Posts publicados em janeiro, 2019

Leitores e seus posicionamentos

Mais custa quebrar rocha do que escavar a terra;
mais sólido, porém, o edifício que nela se firmou.
A grandeza da obra é quase sempre devida
à dificuldade que se encontra nos meios a empregar.
Agostinho da Silva

Foram inúmeras as mensagens sobre o último blog. Leitores e alguns ex-alunos escreveram, o que me leva a compartimentar posições no presente post. Desses alunos que estudaram minha disciplina piano, mas que frequentaram a classe de Willy Côrrea de Oliveira, ficariam marcas indeléveis, pois tantos têm a lembrança perene dos ensinamentos de Willy. A essência transmitida em aula pelo professor passou por inteiro e a única palavra inexistente nessas mensagens pós-aprendizado é o termo indiferença. Willy Côrrea de Oliveira permanece nas mentes desses missivistas pelo legado. Legião de docentes é esquecida mesmo antes da conclusão de curso.

Transmito duas mensagens aos leitores, do advogado e escritor Pedro de Almeida Nogueira e do Professor Titular da FFLECH-USP, Gildo Magalhães. Almeida Nogueira comenta: “Li seu texto no blog, conduzido pela curiosidade que o formato do livro de Willy, que não conhecia, me despertou. Gosto muito da forma leve e inteligente de sua narrativa e vou me acrescentando com as frases que dizem muito. Hoje me encantei com o Willy dizendo: ‘…encontrei-a numa tarde e brincamos a tarde inteira, amei-a (sem que ela soubesse) por semanas a fio’. Tenho uma consideração muito grande pelos nordestinos, em especial pelos pernambucanos e, em termos de música popular, não sei por que não há um trabalho (pelo menos não conheço) desenvolvido nos acordes do frevo. Capiba, Nelson Ferreira, o irreverente Maestro Spok, Gaby Amarantos e tantos outros. Veja que não é sugestão, apenas uma lembrança”. Creio que Willy poderia responder. Falarei com ele. Gildo Magalhães observa: “Belíssimo texto desta semana! É de pura crítica no melhor sentido da exegese. Quem, como eu, já cruzou com Willy, percebe uma qualidade do blogueiro: a atenção para a pessoa humana, pois sem deixar de apontar as estranhezas, conhecidas por alguns, do compositor, reconhece o mérito daqueles que têm muito a dizer”.

Quanto ao Willy, visitei-o outra vez. Levei-o ao cartório, a fim de autenticação autorizando-me a gravar em Maio, na Bélgica, sua coletânea “Recife, Infância. Espelhos…”, obra que pertence ao meu universo de afetos. Após, permanecemos longamente em um café no Brooklin e nossas conversas passaram pela diversidade e contrastes: Haydn-Mozart, Debussy-Ravel e pela música contemporânea, Pierre Boulez e Karlheinz Stockhausen, assim como pelos cineastas Andreï Tarkowsky e Ingmar Bergman. Se a criação artística foi temática descontraída, mas a considerar tantas derivantes que percorrem nossas mentes, a interpretação pianística também teve relevância na troca de ideias. Ambos temos inclinação nítida pelos intérpretes do passado. Vladimir Horowitz, Vlado Perlemuter, Andor Foldes, Wilhelm Kempff foram alguns dos nomes referenciais lembrados, além de Vianna da Motta, extraordinário músico português, que mantinha sob os dedos um repertório descomunal (vide blogs: “Vianna da Motta – 1868-1948″, 07/07/2018 e “Seria Vianna da Motta lembrado à altura de seu mérito?”, 14/07/2018). Ouvintes das gerações mais recentes podem entender-nos saudosistas. Contudo, naturalidade, reflexão, envolvimento com a essência essencial deixada por um compositor, graças em parte à ausência dos portentosos holofotes atuais – praga que oblitera o aprofundamento -, tornaram-se concordância em nossos diálogos sobre pianistas. Salientaria uma exceção ainda em plena atividade, Daniel Barenboim, por nós considerado o intérprete mais completo da atualidade. Mencionei uma observação de Barenboim sobre a interpretação nos nossos dias, a priorizar a virtuosidade. Afirma o grande pianista, regente e pensador que os ouvidos humanos não conseguem apreender a velocidade extrema, desiderato de tantos, à la manière dos atletas olímpicos. Quanto à concepção para a execução de uma obra, Willy e eu mostramo-nos concordes com a arquitetura sonora que Barenboim extrai de uma partitura musical.

De outro segmento das missivas eletrônicas de leitores não músicos, ficou-me a impressão de um não dito em meu texto anterior, pois tantos também me perguntam sobre a carreira de professor na Universidade e sugerem-me abordar esse espinhoso tema. Como meu blog existe sem interrupção desde Março de 2007, lembrar-lhes-ia que dois posts do “passado” têm, sob a égide cirúrgica ou fulcral – se assim pudermos a eles fazer referência, mormente aos leitores mais recentes – uma visão ampla após minha leitura de três livros, que entendo referenciais e dos quais teço comentários: “Os Últimos Intelectuais”, de Russel Jacoby (vide blog: 21/03/2009), “Teoria Geral da Estupidez Humana” e “A Nova Ordem Estupidológica”, de Vitor J. Rodrigues (vide blog: 14/08/2010). Penetram fundo no compartimento da docência na Universidade, sendo que os de Vitor J. Rodrigues mostram-se ainda bem mais enfáticos na crítica aguda às mentes docentes na Academia.

Mais de dez anos me separam do ensino na Universidade de São Paulo, graças à compulsória, àquela altura aos 70 anos. Contudo, responderia àqueles que me questionaram que, ao longo dos anos aprendi a diferenciar categorias de professores. Sucintamente, diria que na essência temos: vocacionado (inteira e prazerosamente dedicado ao ensino), burocrata (décadas a repassar os mesmíssimos ensinamentos, sem renovação e sem rubor), pesquisador, compartimentado em dois segmentos (brilhante nessa área e menos eficiente como didata, ou convincente nas duas atividades), carreirista (facilmente detectado, devido à indisfarçada volúpia pela ascensão na carreira diretiva, e para o qual a docência – mesmo que eficaz -, apresenta-se apenas como instrumento para voos intencionais visando ao Poder na Universidade), “profissional” de bolsas ou de subsídios para projetos de pesquisa, nem sempre de interesse. Creio que o leitor tirará conclusões abrangentes ao ler os posts mencionados, que aprofundam essa temática. Nesse item, em conversa na década de 1990 com colega de uma outra área que estava sempre com verbas a receber, dele ouvi que tinha muito maior trabalho em aprontar relatórios para os Institutos do que com a própria pesquisa!!!

O reencontro com Willy Corrêa de Oliveira, abastecido por tantas intenções mantidas no de profundis durante décadas e que estão aflorando, como se a buscar a recuperação do tempo, marca um momento prazeroso que, espero, perdure. Jamais, nas décadas da docência universitária, tivemos contato tão bom e descontraído. Nossos 80 anos trouxeram uma natural serenidade, mercê da decantação. Mesmo se tema possa levar a possível antagonismo de ideias, um absoluto respeito mútuo instaurou-se nessa releitura de relacionamento depois de longa hibernação. Impossível qualquer excesso. Não mais temos tanto tempo…

Today I publish messages received with comments on the previous post about the composer Willy Corrêa de Oliveira and his book “Passagens”. Willy and I have been contemporaries at the Department of Music of Universidade de São Paulo till we both retired. We met a few times recently due to my forthcoming recording of his work for piano “Recife, Infância, Espelhos…” and all I can say is that never in the past have we had such pleasant moments together. At our age, mutual respect prevails over any possible antagonism of ideas. And since many have asked my opinion about the academic career, I also explain briefly each of the categories into which I classify university teachers: naturally gifted, bureaucrats, researchers, careerists, experts in obtaining fellowships and grants from research funding institutions.

 

Reminiscências da infância

Por uma noite, em criança,
tive uma estrela que brilhou pela minha vida inteira.
Willy Corrêa de Oliveira
(Extraído da passagem “Apocalipse no fundo do quintal”)

Willy Corrêa de Oliveira é uma figura de convicções firmes em todas as áreas em que se pronuncia. Compositor de muitos méritos que viaja numa escrita multifacetada, extremamente cuidadosa e sensível. Um dos nomes essenciais da vanguarda no Brasil. Seu pensamento, rigorosamente pessoal, tem sempre profundo interesse. Diria que suas escolhas literárias, musicais e artísticas ratificam seu pensar.

Convivi com Willy durante décadas na Universidade. Éramos colegas. Acredito ter sido Willy o professor mais emblemático da Música na Universidade de São Paulo, pois parte considerável de seus alunos o veneravam e, não raro, seguiam-no pelos caminhos maltratados do entorno do Departamento. Mesmo aqueles que o criticavam jamais o faziam sob o aspecto da essência do que lhes era transmitido, mas sim por suas posturas de impacto e inusitadas frente à classe. Após nossas respectivas aposentadorias em 2008, através da compulsória, não mais o vi. Curiosamente, apesar da ausência de uma aproximação maior com Willy, tivemos dois recentes encontros em que pudemos nos entender bem amistosamente, como jamais ocorrera no campus universitário. É fato. Estamos exatamente nos 80 anos de idade e nessa faixa – é de se crer – distanciamo-nos de qualquer tentativa de simulacro. Fomos ao piano em seu estúdio e nos revezamos na mostragem que ele fez de exemplos de criações recentes e de outras, bem mais antigas, que toquei e que deverão fazer parte de meu próximo CD a ser gravado na Bélgica, na milenar Capela Saint-Hilarius em Müllem. A certa altura Willy me perguntou se tinha medo da morte. Minha resposta negativa deixou-o surpreso, pois asseverou o contrário.

Reações inesperadas de Willy Corrêa de Oliveira são proverbiais e ficaram registradas na memória. Em 1989 fomos ao Rio para a gravação de meu último LP no Brasil para o selo FUNARTE, dele a constar unicamente obras de sua autoria que estudei com entusiasmo. Gravei extenso repertório que seria lançado no ano seguinte. O desvario do recém empossado Presidente Collor de Mello, num desastroso início de mandato, inviabilizou a edição do material gravado, assim como os projetos que estavam em andamento na Instituição. O material desapareceu, exceção à coletânea “Recife, Infância, Espelhos…”, que Willy conservaria em fita cassete e mais tarde em CD particular. Adoro essas 16 peças, que estarão definitivamente gravadas, agora nas melhores condições planetárias possíveis na planura da região flamenga da Bélgica. Estou a me lembrar de que, durante os dias no Rio de Janeiro, fomos jantar com amigos e um convidado. Este era simplesmente esverdeado. A conversa encaminhou-se para a coloração inusitada do indivíduo, que mencionou ter recebido forte e irreversível radiação. Sentado ao seu lado, Willy estava intrigado e não falava. A certa altura – já o tema das conversas era outro – perguntou ao cidadão: “Você esteve em Chernobil?”, a se referir à catástrofe nuclear ocorrida em 1986 na então República Socialista Soviética da Ucrânia. O amargurado homem negou, mas observou que sofrera radiação no Brasil (creio ter mencionado a propagada contaminação por radioatividade ocorrida em Goiânia em 1987). Willy desajeitadamente levantou-se, sem querer provocar reações, e foi-se para outro assento.

Alegrou-me a dedicatória de dois Estudos para piano de Willy: “Hanns Eisler in memoriam: für das volk der DDR” (In memoriam Hanns Eisler: para o povo da DDR), composto em 1989, e “Estudo – retrato de José Eduardo Martins”, finalizado no dia de meu aniversário em 1990. O primeiro, tema com cinco variações, é verdadeira obra-prima, e o segundo a exigir do intérprete o controle absoluto da distância intervalar, mercê da presença de semicolcheias obsessivas em presto. Belo Estudo magistralmente escrito. Apresentei-os publicamente. “Hanns Eisler – para o povo da DDR” (Deutsche Demokratische Republik) em Potsdam e Berlim em fins de Maio e começos de Junho de 1989, na antiga Alemanha Oriental, meses antes da queda do muro. Ao receber o programa em Potsdam das mãos de um administrador – deputado igualmente -, observei que faltava a razão do título, ou seja, o “povo da DDR” enfatizado por Willy. Apenas respondeu-me que havia dois regimes distintos vigentes, mas que o povo da Alemanha era um só, motivo da supressão da sigla. Ao regressar entreguei o programa a Willy Corrêa de Oliveira e a Gilberto Mendes (1922-2016), pois deste também apresentara “Um Estudo? Webern e Eisler caminham nos mares do Sul”. A reação de Willy foi imediata, questionando-me sobre a ausência da sigla DDR. Após minha explicação, recusou-se a receber o programa. Se naquele momento causou-me forte estranheza, compreenderia mais tarde que a reação condizia com um dos atributos ou virtudes de Willy, a coerência.

Dos nossos dois encontros, que se prolongaram em clima extremamente cordial, recebi “Passagens” (São Paulo, Luzes no Asfalto, 2008), livro de Willy editado num formato pequeno, espécie de pasta a abrigar folhas soltas seguindo ordenação alfabética dos títulos, mas a dar liberdade ao leitor de poder fazer sua escolha, organizando-as ao seu gosto. Temos mais uma revisita de Willy à sua infância na cidade que o viu nascer, Recife. Curtas narrativas extraídas do seu de profundis, recuperando momentos, por vezes instantes, que permaneceram inalienáveis num compartimento secreto. E as pequenas passagens, inconfessas durante imensas décadas, fadadas estariam ao ostracismo não fosse a memória que a reteve. Experiências individuais, escondidas durante toda uma existência, afloram com tonalidades narrativas sedutoras. Passagens que contêm introspecção única, não transferível. A quem contaria essas observações lúdicas? Talvez uma ou outra narrativa pudesse ser conhecida. Todavia, a ideia do “livro”, dedicado ao neto Lucas Dessalien, possibilitou lidar com as reminiscências e ligar elos de uma infância feliz. As brevíssimas crônicas passam ao leitor a autenticidade. Willy as escreveu aos 70 anos, num estilo tão ao gosto da percepção dos pequeninos, a estabelecer a aura da magia. Senti esse poder imanente na coletânea para piano mencionada: “Recife, Infância, Espelhos…” de 1989.

A contracapa do livro sintetiza a origem da ideia que levaria à decantação das lembranças: “Neste livro tudo o que é contado ocorreu antes dos 10 anos de idade. Não obstante, não se trata de autobiografia porque o cotidiano nã0 foi cotado. Preferimos indigitar tão só as passagens que observadas desde certo termo da vida do passageiro, aparecessem como passos essenciais (fundamentos): aquelas que se engramaram no ser indiviso, e não só na memória”.

Compartimentados, a maioria dos mais de trinta textos tem títulos sugestivos. Tantos tratam desses lúdicos devaneios rememorados, idílios de uma só via, sonhos de miúdo a ter coleguinhas ou filhas de vizinho como referência. Estando na mesma faixa etária de Willy, também tive minhas musinhas. E como frequentavam minha mente… Willy dedica a elas várias passagens, nomeando-as ou simplesmente mencionando etereamente as pequenas figuras femininas. Seria na passagem “Memórias de Casas Novas” que Willy amplia o leque desses deliciosos idílios da infância e um desenho em espiral na folha do texto contém o nome de algumas dessas meninas. Uma frase em um desses recortes diz tanto: “Encontrei-a numa tarde e brincamos a tarde inteira, e amei-a (sem que ela soubesse) por semanas a fio”.

Uma das virtudes de Willy, tão característica na literatura russa, mormente Dostoiewsky, é a observação. Seja ao tratar do mobiliário e dos espaços onde viveu a infância, descritos nos pormenores, ou quando se fascina pela luz mutante a incidir numa sala ou terraço, o que faz com que o menino acompanhe essas transformações, à la manière de Monet e a Catedral de Rouen, o olhar do garoto recifense está sempre atento e as imagens ficariam indelevelmente gravadas na memória.

Paradoxalmente, Willy, professor que influenciou gerações, graças também à abrangência de seus conhecimentos multidirecionados, comenta em “Bandeira do Reino do Desespero”: “Fiquei no Internato do Colégio Americano Batista do Recife por um semestre (ou dois) na divisão das crianças mais tenras. Afirmavam que aprenderia mais e melhor e que a disciplina iria me fazer bem. Não foi verdade. Não aprendi nada, melhor: menos ainda. Em escola nenhuma: então e nunca”.

Em “Bestiário Besta”, Willy desfila animais domésticos, nomeando cães e pombos, discorre sobre uma patativa que comprou na feira e descobriu-se mais tarde que estava tuberculosa. No sudeste denominamos facão (o tórax seca e os ossos ficam salientes), moléstia que leva fatalmente à morte. Ficaria “furibundo com o comerciante de pássaros da feira que me havia enganado”. Teve galinha de estimação, poupada da morte certa que viria pelas mãos da Creusa, “…galinha que tinha o peito estofado (como câmara de ar inflada), mas não de vaidades… Não muito tempo após amanheceu morta. Chorei”. Estou a rememorar minha infância e o vasto quintal onde coabitavam araras, papagaios, pássaros vários, peixes em dois tanques bem grandes, galinheiro e devidas incubadoras e mais jabutis e cães. Uma festa!

A morte a conviver no cotidiano é lembrada por Willy nas “Três Mortes prematuras” e outras mais. Causam impacto na mente da criança, daí rememorá-las com certa ênfase. O imenso pianista Wilhelm Kempff não traduziria o efeito da morte de sua avó em sua imaginação de menino em “Cette Note Grave – Les années de la jeunesse”, em uma das mais pungentes páginas do gênero?

A antagonizar essa temática, histórias plenas de jocosidade levaram-me a gargalhar: “Mijo Mortal” e “Noite de Circo”. O garotinho entraria pela primeira vez num cômodo de despejo de sua morada e urinaria em uma parede. Fê-lo muitas vezes. Certo dia “… ouvi distintamente, Sila falando para Zulmira: ‘Cheiro horrível de xixi lá no quarto de despejos. Vou pôr fogo pra quebrar o cheiro; agora: dizem que seca o xixi da pessoa que fez e que a pessoa finda morrendo de xixi secado’. Perdi – naquela hora – a paz. Vivi dos pés à cabeça a estrutura fundamental de todas as angústias”. O intento realizado por Sila levou a criança ao desespero, contemporizado pelos adultos: “Vi-me cercado de familiares que me juravam que o meu xixi não ia secar não. Que eu não morreria, não”.

“Noite de circo” é hilariante. Willy escreve: “Fomos à loja comprar um fato novo com o fito de irmos ao circo no sábado. Sempre preferi circos a roupas, mas desta feita a conjunção roupa e circo valia alegria cheia. De boa vontade dispus-me a experimentar (frente ao espelho, e aos olhos e mãos das mulheres acertando as minudências das vestes sobre o corpo), pacientemente, até a eleição final para gáudio de todos nós. Um conjunto marrom com detalhes (pala, vira das mangas e bolsos) em bege xadrez diagonal com cores combinantes. Faziam vista até para quem gosta mais de circo e brinquedos de que de roupas”. Vem a noite esperada e o maravilhamento do circo, banda a tocar, a amazona em ousadas trocas de cavalos, palhaços, chineses habilíssimos nos trapézios e… “A seguir vieram os macacos. Multidão de macacos. Nunca vistos: tantos. As luzes rodeando-os para focá-los, e distingui – Céus! – todos (às dezenas): todos vestidos como eu: todas as roupas dos macacos eram iguaizinhas à minha. Idênticas, infalivelmente da mesmíssima confecção. Senti-me macaco (igualmente) na vida”. Prossegue o autor: “Alguém pode imaginar o que é uma criança ganhar uma roupa nova para estreá-la no sábado, dia inesquecível de um circo monumental, o sorriso franco luzido (chispando dos olhos, ventas, poros), e sentar-se na arquibancada para descobrir – em mágoa – que se assemelhava a macacos, e que toda a gente já sabia, estariam de olhos nele, arregalados, risotando do menino vestido na plateia, fora do picadeiro?” Willy finaliza que “nunca conseguiram que eu tornasse a usar a trágica indumentária”.

É de se salientar a recorrência da cantiga infantil Você gosta de mim? Ela surge nomeada, com o tema simples apresentado ou harmonizada no correr do livro. Faz-me lembrar da frase do poeta português José Gomes Ferreira: “Música minha antiga companheira desde os ouvidos de criança”.

“Passagens” encanta. Willy perpassa o cotidiano do menino que ele foi nesse incessante acúmulo que pode ser tão mais marcante se vivido numa plenitude. As várias mudanças de morada acentuam a diversidade geográfica que possibilita o aguçamento do miúdo observador. Sob outra égide, Willy também encanta pelo seu personalíssimo estilo literário. Se insere por vezes belas palavras arcaicas, trabalha o vernáculo a dar elasticidade a determinados termos (neologismos?), a ratificar que a pena do escriba é a mesma que desliza pelo papel pautado.

My comments on the book “Passagens”, written by Willy Corrêa de Oliveira, former professor of composition at Universidade de São Paulo and one of the essential names among Brazilian contemporary composers. The book is a collection of reminiscences of a happy childhood spent in Recife. Reflexive sometimes, hilarious others making me convulse with laughter but always delightful, his memories are written in a very personal prose style, as unique as his musical writing. An enthralling book one savours with pleasure.

 

O tempo implacável a retardar respostas

Não corro como corria
Nem salto como saltava
Mas vejo mais do que via
E sonho mais que sonhava

Agostinho da Silva

Entre as inúmeras mensagens recebidas através do endereço eletrônico inserido no menu do meu blog muitas continham questionamentos. Anotei-os criteriosamente por categorias para respostas futuras em blocos. Busco no presente post atender às dúvidas e às questões formuladas pelos leitores.

Perguntam-me sobre a atividade musical, as preferências literárias, as corridas de rua, as viagens ao Exterior, o distanciamento das apresentações no Brasil, as gravações e até a política em nosso país… Mui dificilmente deixo de atender leitores, mormente se há questionamentos urgentes merecendo respostas imediatas por e-mail, e essas, nesse caso, saem logo após a recepção, pois mensagens se acumulam e o retorno à nova leitura torna-se quase sempre improvável. Ao se distanciar no tempo, tendem às calendas. Portanto, temas que me são caros quando questionados, mas que demandam um maior debruçamento, se não os respondo de imediato deixo-os numa lista de espera. Nesses quase 12 anos de blogs ininterruptos jamais recebi mensagem desinteressante e esse fato é reconfortante e fonte de estímulo.

Não foram poucas as mensagens lamentando a ausência das ilustrações do saudoso amigo e imenso artista Luca Vitali. Sinto muito a sua falta, pois foram dezenas de blogs que, após minha leitura durante nossos almoços às terças-feiras no Natural da Terra, tiveram charges plenas de humor, ironia e perspicácia do amigo artista. Deixou-nos em 2013. Lembrá-lo atende não apenas leitores sensíveis, como é singela homenagem que lhe presto. Sob outro patamar, elogios nunca cessaram às participações sábias do ilustre compositor e pensador francês François Servenière. Lê em França todos os blogs e incontáveis vezes inseri seus comentários. Formávamos um trio que permanece em nossas mentes. Os Études Cosmiques para piano de Servenière, que gravei na Bélgica e saíram em França pelo selo ESOLEM em 2017, estão no Youtube. Foram escritos a partir da monumental Série Cósmica, pintada (acrílico sobre tela) por Luca Vitali.

Basicamente as questões levantadas por leitores são concernentes aos temas espalhados em textos ao longo dos blogs, que tiveram início aos 2 de Março de 2007. O fato de ter, ao passar dos anos, recebido com enorme prazer a adesão crescente de leitores, implica, sob outro aspecto, o desconhecimento que novos seguidores do blog têm de temas abordados desde o início. Sem querer ser redundante, mas a buscar atender aos muitos novos leitores, respondo a várias perguntas sobre assuntos comentados nesse extenso período.

Questionam-me sobre minha ausência nas programações musicais, principalmente em São Paulo. Assiduamente me apresentava na cidade em que nasci, dos meados da década de 1950 aos anos 2000. São Paulo viveu estertores da efervescência cultural voltada à música erudita até dois ou três decênios após a metade do século. Naqueles tempos, a mídia estaria possivelmente descompromissada com o lucro advindo da ação cultural, concedendo espaços nos jornais e revistas ao que de fato interessava culturalmente à cidade, sem contrapartida. Estou a me lembrar que jamais, nas décadas em que mais atuei em São Paulo, jornais deixaram de publicar matérias, tantas vezes bem extensas, quando repertório mostrava-se relevante. Como tenho o hábito de tudo arquivar, as integrais (opera omnia) de Jean-Philippe Rameau (Auditório Itália, dois recitais em 1971) e de Claude Debussy (MASP, quatro recitais solo mais a integral para dois pianos com minha mulher Regina no Cultura Artística em 1982) mereceram ampla cobertura, gratuita diga-se, na Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo e Jornal da Tarde. Nessas apresentações, assim como nas das integrais das Sonatas Bíblicas de Johan Kuhnau (1972) e dos Estudos de Alexandre Scriabine (1977), ambas no MASP, havia público excedente sentado nas escadarias.

Não poucas vezes mencionei que na década de 1950 São Paulo tinha cerca de 13 críticos musicais, a maioria músicos-professores respeitáveis, como Caldeira Filho (“O Estado de São Paulo”), H.J.Koellreutter e L.C.Vinholes (“Diário de São Paulo”), Arthur Kauffmann (“Folha da Noite”), Dinorá de Carvalho (“Diário da Noite”), Cyro Monteiro Brizolla (“Correio Paulistano”), Diogo Pacheco (“O Tempo”), Odette de Faria (“Shopping News”), Lilly Wolff (“Jornal Alemão”), exemplos sensíves a serem destacados. Outros tempos, certamente. Em sendo músicos, frequentavam os recitais dos intérpretes consagrados, mas também dos jovens. Opinavam com competência, incentivando o jovem talento ou indicando que caminhos outros existem. A cidade cresceu desmesuradamente e, bem inversamente, desapareceria o crítico músico de ofício, conscientemente opinativo pois, salvo alguma possível exceção. Sob outra égide, espaços nos jornais dedicados ao pulsar musical erudito existente fora dos grandes holofotes parecem não ser mais a orientação da imprensa. Basicamente desapareceram.

Foi a partir de 1995 que iniciei, aos 57 anos, gravações, no Exterior. Essa atividade foi decisiva, pois nas mais perfeitas condições tecnológicas possíveis, delas constando a qualidade indiscutível dos engenheiros de som – o saudoso Atanas Baynov, na Bulgária, e Johan Kennivé, na Bélgica -, acústicas absolutas dos locais de gravação e pianos rigorosamente impecáveis. Priorizei, dessa época ao presente, as gravações, e o CD a ser gravado em Maio deste ano na Bélgica será o 25º, que, assim como os anteriores será lançado na Europa. Essa menção à gravação é importante, pois a partir dela o recital continuou como atividade amorosa e benfazeja, mas não mais como necessidade imperiosa da apresentação pública pela mera apresentação… Esta atitude fez com que me distanciasse um pouco do público, por opção pessoal, respeitando-o e sentindo o calor que ele transmite. Paralelamente, a realidade tem mostrado que o próprio recital de piano, sob o aspecto geral, ao não ser precedido de ampla divulgação – publicidade essa destinada aos nomes amplamente divulgados no Exterior que se apresentam na cidade, ou para os intérpretes pátrios com patrocínios vários, faz com que as récitas de intérpretes que ainda resistem à sensível queda de público cheguem a ter caráter heroico. Esse fato é real e a se lamentar. Se me apresento anualmente uma ou duas vezes em São Paulo, busco fazê-lo em salas que abrigam público não numeroso, mas fiel à tradição. Sinto-me feliz em poder dar meus recitais nessas salas.

Ao leitor diria que, na década de 1990, estávamos em Belém do Pará, a grande pianista Yara Bernette (1920-2002) – uma das maiores do Continente -, o excelente violoncelista Antônio Lauro Del Claro e eu para apresentações distintas. Reunidos no terraço do Hotel em que estávamos hospedados, Bernette observou, para nossa surpresa, que o recital de piano tinha prazo certo de existência. Bernette, que durante décadas viveu em Hamburgo onde se tornaria chefe da cadeira de piano da Escola Superior de Música e Arte Dramática, observou que, independentemente dos nomes mediáticos, a grande maioria dos intérpretes estaria confinada às salas menores, pois teatros e salas monumentais não mais a abrigaria. Posteriormente, a escritora e historiadora de arquitetura Victoria Newhouse, em seu livro Site and Sound, explicita pormenorizadamente a problemática das grandes salas, muitas delas não mais ocupadas na plenitude, e a real possibilidade das salas menores. Anualmente, as visitas a Portugal e Bélgica e outras à França levam-me às apresentações que me entusiasmam, a ter sempre público seletivo em salas que abrigam umas poucas centenas de ouvintes. Creio que a explanação estaria a responder aos questionamentos de inúmeros leitores.

Perguntaram-me sobre as resenhas e qual o motivo de preferências sensíveis, como música e aventuras. Sirvo-me de frase do poeta português José Gomes Ferreira, que observava: “Música, minha antiga companheira desde os ouvidos da infância”. Temas relacionados às aventuras e conquistas do homem através dos tempos também me apaixonavam desde a tenra idade. Eis duas temáticas que sempre foram prioridades nas minhas leituras, Logicamente, tantos outros livros abordando romance, filosofia, arte, literatura epistolar e outras mais permaneceram ao longo, despertando constante interesse. Desde os meus 10 anos habituei-me à leitura, incentivado pelo nosso saudoso pai. Fazia-nos ler, pois somos quatro irmãos, um capítulo de livro por ele escolhido, sempre a priorizar a melhor literatura, preferencialmente a portuguesa – cuidado com o estilo -, e tínhamos de redigir diariamente resumo do que líamos, em apenas uma página. O pai corrigia, atribuía avaliações e uns poucos cruzeiros (moeda da época) para as sinopses precisas, sem erros. Dizia ele que o espírito de síntese era fundamento essencial na leitura e na vida. Esses cruzeiros revertiam-se em livros, escolhidos doravante por cada um de nós nas visitas que fazíamos no último sábado do mês às livrarias do centro de São Paulo. Somavam-se esses cruzeiros a outros que eram atribuídos à escuta de LPs de música clássica que nosso pai adquiria mensalmente. Após a audição escrevíamos o nome do compositor numa papeleta e nem sempre acertávamos, pois o acerto vinha após detectarmos o período histórico e o criador da composição. Nosso pai chegou a ter 5.000 LPs!!! Essas considerações são necessárias, pois a leitura virou respiração e a audição de música, uma constante, principalmente após o advento do Youtube.

Três leitores indagam-me sobre a desativada equipe de corridas TA LENTOS e as causas de seu desaparecimento. Longe de ser uma equipe como tantas, organizada oficialmente, com treinos semanais e programação, a TA LENTOS reunia cerca de 10 amigos, a grande maioria descendente de japoneses, para encontros em corridas determinadas, entre elas as provas de revezamento da Ayrton Senna (Autódromo de Interlagos) e a do Pão de Açucar (Ibirapuera). Congraçamento. alegria contagiante e a permanência na arena durante toda a competição de revezamento que para nós, oito corredores, suplantava bem as quatro horas de duração. O meu ingresso deu-se em 2008. Após sessões de quimioterapia a que me submeti para tratar de um câncer que quase me levou aos anjinhos, continuei e continuo, hoje com visitas periódicas, a frequentar o consultório da mesma médica que me acompanha desde 2004, a competente hematologista e hemoterapeuta, Drª Ana Rita Burgos Manhani. Como chefe da enfermagem da clínica em que trabalhava a Drª Ana Rita, a enfermeira Cristina Ito, ao saber que passara a correr em 2008, convidou-me a ingressar na TA LENTOS. Foram anos muito felizes participando de corridas em São Paulo, Mogi das Cruzes e Osasco. Com o desligamento de alguns, a TA LENTOS perdeu o sentido, mas não o vínculo amistoso, pois constantemente encontro três corredores da equipe, o casal Américo-Regina Umeda e André Shigueo nas muitas corridas de rua existentes. Shigueo até hoje prestigia a TA LENTOS ao vestir a camisa da equipe com desenho jocoso realizado por Luca Vitali.

Outros leitores escrevem para que opine esporadicamente sobre política. Fi-lo pouquíssimas vezes. Há incontáveis articulistas e radialistas que tratam do tema de maneira competente. Contudo, segmento expressivo entre eles que, graças à carga repetitiva do discuso com nítida orientação, é detectado facilmente pelo leitor ou ouvinte atento. Quando percebo o “ranço” partidário, passo ao largo. Creio, todavia, que a corrupção endêmica, acentuada de maneira estratosférica no Brasil neste século, verdadeiro saque aos cofres públicos, terá uma diminuição sensível com os novos governantes, mas estará longe de desaparecer, pois enraizada nessa relação espúria político-empresário. Sob outro aspecto, o povo, razão essencial de uma nação, basicamente não mais crê em nossa Justiça. Triste fato.

Por fim, as mensagens estimulantes apenas acentuam a vontade de continuar a escrever, uma de minhas grandes alegrias. Desvinculado de quaisquer interesses relacionados a patrocínios, felizmente nunca buscados, o que me possibilita a total independência, prossigo aos 80 anos escrevendo com o mesmo prazer que me levava a redigir artigos para o jornal do Liceu Pasteur, “O Arauto”, na longínqua juventude, quando em bancos escolares. E os textos continuarão a fluir, assim espero.

In this post I reply to questions  frequently posed by readers: my musical engagements, reading choices, trips, recordings, races and even my political opinions. The messages received are a stimulus to go on writing, something I do with the same enthusiasm of the time I was a student at Liceu Pasteur and a “columnist” of “O Arauto”, the school newspaper.