O pensamento abrangente de André Souris
Uma forma sempre é conquistada
sobre outra forma da qual ela aparenta manter traços.
Nem precocidade, tampouco o gênio
permitem retomar diretamente a vida:
ser precoce é somente copiar mais cedo.
André Malraux
Uma das diferenças basilares entre blog privado e as publicações mediáticas é o tempo. Basicamente jornais e revistas, premidos pelo imediatismo decorrente de um lançamento de livro previamente divulgado pelos meios de comunicação, concentram resenhas, tantas vezes redigidas às pressas, sobre edições recentes. Quando determinado livro de passado remoto ou não tão distante recebe o olhar acalentado pelo passar dos anos, poderíamos situar a crítica como comentário. Desvinculada de pressões, o comentário de livro não hodierno tende a receber maior debruçamento por motivos vários, a preponderar o tempo de decantação daquele que se propôs a escrever.
Ao longo dos anos, inúmeras vezes mencionei no espaço reservado ao blog o livro “Conditions de la Musique” (Bruxelles-Paris, Université de Bruxelles, Centre National de la Recherche Scientifique, 1976), do multifacetado músico belga André Souris (1899-1970), compositor, regente, professor, crítico, editor de obras antigas. Um grande mestre. Desde sua publicação, “Conditions de la Musique” é um dos livros que mais consulto, tão forte o conteúdo reflexivo emanado em tantos compartimentos da imensidão que é a Música. No presente blog abordarei alguns aspectos dessa magnífica obra.
“Conditions de la Musique” desfila em suas 311 páginas temas essenciais da área musical. Tem-se duas seções distintas. Em uma primeira, que leva o título do compêndio e dividida em três capítulos, são estudados primeiramente segmentos essenciais da escrita musical: forma, música e escrita, a função do intérprete. Em outro capítulo: o silêncio e a música, contraponto, polifonia e harmonia, matérias instrumentais. Num terceiro, André Souris estuda as fontes da criação musical: estilo, timbre e técnicas instrumentais, as correspondências (a concepção do mundo), abordagens espirituais do músico. Na segunda seção, “Escolhas e outros escritos”, André Souris analisará com acuidade temas relativos a gêneros musicais, música e filme, literatura. Destaquem-se: “Imitação da música de cinema”, “Sartre e os músicos”, “Sobre o dodecafonismo das origens aos nossos dias”, “As fontes sensíveis da música serial”. A seguir, aborda textos fulcrais com títulos precisos: “Bach, hoje”, “O espaço mozartiano”, “Debussy e a nova concepção do timbre”, “Poética musical de Debussy”, “Debussy e Stravinsky” e “O senso do sagrado na música de Stravinsky”. Depois, Souris retorna, sobre outra égide, aos elementos da escrita musical, como: “Notas sobre o ritmo concreto”, “Sobre alguns termos fundamentais do vocabulário musical…”, “Problemas da análise”, “Alaúde e cravo franceses por volta de 1650”.
A fim de transmitir conceitos essenciais de André Souris, de alguns desses segmentos extraí passagens que entendo de definição, pois o autor em suas colocações evita o abominável “achismo”, perigoso artifício que sensibiliza os incautos. Os escritos têm a antecedê-los a profunda reflexão.
Inicialmente vários segmentos reunidos fazem parte de seminários oferecidos e o didatismo parece evidente, mesmo que desprovido de qualquer empáfia ou doutrinação, o que é salutar. Considera que “O espírito de nossa empreitada será pois deliberadamente atual, documental e crítico. Quanto ao método, ele se inspirará na maiêutica, de maneira a deixar a cada um a liberdade de seus movimentos e talvez ajudando-o a descobrir possibilidades insuspeitas”.
Considerando a forma musical, André Souris emite conceitos de interesse: “Uma nota, uma cor, uma linha isolada são apenas abstrações. A única realidade é a ‘Gestalt’. Poderíamos traduzir aproximadamente esse termo por estrutura, organização, totalidade, mas o emprego sistemático da palavra nestes últimos vinte anos fez com que a entendêssemos sob o significado vago de forma”. Continua: “As formas são unidades orgânicas individualizadas e limitadas no espaço e no tempo; são totalidades de funções, determinadas somente pelas leis da organização. O papel essencial da teoria da forma é a de descobrir e formular essas leis”.
No capítulo reservado à “La Musique et l’Écriture”, Souris apreende a sensação da escuta do compositor ao ouvir pela primeira vez uma sua criação: “Não receio revelar um segredo, geralmente bem guardado! O autor que ouve pela primeira vez sua música de orquestra mergulha num cenário outro. Ele havia imaginado os temas, as nuances, as harmonias, os movimentos dos quais ele se considerava o mestre e criador, e eis que ele ouve outra coisa daquilo previsto. Escuta uma música que, exatamente, não é dele. Fato curioso, raramente ele sofre. Sua única preocupação é a seguir encontrar os traços de seu trabalho de escrita, reconhecer os temas, esquemas, ritmos. Uma vez certo de ter reconhecido esses materiais, não lhe resta outra coisa senão aceitá-los – e por vezes glorificar-se diante de seus confrades”.
Sobre a prevalência do piano: “Quanto à composição, ela se reduz mais e mais no emprego de receita de escrituras. A invenção real não poderia eclodir que sobre um instrumento. Foi a música para piano que basicamente se beneficiou e, como todos os compositores tocavam piano, toda composição foi inicialmente concebida para esse instrumento para ser a seguir, por um jogo de escrita, passada para outros instrumentos e, mesmo de maneira ampla, para orquestra”.
Quanto ao intérprete, temática tantas vezes colocada neste espaço, André Souris tem posicionamento singular. Segundo ele – consideremos o compositor seu coetâneo -, “o compositor deve ter para com o intérprete uma política de prudência, observar seus reflexos, distinguir em seu comportamento tudo que possa servi-lo e tudo que possa ser rejeitado. Em suma, deve o compositor estudar a psicologia do intérprete, se ele quiser recuperar sobre a sua composição um certo poder perdido”. Se esse procedimento não é possível em relação aos compositores do passado, ficaria o alerta para os executantes no sentido do rigor frente à partitura contemporânea.
Estende seu pensamento ao tripé compositor, intérprete e ouvinte, tema igualmente recorrente, mas com uma percepção de interesse no olhar de André Souris: “A relação entre os três é extremamente diversa, por vezes contraditória, outras, mais confusa. Para o ouvinte, compositor e intérprete fazem parte de uma só coisa, mesmo que ele acredite distingui-los. Na realidade, o ouvinte preocupa-se pouco com as intenções do autor e só tem interesse pelo que ouve, o que, reflexão feita, temos que aprovar”.
Souris pormenoriza as atitudes do intérprete: “Seu desejo de música é primeiramente de ordem íntima, estritamente limitado a si mesmo. Ele mantém com seu instrumento um comércio orgânico que lhe proporciona prazeres elementares. Fazer o som, isso provoca uma alegria sensual, como o ato de mastigar uma boa pasta, moldar a argila. O trabalho do som leva-o a um estado sonhador entorpecido o qual lhe compraz, sonho até certo ponto biológico e que retira do instrumento que faz nascer o som a qualidade substancial. Por esse ato elementar, o instrumentista se torna seu próprio instrumento”.
André Souris se indispõe com a quantidade de matérias da área musical a que o aluno é submetido no capítulo reservado às “Démarches spirituelles du musicien”: “O que me parece mais grave nos estudos musicais é que eles extenuam a sensibilidade auricular através de trabalhos forçados sobre os instrumentos. Isso ocorre porque o aprendiz virtuose produz o som durante dez horas por dia e na sequência seu estudo, ao invés de ser orientado para o som que ele produz, é inteiramente concentrado sobre os meios de o produzir. Basta abrir não importa qual obra consagrada ao piano, por exemplo, para nos inteirarmos da preocupação predominante ou mesmo excessiva dos pedagogos”.
“Conditions de la Musique” armazena quantidade de considerações da maior abrangência. No próximo blog comentarei alguns outros escritos contidos no livro de André Souris, mormente os que se estendem de J.S.Bach à música serial.
Comments on the book “Conditions de la Musique”, written by André Souris (1899-1970), the multifaceted Belgian composer, conductor, teacher and music critic. Souris, a real master in his field, addresses the various compartments of the art of Music with proficiency and originality. In the present blog I mention some aspects of this excellent work, which I visit on a regular basis since it was first published.