O estilo sob a ótica de André Souris
Jamais senti tanto entusiasmo ao trabalhar…
Ainda tenho muito a dizer!
Há tantas coisas musicais que jamais foram realizadas…
Claude Debussy (1914)
O blog anterior não apenas suscitou comentários a apontar o conteúdo de “Conditions de la Musique” de André Souris. Solicitam-me explorar mais os temas que menciono no post precedente. Fá-lo-ei certamente ao longo do ano. O espaço a que me proponho no blog, a tangenciar várias temáticas culturais, abrigará outras captações desse instigante e abrangente livro do músico belga. Comprometi-me a escrever um novo post a prosseguir comentários, mormente os posicionamentos de André Souris sobre estilo, J.S.Bach, Mozart, Debussy e Stravinsky. Gustavo, leitor assíduo e violinista de uma igreja evangélica, sugere pormenorizar-me no estilo, tema tratado pelo autor e mencionado no blog anterior. Atendo ao seu pedido e insiro no presente o pensamento de André Souris sobre estilo, tecendo no decorrer alguns comentários.
A preceder essas colocações, transmito ao leitor a opinião do compositor e pensador francês François Servenière sobre o post da semana que passou. Escreve:
“Interessei-me pelo artigo sobre o livro de André Souris, que acabo de comprar via internet, pois desconhecia a publicação. Lembro-me de você já ter mencionado o livro. Também li textos interessantes sobre o princípio da Gestalt. Compartilho integralmente e não de hoje esses pontos de vista sobre a forma musical, como expresso no blog anterior, pois se trata de pura abstração que encontra sua fonte primeira nos princípios da melopeia sobre a base literária. Após, a música de desprende da literatura para se tornar uma entidade inteiramente à parte.
Gostaria de imediato de transmitir-lhe constatações:
- o som e sua organização são anteriores ao pensamento organizado, eles o precedem; sem som, nenhuma comunicação;
- a música parece paradoxal no meio das outras artes;
- na literatura, pintura, escultura, arquitetura, a evolução em direção à modernidade se faz do concreto para o abstrato;
- na música construída, parte-se do abstrato (sonhos, emoções…) para direcionar-se ao concreto. Seria no século XX a eclosão da música concreta, barulhos, imitações de barulhos múltiplos…
Nossa época pareceria destinada a uma redefinição geral. Os seres vivos são confrontados com esses maelstrons acima de nossas possibilidades e nós não somos senão que fúteis atores, átomos mergulhados na imensidade do universo e de suas forças dantescas. Não somos que transmissores dessa força que é a vida, passageiros. A música, a mais bela expressão dessa energia universal. Estou persuadido de que lerei o livro de André Souris com entusiasmo”.
A respeito do estilo, Souris considera que na visão do compositor que cria, ele é autor e observador. Estilos se consolidam através de tantas outras escutas anteriores. Escreve: “É a partir de uma música já existente que o músico descobre sua natureza e seu primeiro movimento é o de, por sua vez, falar essa linguagem. Daí serem pastiches suas criações iniciais. Sua primeira linguagem lhe é dada, sendo aquela de sua época e de seu local de origem. Sua mentalidade musical é determinada pelas formas de um estilo. Surge num estilo assim como se nasce francês ou chinês. Na Idade Média o que incitou a escrever música não foi inicialmente a louvação a Deus, mas sim as melodias gregorianas; na Renascença, não foi o fausto das cortes, mas as combinações do contraponto; no Romantismo não teria sido a contemplação da natureza, mas inicialmente os processos da harmonia e da orquestra. A primeira preocupação do músico é a de mergulhar no mundo das formas sonoras que o cercam e, no momento que conhece seu destino como criatura, confundir-se no anonimato do estilo de sua época. Se num futuro quiser falar a sua própria língua, poderá fazê-lo a partir dos elementos que constituem a linguagem de seus contemporâneos. O estilo de uma época é pois para o músico, como aliás para o artista em geral, a fonte principal da sua criação e não é senão no interior desse estilo que lhe será possível sentir a liberdade. Na realidade, essa liberdade é relativa, e os caracteres particulares de cada autor param nos caracteres gerais de um estilo existente”. As considerações de André Souris nessa temática implicam o entendimento de uma criação cujo estilo pertence a uma época e não a outra determinada, num amplo leque. Em muitos blogs anteriores considerei que, independentemente do estilo de um período, o compositor de talento imprime à sua criação suas impressões digitais. Tem-se pois o estilo individual, que pode navegar em tendências várias. Por vezes o idiomático escritural de um compositor (ferramental) pode evidenciar outra categoria de estilo. Em publicação de 1977 eu citava o exemplo do compositor russo Alexandre Scriabine, que não pode ser reconhecido como mesmo autor em suas obras extremas da existência devido a uma extraordinária evolução na linguagem musical, mas sim detectado através de procedimentos técnico-pianísticos, como a quase absoluta ausência da passagem do polegar – em quase toda a produção – ou ainda a presença – esta sim progressiva – dos motivos neurótico-obsessivos. A ausência dessas “impressões digitais” estilísticas sinaliza na direção de obra amorfa. A não “evolução” na escrita teria um dado positivo, segundo Souris, pois “tendo o compositor iniciado sua trajetória se servindo de pastiche de determinado estilo, pode ocorrer que continue assim procedendo até o fim de seus dias. Esse segmento é majoritário e, paradoxalmente, determinante para que estilos se fixem por longos períodos”. Considera que mesmo compositores como J.S.Bach e Mozart, que “começaram por imitar determinado estilo, compuseram seguindo esse estilo de maneira automática para a transmissão de seus pensamentos mais naturais”. André Souris entende que há “incitação particular que o compositor descobre no interior de um estilo. São os pretextos fornecidos pelos artifícios da técnica”. O compositor estuda-a, convive com as tendências vigentes, aprende o “ferramental”, mas, a existir talento, a marca inalienável da individualidade estará presente. Bastam poucos compassos para que um músico entenda que determinada composição foi criada por Schubert, Schumann, Chopin, Liszt, Wagner, Tchaikowsky, Debussy, Fauré, como alguns dos inúmeros exemplos significativos.
As numerosas tendências hodiernas tirariam de foco a detectação do estilo, mormente pelo fato de que elas são tantas vezes efêmeras. Contudo, ainda causam impacto a constatação dos estilos musicais do passado e as “adaptações” dos compositores frente às épocas em que atuaram. Uns poucos deram passos adiante e novos estilos surgiram. Conhecer o estilo de um criador é um dos prazeres da arte musical.
Resuming the subject of last week’s post — André Souris’ book “Conditions de la Musique” — this post addresses the author’s thoughts about music style. For him, the style of a given time is an artist’s main source of creation and only within this style he can develop an artistic language of his own.
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