Navegando Posts publicados em abril, 2019

A partir do “trailer” de “O Labirinto da Saudade”

Em todo o caso, que se sinta só;
mas não vá supor que é muito grande;
da sua grandeza, se a tiver real,
fará parte o supor que os outros são pequenos.
Agostinho da Silva
(“Entrevistas”)

Recebi de dileto amigo português, o arquiteto António Menéres, “trailer” do filme de Manuel Gonçalves Mendes, “O Labirinto da Saudade”, a partir do livro homônimo do notável filósofo, ensaísta e professor Eduardo Lourenço (1923- ). Denominado “O Bar da Eternidade”, essa pequena e substanciosa cena de quatro minutos revela temas fulcrais da existência. Há um diálogo de extrema relevância entre Eduardo Lourenço e uma figura igualmente ilustre da cultura em Portugal, o arquiteto Álvaro Siza Vieira (1933- ).

Inicialmente Siza Vieira questiona: “O que ficará de nós, homens e mulheres, se é que alguma coisa fica, quando partirmos em férias?” a receber do filósofo: “Quem dera que a resposta à sua pergunta fosse essa tão lírica e tão futurante como o partir em férias. A nossa própria morte é-nos tão hostil que nós nem em sonhos morremos. A morte verdadeira é a do outro. A do outro que existiu para nós. Que foi tudo para nós, que foi o absoluto para nós. E essa que é a morte real. As outras mortes são ilusórias, mesmo a nossa, sobretudo a nossa”.

Segue-se um diálogo enriquecedor em torno da vida e da morte, das incertezas a envolver a complexa dialética em torno da passagem inexorável, mormente se considerada for a etariedade dos insignes envolvidos.

Siza Vieira observa nada sabermos sobre nascimento, vida e morte, mas sim sobre continuidade através das gerações que se sucedem, “continuidade da vida, e quando um de nós morre há filhos, netos, música para músicos, artes, escrita, literatura… Não desaparecemos completamente. O mundo continua. A História, no fundo, tem esse papel de sugerir ou de fazer real uma continuidade, agora a morte não”. A colocação de Siza provoca resposta essencial de Eduardo Lourenço: “O problema é que, consciente ou inconscientemente, escrevemos como se fôssemos eternos. Sem essa ilusão de eternidade como coisa nossa, nós não escreveríamos nada de realmente grandioso. O que os homens querem é que aquilo se transfigure numa espécie de estátua, que se pode tocar, viver e permanecer através dos séculos”. Após louvar Siza Vieira, dele recebe o testemunho: “Eu faço os meus projetos com a ideia de que… essa ideia de que é para ficar. Mas pensando friamente, não é bem assim. Também a construção, muitas vezes, não é durável. É vulnerável…”. Eduardo Lourenço de imediato afirma: “Hiroshima existia e foi destruída em nove segundos. É como se fossem feridas que a Humanidade faz a si mesma, não é? E essas sem reparação. Porque foram destruídas e não podem ser reconstruídas de nenhuma maneira. Aquilo que de mais belo há na humanidade é que nós somos submersos às mesmas forças que regem realmente o mundo. Porque é que nós escaparíamos, quando tudo o que foi criado está condenado a desaparecer?”, conceitos concluídos por Siza Vieira: “E se assim não fosse talvez se tornasse insuportável”.

Consideremos as observações sobre o legado, esperançosas inicialmente por parte de Siza Vieira, mas com a ressalva “… não é bem assim”. Por sua vez, Eduardo Lourenço, mais cético nesse item, diz “… tudo o que foi criado está condenado a desaparecer”.

O legado de obra física sempre foi mais vulnerável ao desaparecimento através dos séculos. São incontáveis os monumentos, obras de arte, pinturas, bibliotecas que sucumbiram ao tempo por causas naturais, intencionais ou imprevistas. Alguns exemplos são implacáveis: Biblioteca de Alexandria, no período helenístico, teria sido destruída pelo fogo; Biblioteca Real de Lisboa arrasada durante o terremoto de 1755, assim como inúmeros monumentos históricos da cidade; Catedral Notre-Dame de Reims semidestruída pelos bombardeios alemães na guerra 1914-1918; pinturas de Manabu Mabe, que seriam expostas em grande retrospectiva no Japão, perderam-e em acidente aéreo em 1978; O Templo de Baalshamin, edificado no início do primeiro milênio, explodido pelos integrantes do então denominado EI em 2015; Museu Nacional do Rio de Janeiro e seu extraordinário acervo consumido pelo fogo em 2018, assim como parte considerável da Catedral de Notre-Dame de Paris bem recentemente. O tempo inexorável corroeu tantas obras arquitetônicas na Grécia e na Roma Antigas, assim como na Península Ibérica e em muitos outros pontos geográficos. Considere-se ainda a ação de descaso de tantas autoridades espalhadas pelo mundo, que pouco fazem para a conservação de obras de arte expostas às intempéries.

Esses poucos, mas significativos exemplos, ratificam o posicionamento de Eduardo Lourenço. Contudo, exceções ou exceção há nesse legado. Pensando-se na literatura e na música, verifica-se que a herança não se atém à obra de arte material inerte que habita galerias e museus e é vista por legiões de frequentadores. Walter Benjamin, no ensaio publicado em 1936, “A obra de arte na era da sua reprodutividade técnica”, já argumentava que a reprodução em tantos formatos de uma obra de arte causou a perda da “aura”, depreendendo dessa constatação, a autenticidade. O hic et nunc desapareceria para sempre. Considere-se que a obra de arte material, única e autêntica, nessa categoria incluindo-se a pintura, a escultura e a arquitetura, tem sofrido constantemente o lento e inexorável desaparecimento.

Quanto à literatura, ela independe da presença física dos manuscritos, pois obviamente subsiste sem contestação através da reprodução. Os museus, arquivos e bibliotecas dão a guarida necessária aos textos originais, majoritariamente distantes do público leigo e consultados por especialistas quando se faz necessário. Portanto, perdurarão em edições divulgadas em versões para tantas línguas. O teatro, que traduz em cena o que reza segmento literário, vive do intérprete, ou seja, do ator. Este é geograficamente regionalizado, pois sua atuação é realizada frente àqueles que compartilham o mesmo idioma. Sua internacionalização é basicamente exígua, sendo que o texto teatral não o é, pois vertido para outros idiomas encontrará atores de outros países para divulgá-lo e o legado estaria garantido.

Seria a música a única área em que o legado estaria salvaguardado geograficamente em sua abrangência territorial plena. Os sons são compreendidos em todos os rincões e o amálgama compositor-intérprete não tem fronteiras. Todos os povos compreendem a unicidade da Música.

Partituras, assim como textos literários, podem subsistir sob a proteção de entidades que os abrigam. Se essas desaparecerem por múltiplas razões, a reprodução ad infinitum garante parte essencial de acervos, perenidade pois. Para a interpretação o legado teria tempo finito, pois mesmo a saber que processos tecnológicos estariam sempre in progress, haverá um momento, acredita-se, que distorções sonoras quanto às centenárias gravações ocorrerão, como já acontece com muitos registros fonográficos das primeiras décadas do século XX. Saliente-se que extraordinários avanços tecnológicos têm conseguido resultados surpreendentes quanto às antigas gravações.

Num outro patamar, a arte cinematográfica seria aquela, talvez, que mais tem sofrido a ação do tempo. Quão mais antigos os filmes de qualidade, mais ficam restritos a públicos especializados, admiradores da arte específica. Para o grande público, ávido do novo, mais acentuadamente se processa o distanciamento com o passado cinematográfico. Contudo, igualmente no caso, o legado estaria garantido mercê de processos novos, que têm conseguido êxito na restauração de originais. Sob outra égide, o filme se internacionaliza através das legendas ou das dublagens, estas sempre lamentáveis.

Nada sabemos sobre a duração do planeta. Incógnita. A destruição sistemática das reservas naturais, os conflitos os mais generalizados movidos por motivos de várias ordens: religioso, ideológico, racismo; guerras intestinas e terrorismo; descaso; a decadência dos costumes, tudo não estaria tornando a terra uma gigantesca panela de pressão com mínimo escape? Para os mais pessimistas, toda discussão em torno do legado esbarraria nessa desesperança. Todavia, a presença constante da morte, mors certa hora incerta, assim como a necessidade de se pensar em legados, ainda movem a humanidade, apesar da sábia advertência de Eduardo Lourenço: “Porque é que nós escaparíamos quando tudo o que foi criado está condenado a desaparecer?”.

This post discusses views about life, death and human legacy to History. It was inspired by a conversation between philosopher Eduardo Lourenço and architect Álvaro Siza Vieira, two of the most influential Portuguese intellectuals of the 20th and early 21st centuries.


Gisèle Brelet e a ampla abertura sobre interpretação

Quando uma interpretação é manipulada com o objetivo de se conseguir um efeito particular,
ela deixa de ser autêntica e, por conseguinte, de ser ética.
Daniel Barenboim
(“La Musique est un tout”)

Neste segundo post, a abordar o primeiro volume de “L’Interprétation Créatrice”, a musicóloga francesa Gisèle Brelet estende suas considerações sobre a intrínseca ligação compositor-intérprete. Ao longo das décadas tenho lido literatura específica, contudo acredito ser a obra da autora a que mais penetra na multidiversidade representada pelo imperioso amálgama a envolver a criação e a imprescindível presença do intérprete. Seria lógico supor que os dois livros datem de 1951 e que, a partir da segunda metade do século XX, tenha havido outras possibilidades a envolver o compositor e a interpretação, mercê de processos de expressão musical sempre em curso, como a eletrônica. Contudo, a essência da relação compositor-intérprete permanece intacta quanto à fidelidade da transmissão, exceção clara para intervenções do executante, expressas pelo compositor quando o libera para improvisações ou mesmo propiciando ao intérprete a leitura mais livre.

A imensa prospecção que Gisèle Brelet empreende nessa temática, até certo ponto espinhosa, impede-me de penetrá-la de maneira completa. Alguns aspectos, que entendo de maior interesse para o leitor, serão abordados no presente post.

Segundo a autora, “para determinados intérpretes a inteligência pode matar a espontaneidade dos reflexos – essa exigência do gesto sem a qual não pode haver nem descontração, nem precisão, tampouco vivacidade. A reflexão pode ser inibidora e por vezes se torna muito difícil refazer à vontade a espontaneidade perdida. O problema para a inteligência é o de reencontrar a espontaneidade e de liberá-la para melhores desempenhos. Ao contrário da contração dos gestos, a inteligência deve permitir ao executante descobrir sua atividade mais natural e descontraída”. A autora tece considerações sobre espontaneidade, a dizer que “a execução de uma criança, que vence as dificuldades ignorando-as, aparenta-se à execução de um grande artista, mas entenda-se, ela é apenas um símbolo – símbolo em certo ponto enganoso. À espontaneidade de uma criança, psicológica, opõe-se a do artista, neste caso especificamente artística, diga-se, orientada segundo as exigências de perfeição formal de uma técnica. São duas espontaneidades iguais e contrárias, pois uma não pode se desenvolver que em detrimento da outra. A espontaneidade psicológica da criança não seria conservada pelo artista: ela só pode ser reconquistada sobre um plano diferente e transcendente”. Obviamente, essa criança de que nos fala Brelet é aquela popularmente tida como prodígio. Por mais talentoso que possa ser um miúdo, sua interpretação, mesmo que virtuosística, refletirá o que lhe foi transmitido, ou seja, há forte dose de imitação. Legiões de crianças do Extremo Oriente mostram-se habilíssimas, mas ficaria a pergunta “o que sabem da Cultura Ocidental?” Só o tempo, essa presença indisfarçável, poderá propiciar à criança, já munida de sólido ferramental técnico, a sedimentação que se faz necessária. São aproximadamente 30 milhões de miúdos estudando piano na China!!! O passar dos anos provoca seleção natural, mas legião de pianistas orientais têm “invadido” o Ocidente, excelentes velocistas, nem tanto músicos na acepção.

Gisèle Brelet se preocupa com a solidão do intérprete ao apenas se escutar, encontrando nessa situação o pleno prazer: “É perigoso para o executante muito se ouvir e ter prazer nesse ato, pois corre o risco de preferir seus estados ao seus amadurecimentos; na verdade, o intérprete não tem o direito de se escutar e de contemplar seu tocar, a não ser que, em detrimento de buscar essa audição de si mesmo como ocasião de uma alegria preguiçosa, buscar e encontrar a prova de seu aprofundamento e a confirmação de sua alegria durante a execução”.

Estende seu pensar ao observar “… a técnica, desvinculada de todos os conteúdos, utiliza contornos estanques e invariáveis e não é senão mecanismo; e o executante se esforça em vão por revitalizar sua emoção através de rubatos exagerados que deformam a música – e que nenhum sopro de vida poderá animar. Não obstante, há na técnica, para aqueles que a compreendem, uma virtude de atualidade, um secreto poder de incessantemente regenerar o sentimento musical e de conservar um eterno frescor”.

Gisèle Brelet desenvolve a temática andamento: “Indubitavelmente, certos tempi são falsos e contrários às obras. Mas não se trata de tempo arquétipo, pois o tempo verdadeiro comporta uma certa margem de indeterminação, margem que, precisamente, permitirá ao executante impor à obra o tempo segundo o qual ele a vive e de fazer assim, de sua forma, a forma mesma de sua duração íntima”.

Reiteradas vezes nesse espaço tenho comentado a constante aceleração nos tempi de obras virtuosísticas. Essa constante se mostraria mais evidente nas novas gerações de intérpretes oriundas do Extremo Oriente e do Leste Europeu. A aceleração em quase todas as áreas da vida moderna, os recordes a serem batidos, mormente nos esportes, têm fatalmente influenciado intérpretes de instrumentos solo. Os muitos concursos internacionais de piano têm propiciado essas verdadeiras “olimpíadas” digitais. Tantas vezes o conteúdo musical é comprometido pela necessidade da rapidez em seus limites. A verdade inerente à partitura tem sofrido, hélas, irremediável alteração de parâmetros que, pouco a pouco, são aceitos pelo público e motivo de concorrência entre intérpretes “atletas”. Prioritariamente essa atitude é acompanhada por gestual físico e facial, para gáudio da mídia que fixa imagens de rostos em transe. Com acuidade o notável Daniel Barenboim já escrevia que o ouvido humano não consegue seguir o que acontece em tantas passagens de alta velocidade. Exceções há, e pianistas como os extraordinários Vladimir Horowitz e György Cziffra, mormente o primeiro, souberam aplicar à altíssima virtuosidade elementos essenciais à música, como o controle absoluto da dinâmica, da agógica e da articulação. Fenômenos na realidade.

Gisèle Brelet observa: “O tempo vivido atualiza a forma sonora de conformidade com ambos. Para cada execução nova há um novo reencontro da forma musical e do tempo; e uma realidade sempre nova é prometida à obra musical pela perpétua renovação desse reencontro, onde reside o milagre de sua encarnação”. Continua a autora: “Se o tempo verdadeiro não pode ser aquele que é sentido interiormente pelo intérprete, cada tempo atualiza na obra um aspecto diferente, um conteúdo expressivo que só é visível por ele”. Ratifica a autora, a considerar que “Pode-se dizer que a possibilidade para a obra de se realizar em andamentos diferentes atesta a plurivalência de sua forma e a riqueza de seu conteúdo”. Após considerações a respeito dos tempi rápidos e lentos, questiona: “o que de mais eminentemente expressivo não é um cromatismo lento e de mais brilhante e superficial quando rápido? O cromatismo, sendo lento, pode ser retardado sobre as sonoridades sucessivas e instalar-nos nessas dissonâncias para captar a inquietude interior, mas no movimentos rápido tem-se o luxo sonoro e riqueza das notas de passagem, um élan ininterrupto e não uma instabilidade inquieta”. A depender das possibilidades “físicas” de um intérprete, Brelet observa: “Os executantes, segundo suas aptidões naturais, estão dispostos à rapidez ou à lentidão, buscando imprimir às obras interpretadas caráter virtuose ou expressivo, fazendo prevalecer nelas a vivacidade do ritmo ou a languidez da melodia”.

A autora entende bem próximas a virtuosidade e a improvisação, esta, “triunfo da execução pura, onde o executante ‘fabrica’ a música através de suas forças, cria uma obra musical capaz de viver no ato de sua invenção e mesmo de sobreviver a esse ato”, aquela, “…livre, a serviço da liberdade propiciada pelo texto musical”.

Teria de dedicar inúmeros blogs apenas para o primeiro volume de “L’Interprétation Créatrice”, verdadeira Enciclopédia sobre a interpretação. Não obstante, o leitor poderá, creio, através de dois posts dedicados à obra, aferir a extensão desse monumental aprofundamento realizado por Gisèle Brelet sobre apaixonante tema.

In the second post about the first volume of the book “L’Interprétation Créatice”, the French musicologist and pianist Gisèle Brelet discusses spontaneity in children and adults when performing a piece of music , as well as the issue of “tempi” markings indicated – or not –  by composers and the interpreter’s response to  “temp0″ variations.

“A execução e a obra”

Realizar uma obra musical é, para o intérprete,
encarnar a forma temporal,
que não é ainda que ideal, na realidade da duração.
A obra escrita, diríamos, não é senão essência, não existência.
Gisèle Brelet

Na década de 1980 tive a oportunidade de ler alguns capítulos de “L’interprétation Créatrice”, da musicóloga francesa Gisèle Brelet (1915-1976). Um colega me emprestou um dos compêndios, mas, apesar do grande interesse, devolvi-o no momento oportuno, pois tenho o hábito de assinalar conceitos que me atraem e marcar nas páginas finais de um livro nº da página e mínima referência que me facilite acessar novamente o tema quando se fizer necessário. O reencontro definitivo ocorrido ultimamente com o compositor Willy Corrêa de Oliveira tem sido extremamente prazeroso. Temos trocado cópias de CDs históricos e filmes, partituras, assim como livros que mantemos em duplicata. Recentemente ofereceu-me os dois volumes de Gisèle Brelet, “L’interprétation créatrice” (Paris, Presses Universitaires de France, 1951).

A abrangência dessa magnífica obra estende-se a todas as possibilidades da interpretação de uma composição, ao menos até a metade do século XX. Aspectos subjetivos, filosóficos, temporais e práticos desse entendimento, obra composta e sua execução são explorados com absoluta competência pela autora. É admirável a fluência do texto, rigorosamente acessível a qualquer leitor, apesar da densidade temática, fluência essa que praticamente esvaiu-se nas penas de tantos musicólogos a partir das últimas décadas.

Dividirei em dois blogs alguns dos temas centrais do primeiro volume, fazendo o mesmo com o segundo tomo no próximo semestre. No espaço a que me proponho seria impensável tratar de todos os posicionamentos abordados nesse amplo leque aberto pela autora. Selecionei alguns tópicos desse primeiro volume, que possibilitam entender a relação intrínseca, umbilical, indispensável e única entre compositor e intérprete. Obviamente Gisèle Brelet pensa sempre no alto nível qualitativo dessa relação.

Como premissa, Gisèle Brelet diferencia as artes, situando a música e a dança como artes do tempo e as outras, entendendo-as como inertes, e “cujo objeto criado faz facilmente esquecer a ação criativa”. Apreende a essência do entrosamento criação-interpretação, tida como harmonia preestabelecida. A obra escrita estaria abstratamente qualificada, estando reservado ao intérprete dar a ela a existência mais adequada. “Nas artes do espaço, a realidade qualitativa da obra já está exposta: a obra é um objeto completo, um espetáculo por si mesmo acabado”, segundo a autora.

Numa das muitas abordagens sobre a extensão do intérprete, Brelet afirma: “O que é necessário reter de toda execução particular é o ensinamento universal que dela se depreende, a ligação necessária entre subjetividade e realização. A obra musical não pode viver sem ser adotada interiormente pela personalidade profunda do intérprete”.

Brelet tem posição firme a respeito da execução da música antiga. Ao citar Jacques Handschin (1886-1995), musicólogo suíço para o qual “cada tipo de música se relaciona com um certo tipo de homem”, a autora observa: “Que a música antiga seja exatamente reconstituída na realidade acústica, que ela soe acusticamente como em outros tempos, ela soará emocionalmente de maneira diferente para nós. Mais precisamente, se admitimos que a cada estilo musical corresponde um estilo de execução, este, mesmo reconstituído, nos distanciará mais do que nos aproximará do estilo musical ao qual ele foi primitivamente atrelado”. Faz-me lembrar o texto que escrevi para o encarte de minha gravação ao piano da integral para cravo de Jean-Philippe Rameau (1683-1764). Dizia que a única interpretação a seguir a tradição através da oitiva vem da transmissão professor-aluno ao longo do século XIX, pois, desativado o cravo durante mais de dez décadas, todo o repertório para o instrumento automaticamente foi estudado e praticado por pianistas. O silêncio de mais de um século teria fatalmente cortado para os cravistas o elo dessa transmissão oral e sonora. Tiveram que buscar nos tratados a “possível” interpretação de um repertório que se transferira para o piano. Gisèle Brelet, ao se referir aos estudiosos dos vários períodos históricos, afirma: “O musicólogo não tem o direito de exigir do intérprete que ele se conforme, na execução da música antiga, com os dados da história musical. O executante deve, sim, não negligenciar esses dados; mas é a partir de seu sentimento musical que ele deve fundamentar-se para construir uma interpretação moderna e nova, utilizando livremente os dados históricos”. No mesmo contexto, observo que inexiste absolutamente aquilo que adeptos da interpretação da música antiga denominam “autêntica”. Como assinalamos, perdida a oitiva da música de cravo durante mais de um século, ela tem sido dignamente executada por magníficos intérpretes cravistas, mas, frise-se, reconstituída. Imperativo se torna a observância da mensagem contida na partitura.

De interesse a diferenciação que Gisèle Brelet faz de duas categorias de executantes, o músico e o virtuose. Para o primeiro, a autora considera que “há intérpretes que buscam, durante a atuação, salvaguardar a riqueza potencial da obra em si; sabem a contingência de toda execução particular e procuram uma espécie de interpretação universal, onde a personalidade do executante se apaga diante da obra; e a execução é para eles um ato de respeito, devendo limitar-se a encontrar o pensamento do compositor, ou seja, essa pluralidade de realizações possíveis que cercam a criação: são os músicos por oposição aos virtuoses que são executantes em toda a força do termo, entenda-se realizadores”. Nota-se uma preferência de Brelet pelo virtuose: “Há uma qualidade particular no virtuose e independente dos dons propriamente musicais: a necessidade e o gosto pela exteriorização. Parece-me que a obra, uma vez compreendida musicalmente, possa ser executada pelo músico ou pelo virtuose. Para o músico bastam a estrutura apreendida da obra e a sonoridade ideal possível… o virtuose, munido de autoridade e doçura, convence a todos que o escutam levando-os a essa realização infinitamente concreta que ele oferece de uma obra, fruto e recompensa de seu consentimento de exprimir em sua execução”. Implica essa ideia na explicação de seu opposite, pois para a autora o músico basicamente “não se preocupa com o público”. Gisèle Brelet tece muitos outros comentários pertinentes sobre as duas categorias de intérpretes.

“L’Interprétation Créatrice” foi publicada em 1951. Era nítido nesse período, por muitos estudiosos considerado como a “geração de ouro”, a diferenciação que se fazia entre o músico e o virtuose. Consideremos as filmagens de pianistas em apresentações solo. Praticamente havia uma só tomada fixa da imagem, e a execução transcorria a apresentá-los com poucos gestos.

A indústria cultural tem estimulado a “venda” da imagem. Câmeras tudo focalizam, fixando-se prioritariamente no rosto e no gestual do intérprete. Essa concepção, em constante aprimoramento, privilegia executantes que, sabendo-se filmados, exacerbam nas contrações faciais e gestuais e nos excessos da virtuosidade. Nas últimas décadas, pianistas filmados em grandes concursos pianísticos mostram-se reservados no gestual. Se a notoriedade advém, mercê das qualidades inalienáveis dos vencedores, muitos deles, virtuoses, sabedores dessas câmeras que tudo fixam, exageram in extremis os vários componentes de uma apresentação, privilegiando a imagem e buscando a transferência para o ouvinte de emoções sentidas. Há nesse posicionamento uma nítida concorrência, pois muitos assim procedem e o gestual tem-se acentuado. Essa postura mais se pronuncia entre pianistas do Leste Europeu ou do Extremo Oriente. No caso dos virtuoses, tantas vezes elementos intrínsecos de uma partitura poderão sofrer alterações ad libitum que agradarão o público, mas que representam um equívoco grave. Contudo, da geração intermediária, temos intérpretes músicos extraordinários. Seria possível acreditar que, estivesse a viver nos dias atuais, Gisèle Brelet tivesse uma outra apreciação dos virtuoses.

No próximo blog complementarei algumas observações sobre o primeiro volume de “L’Interprétation Créative”, de Gisèle Brelet.

This post addresses the book “L’Interprétation Créatice”, written by the French musicologist and pianist Gisèle Brelet (1915-1973). All aspects of the musical performance – subjective, philosophic, temporal and practical – are covered in two volumes with full competence. The book is totally accessible to any reader despite the complexity of the subject, something hard to say of musicological studies published from the second half of the twentieth century on. For this post I’ve chosen to comment on some topics from the first volume, covering the unique and complex dialogue between composer and interpreter.