Imenso compositor a revelar interioridades
É o povo russo que eu quero pintar.
Quando eu durmo, eu o vejo nos meus sonhos,
quando me alimento, é nele que eu penso;
quando bebo, é ele que aparece em toda a sua realidade,
grande, enorme, majestoso, magnífico, sem fardo e sem disfarce.
Modeste Moussorgsky
Após comentar as vastas relações epistolares de Beethoven, Liszt e Wagner, anunciava que ainda trataria de duas outras expressivas e distintas, as de Modeste Moussorgsky (Moscou, Éditions Radouga, 1987) e as de Claude Debussy (1862-1918). Através das cartas podemos melhor entender diversificados caminhos enveredados pelos músicos em apreço.
A vida de Moussorgsky é um longo caminhar em direção ao trágico. A ascendência nobiliárquica remonta ao século XV e, apesar de uma infância sem transtornos quanto à sobrevivência, Moussorgsky foi péssimo administrador de seus bens e em sua curta existência teve reiteradas vezes a ajuda de amigos. Integrou o Grupo dos Cinco, compositores autodidatas que buscavam se expressar musicalmente voltados às tradições populares russas, sem desmerecer o romantismo, mas adequando-o aos ideais nacionalistas. Foram eles: Alexandre Borodine, César Cui, Mili Balakirev, Modeste Moussorgsky e Nikolaï Rimsky Korsakov, todos basicamente da mesma idade. Em carta a seu fiel amigo e confidente, Vladimir Stassov, Moussorgsky escreve já nos estertores da ação do grupo: “Anunciei [com toda a delicadeza de que sou capaz] a Korsinka (Rimsky Korsakov) e a Borodine que, para salvaguardar a pureza virginal do círculo, para não nos prostituirmos, tenho a intenção de dar ordens no que concerne a nosso trabalho coletivo, ao invés de recebê-las; de colocar questões e não ser obrigado a responder; tudo isso, é claro, unicamente com a permissão de Korsinka e Borodine e em nosso nome” (31/03/1872).
Na infância o pequeno Modeste sofre decisivamente a influência de duas mulheres, sua mãe, Júlia Ivanovna, que lhe dá as primeiras noções pianísticas, e a babá, essa Niania inseparável, “contava histórias que me impediam de dormir”, presente em tantas lembranças musicais e epistolares. Já adulto, Moussorgsky encontraria obstáculos para que tivesse uma vida ao menos normal. Entrega-se à bebida, sofre de epilepsia, compõe freneticamente e nem sempre é entendido por seus pares.
A atividade epistolar de Moussorgsky, dirigida aos seus colegas do Grupo e a poucos interlocutores, entre os quais se destaca o crítico Vladimir Stassov, aborda música, preocupação com o povo, desilusões, carência afetiva, solidão. No livro “Modeste Moussorgski” há também outros temas e depoimentos de seus coetâneos.
O povo, constante em seus pensamentos, está expresso em carta a Vladimir Nokolski, ao tratar de uma de suas criações mais afamadas, A Noite de São João no Monte Calvo: “Você está bem a par de minhas convicções musicais para não duvidar que me é extremamente importante reproduzir fielmente as criações da imaginação popular, sejam elas quais forem, bem entendido, no limite dos meios utilizados para a escrita musical” (12/07/1867). Assim como Dostoiewsky, Moussorgsky é um observador. Frisa esse aspecto em tantas missivas: “Observo atentamente mulheres e mujiks típicos: uns e outros me são úteis. Quantos não são os aspectos inéditos na alma russa ignorados na arte! Eles são extremamente saborosos e simpáticos… Reproduzi em imagens musicais uma parcela de minhas observações da realidade e da intenção das pessoas que me são caras, transmitindo a elas impressões acumuladas”. Carta à Lioudmila Chestakova (30/07/1868). Em outra carta a Stassov, Moussorianine (assim ele assina em tantas missivas) escreve, num prenúncio dos eventos do início do século XX na Rússia: “Patinamos no mesmo lugar enquanto o povo não puder verificar com seus próprios olhos o caminho que lhe é imposto; enquanto não puder escolher, ele mesmo, a sua senda! Benfeitores buscam ver suas glórias documentadas enquanto o povo geme e, para não o fazer, embebeda-se continuamente, mas contrariamente, gemerá ainda mais forte: nós estamos, pois, sempre lá!” (16-22, 06/1872).
Moussorgsky emana conceitos sobre a condição humana, mas luta igualmente: “Os homens evoluem e, como consequência, a sociedade humana também; a compatibilidade das exigências do homem evoluído [para seu tempo] com aquelas que lhe impõe a sociedade [igualmente para o seu tempo] representa a harmonia que buscamos, e a via em direção à harmonia passa por uma luta feroz, sejam quais forem as circunstâncias”. Carta a Arséni Golénichtchev-Koutousov (02/03/1874).
O escritor e aventureiro Sylvain Tesson define bem uma palavra russa traduzida em francês como pofiguisme: “O pofiguismo não toma emprestado nem à resignação dos estoicos, tampouco ao desprendimento dos budistas. Também não ambiciona conduzir o homem à virtude pregada por Sêneca, nem dispensar méritos cármicos. Os russos pedem simplesmente que os deixem esvaziar uma garrafa, pois amanhã será pior do que hoje. O pofiguismo é um estado de passividade interior corrigido por uma força vital. O profundo desprezo por toda esperança não impede o pofiguista de desfrutar ao máximo os sabores do dia que passa” (Dans les forêts de Sibérie).
Em carta a Stassov, Moussorgsky traça quadro relacionado à técnica composicional, comparando-a em certo ponto à culinária: “Talvez tenha medo da técnica, pois é meu ponto fraco. Muitos me defendem sobre esse capítulo igualmente. Detesto, por exemplo, o costume de cozinheiras que dizem, falando de um paté em vias de ser cozido ou, mais precisamente, comido, que sua preparação exigiu ‘um milhão de pitadas de manteiga, quinhentos ovos, toda uma quantidade de brócolis, cento e cincoenta peixes e um quarto…’ Comemos o paté e achamos delicioso, mas desde que a cozinha é mencionada, vem-nos à mente uma cozinheira ou um cozinheiro eternamente sujo, o chapéu típico, um peixe eventrado sobre um outro, muitas vezes com as tripas à mostra. Outras vezes, a imaginação sugere um avental imundo de gordura, no qual por vezes ela ou ele soa o nariz, esse mesmo avental que serve para enxugar as bordas dos pratos, fazendo-os brilhantes… Pensando assim, o paté torna-se pior. As obras de arte acabadas possuem esse aspecto de castidade a interditar tocá-las com as mãos sujas: é repugnante”.
Se já abordei o arguto senso de observação de Moussorgsky, mencione-se exemplo em que, dessa atitude, o compositor passa à prática: “Durante o trajeto de barco de Odessa a Sebastopol, havia a bordo mulheres que cantavam; à altura do farol de Tarkhankhout [onde naufragara o iate Livadia], enquanto certos viajantes começavam a sofrer enjoos, observei que duas mulheres, uma grega e uma judia, cantavam suas canções. Juntei-me a elas, que ficaram felizes e me chamaram de mestre. A propósito, tendo assistido em Odessa a ofícios em duas sinagogas, fiquei entusiasmado. Guardei dois temas hebraicos: o do cantor acompanhado pelo coral e também o executado em uníssono”. Longa carta a Stassov (10/09/1879).
Esse relato, próprio de atento observador, corrobora outros olhares de Moussorgsky, como aqueles durante a exposição de aquarelas (1874) de seu amigo Victor Hartmann falecido em 1873. O impacto levou o compositor a compor uma das obras mais emblemáticas da arte musical, os Quadros de uma Exposição para piano e futuramente orquestrados por compositores como Maurice Ravel, Dmitri Shostakovich e Francisco Mignone. Escreve a Stassov aos 12 ou 18 de Junho de 1874: “Meu caro generalíssimo, Hartmann ferve em minha cabeça como ferveu Boris (referia-se à também emblemática ópera Boris Goudonov); os sons e as ideias estão suspensos no ar, absorvo-os, lambuzo-me, a chegar apenas a rascunhar sobre o papel. Escrevo agora o nº 4, as ligações são boas (tratava-se das diversas Promenades, passeios que interligam os quadros). Quero findá-los o mais rápido e da melhor maneira possível. Minha fisionomia aparece nos intermédios. Acredito que está dando certo. Dê-me sua benção” (traduzido por JEM a partir da versão francesa do original russo). Moussorgsky comporia em cerca de duas semanas uma obra-prima, e durante esse tempo, teria ficado autorrecluso.
Detenho-me nos Quadros... pois eles representam a síntese dessa atenta observação. Não seriam os temas dos dois judeus, Samuel Goldenberg e Schmuyle, inspirados em outras escutas, Tuilleries não lhe veio à mente após presenciar miúdos brincando, A Cabana sobre patas de galinha – moradia da feiticeira Baba-Yaga não traria a Moussorgsky as reminiscências dos contos de Niania, sua babá, que “o impediam de dormir”, o tema da Grande Porta de Kiev, a finalizar a obra maiúscula, não é certamente a lembrança inconsciente de Frère Jacques, considerando-se que as melodias do cancioneiro francês eram entoados por Nianias, tantas delas vindas de França, pois o idioma de Voltaire era quase uma segunda via nas classes mais abastadas russas?
Clique para ouvir os Quadros de uma Exposição na interpretação de J.E.M.:
https://www.youtube.com/watch?v=dDr75RcRNDw
Modeste Moussorgsky, autor de obras imorredouras, como as óperas Boris Goudonov e Khovanshchina, ciclos de canções absolutos, Quarto de criança, Sem sol, Cantos e danças da morte, os Quadros de uma exposição – um dos compositores preferidos por Claude Debussy e Igor Stravinsky -, sucumbiria no infortúnio, vítima, entre outras causas, do álcool e da epilepsia. Tem-se nos versos finais da canção escrita aos 18 anos, Onde estás pequena estrela: “A nuvem negra escondeu a estrela, e a menina foi envolvida pelo túmulo gelado”.
This post addresses the book “Modeste Moussorgsky et le drame musical russe – notice autobiographique, lettres, souvenirs de contemporains” (Éditions Radouga, Moscou, 1987), covering, among other subjects, the letter exchange between the Russian composer Modest Mussorgsky and a few interlocutors, among them the critic Vladimir Stassov and members of The Five, a group of composers that included Mussorgsky, Aleksandr Borodin, Mily Balakirev, Nikolay Rimsky-Korsakov and César Cui, all bound by the goal of creating a distinctive school of Russian music. In my view, the reading of Mussorgsky’s personal letters has particular importance if one wants to learn about his music, his psychological portrait, his shrewd understanding of the Russian people — something that has impacted on the music he wrote — or, in a word, the paths trodden by the composer in music and in life.