André Posman e um de seus promissores gêmeos
A grande amizade e o grande amor são aqueles que dão sem pedir,
que fazem e não esperam ser feitos;
que são sempre voz ativa, não passiva.
O que interessa na vida não é prever os perigos das viagens;
é tê-las feito.
Agostinho da Silva
Inúmeros blogs foram dedicados, desde o longínquo Março de 2007, à Bélgica Flamenga, precisamente Gent e Mullem, afetos, música e geografia. André Posman – fundador da De Rode Pomp, gravadora que lançou muitos CDs meus gravados em Mullem sob a supervisão do extraordinário engenheiro de som Johan Kennivé – jamais deixou de acalentar os programas que eu apresentava para a sua gravadora. Amante inveterado do inusitado, acolhia o repertório tradicional, mas proporcionou em sua sala de concertos recitais memoráveis, camerísticos e instrumento solo, interpretados por músicos europeus e tantos outros da Rússia, a preferenciar programação pouco frequentada, do barroco à contemporaneidade mais hodierna. Naquela sala de cerca de 200 lugares, aproximadamente, promovia cento e tantos concertos todos os anos.
Infelizmente, De Rode Pomp teve suas atividades encerradas anos atrás, como aliás muitas associações de concertos e selos seletivos europeus, esses cuidadosos, de pequenas e significativas tiragens. A indústria cultural é implacável e dificilmente organizações pequenas e voltadas unicamente à qualidade subsistem. Sempre confessei que os anos a gravar para a De Rode Pomp foram os mais felizes de minha atividade musical. André Posman, professor de história aposentado, fundador da De Rode Pomp e da galeria de artes La Perseveranza, também desativada, continua sempre um entusiasta apaixonado pelas artes. Sou-lhe eternamente grato, pois foi dele o convite para que desse anualmente recitais em sua sala de concertos a partir de 1996 e gravasse para seu prestigioso selo.
Creio já ter narrado em blog bem anterior episódio ocorrido logo após ter interpretado, em recital na sala de concertos da De Rode Pomp, os 12 Estudos para piano de Debussy, que gravaria nos dias subsequentes em Mullem. Para os recitais especiais, André oferecia ceia de quinta a sábado para frequentadores que reservavam mesas. A ceia se dava na sala da galeria La Perseveranza, sob os cuidados do grand chef Philippe. Após meu recital, jantava com amigos quando se senta à nossa mesa o representante de um selo mundial de grande tiragem. Disse-me que gostaria que eu fizesse parte da lista dos pianistas que gravam para a empresa. Fiz-lhe três perguntas: “poderia escolher o programa do CD, gravar em Mullem com Johan Kennivé – meu templo mágico e engenheiro de som de alto nível -, escrever texto do encarte? O cidadão disse-me que a empresa escolhia o programa dos integrantes da lista, a cidade para a gravação, que poderia ser na Europa, Ásia ou América do Norte, e que muitos CDs saiam inclusive sem texto a explicar o programa. Acabara de falar e meu diletíssimo André, flamengo fisicamente avantajado, passava frente à mesa. Levantei-me, dei-lhe um beijo na face e disse-lhe que nossa amizade era eterna. André sorriu abertamente e o cidadão que me convidara levantou-se polidamente e se retirou.
Estou a me lembrar da gestação de alto risco de Jamila, dedicada esposa e colaboradora de André, que esteve meses num hospital público – excelente padrão belga – para acompanhamento. Fui visitá-la nesse difícil período. Os gêmeos, Yassine e Taha, nasceram saudáveis e desde a tenra infância revelaram dons musicais inequívocos, Taha ao piano e Yassine na clarineta, hoje saxofone. Acompanhei o desenvolvimento dos gêmeos, pois todos os anos, quando em Gent para recitais e gravações, ouvia-os e observava o rápido evoluir dos irmãos.
Frisei inúmeras vezes nesse espaço a importância da formação dentro do lar. Taha e Yassine nasceram em berço propício, pois Jamila é mãe devotada, que acompanha atentamente o desenvolver de seus filhos.
Essa ligação amorosa com Gent e diletos amigos persiste há mais de 23 anos e teve fatos marcantes. Em 1996 recebi de André a chave de sua morada. Quando chegava à Gent para atividades musicais, tinha livre acesso aos pianos da casa, inclusive à geladeira. Ficava hospedado a cento e poucos metros, na casa dos sempre amigos Tony e Tania Herbert, e dirigia-me à sala de concertos, contígua ao prédio da residência dos Posmans, para estudar durante a alta madrugada. Realmente André é figura rigorosamente singular. Quanto a Yassine e Taha, raramente encontrei jovens tão bem educados e respeitadores de valores hoje raros em nossa sociedade. E não estão numa torre de marfim, pois praticam esporte, lutas marciais e logicamente, de maneira preferencial, música no melhor sentido, instrumental e coral. Quanto aos estudos escolares, são ótimos alunos.
Vem-me à lembrança divertido acontecimento que se deu em 2008 ou 2009. Após recital à noite na De Rode Pomp, André perguntou-me se podia, pela manhã seguinte, dar um recital especial dedicado aos colegas de classe de seus gêmeos. Aquiesci com prazer e, ao tocar Viva-Villa de Gilberto Mendes, peça minimalista com muitos ritmos brasileiros, espontaneamente a gurizada subiu ao palco e começou a dançar.
Em Maio último retornei à região flamenga – creio que pela 25º vez – para recital e gravação, que se deram em Mullem. Em Gent, tive a grata oportunidade de ouvir Taha, que preparava o Concerto nº 2 para piano em Fá Maior op. 102, de Dmitri Shostakovitch (1906-1975). Pediu-me para que o ouvisse e qual não foi meu prazer ao verificar a evolução desse talentoso jovem. Preparava-se para apresentação em Junho.
Taha estudou inicialmente com Elisa Medinila, filha de meu dileto amigo e pianista Alfonso Medinila. A seguir, com Timur Sergeyenia, pianista de vastíssimo repertório nascido na Bielorússia. Ao ser aceito no Conservatório de Bruxelas, ficou sob a orientação de Boyan Vodenitcharov e Hans Ryckelinck.
Foi pois com prazer inusitado que ouvimos, Regina e eu, pelo vídeo que me foi enviado por Lucien Posman – irmão de André e compositor de mérito, de quem dele gravei, para o selo De Rode Pomp, Le conte de l’étude Modeste, que faz parte do CD New Belgian Etudes – a apresentação de Taha Posman a interpretar o Concerto nº 2 para piano e orquestra de Shostakovitch. Tendo conhecido seus pais bem antes de seu nascimento, ouvi-lo nesse desabrochar seguro é motivo de emoção.
O Concerto nº 2 (1957) tem um caráter poder-se-ia dizer didático, e o compositor pensou em seu filho Maxime, de 19 anos, que teria realizado a primeira audição. Shostakovitch expõe um piano basicamente integrado à orquestra e durante quase toda a extensão da obra o instrumento participa, salvo em momentos precisos, mormente no segundo andamento. O primeiro, Allegro, pleno de vivacidade, possibilita ao intérprete verdadeiro prazer na execução. Bem digital, técnica dos cinco dedos, ele evolui basicamente com poucas interrupções e sua cadência apenas ratifica essa técnica digital. O segundo andamento, Andante, extremamente lírico, proporciona ao pianista a exploração de belos matizes sonoros. Quanto ao terceiro andamento, Allegro, Shostakovitch faz alusão a Charles-Louis Hanon (1819-1900), pedagogo francês, cujo método é mundialmente frequentado por todos os que iniciam o estudo de piano no que concerne à técnica dos cinco dedos, empregando algumas de suas “fórmulas” copiadas ou modificadas. No todo, a notoriedade desse jovial Concerto para piano e orquestra vem, em parte, da engenhosidade da construção, mesmo que voltada à tradição; da destreza digital e de uma esfuziante jocosidade.
O belo Concerto nº 2 de Shostakovitch tem inúmeras notáveis gravações no Youtube, inclusive a realizada pelo próprio autor ao piano. Foi um excelente desafio para o jovem Taha, que à altura tinha 17 anos. Ao longo de toda a apresentação realizada no dia 16 de Junho deste 2019, junto à Sonores Symphoniorkest Gent conduzida por Joeri van Hove, mostrou-se rigorosamente à vontade, realizando com estilo definido os três andamentos do Concerto. Se nos Allegros demonstrou maturidade invulgar no tratamento proposto por Shostakovitch quanto às passagens virtuosísticas e suas flexibilizações dinâmicas, seria no segundo andamento, Andante, que Taha Posman revelaria a presença do músico sensível que sabe conduzir a frase musical com raro cuidado. Quanto ao terceiro andamento, Taha Posman transmitiu o frescor inerente na partitura. Apesar de ter mostrado ainda uma certa timidez, antes e depois da expressiva apresentação, muito descontraída, diga-se, o que é raro nesse primeiro contato com a obra junto à orquestra, Taha Posman já é uma realidade promissora. O público que lotou o Groene Zaal, a Sala Verde da Escola Católica de Saint Bavon, testemunhou, através de longos aplausos, a convincente apresentação.
Clique para ouvir o Concerto para piano e orquestra nº 2 em Fá Maior op. 102 de Dmitri Shostakovitch, tendo ao piano Taha Posman.
Áudio e vídeo preparados por Johan Kennivé, tendo a ajudá-lo Yassine Posman.
https://www.youtube.com/watch?v=Pk-IXInukwk
Um longo e esperançoso caminho se abre para Taha. Tenho a convicção de que deverá ter brilhante carreira e será mais um pianista a manter a excepcional tradição pianística da Bélgica.
Many times I’ve mentioned in this blog my love for Belgium and for the friends I’ve made there, among them André Posman and his family. André is the founder of the label De Rode Pomp, which released most of my CDs recorded in Mullem. Unfortunately De Rode Pomp does not exist anymore, but the years I’ve recorded for this label were the happiest of my musical career. I still remember the high-risky pregnancy of Jamila – André’s wife – that culminated in the birth of the twins Yassine and Taha, whom I’ve known since babies. Now young adults, they are a result of their good upbringing: polite, responsible, productive, both having revealed an early talent for music (Taha piano, Yassine clarinet and saxophone). It was with emotion and delight that I watched the video — sent by composer Lucien Posman — in which Taha performs, as a soloist, Shostakovich’s Piano Concert nº 2 in F major with the Sonores Symphonieorkest Gent conducted by Joeri van Hove. In this Concert, the piano is almost integrated with the orchestra and participates virtually throughout the entire piece. Taha plays with competence and ease, confirming he is a promising young talent with a brilliant career ahead of him, in the best tradition of great Belgian musicians.
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