Vasta correspondência multidirecionada
Especializam-me para impedir a ação
que teria almejado exercer sobre a música.
Claude Debussy
(Carta a Charles Levadé – 04/09/1903)
Literatos têm expressa a familiaridade com o texto. Não poucas vezes, há o prazer da fluência calculada e o estilo professado em romances e poemas pode ser detectado na correspondência, principalmente quando endereçada a um dos pares. Mencionaria as Lettres inédites à Tourguenieff, primor da escrita de Gustave Flaubert.
O texto redigido por compositores, em princípio, apresenta-se como uma segunda linguagem. Se o compositor Jean-Philippe Rameau (1683-1764), como exemplo entre poucos, lega tratados teóricos que perduram desde o século XVIII, nem sempre o músico tem a mesma fluência com o texto literário através das missivas. Esse compartimento íntimo, quando visitado por compositores, tem singularidade. Inúmeras as missivas de músicos que tangem às áreas da poética em comparações com as sonoridades que as povoam.
Na sequência de posts sobre compositores e seus pensamentos legados através das cartas, lembraria que comentei recentemente a correspondência de Ludwig van Beethoven, Franz Liszt, Richard Wagner e Modest Moussorgsky, bem diferenciadas em seus conteúdos. Por vários motivos deixei por último Claude Debussy (1862-1918), mormente pelo fato de ter acompanhado sua vasta correspondência a partir de publicações que remontam à primeira metade do século XX e que, reunida e bem ampliada através de esforço hercúleo de meu saudoso amigo e notável musicólogo François Lesure (1923-2001), foi completada por seu discípulo Denis Herlin com a colaboração de Georges Liébert e publicada em 2005 (Claude Debussy – Correspondance 1872-1918, Paris, Gallimard). Dos livros anteriores, concentrados nas cartas enviadas por Debussy a ilustres coetâneos, mencionaria: Lettres de Claude Debussy à son éditeur – Jacques Durand (1927), Claude Debussy Lettres à deux amis – Robert Godet e G. Jean Aubry (1942), Correspondance de Claude Debussy et Pierre Louÿs, (1945), Debussy et D’Annunzio – correspondance inédite (1948), Lettres inédites de Claude Debussy à André Caplet (1957), Lettres de Claude Debussy à sa femme Emma (1957), Claude Debussy Lettres – réunies et presentées par François Lesure (1980), Claude Debussy Correspondance 1884-1918 – réunie et présentée par François Lesure (1993). Número significativo de cartas foi publicado em revistas especializadas.
A revelação do de profundis, expressa tantas vezes em cartas, dificilmente o autor inseriria em artigo. O conjunto epistolar de Debussy corrobora a compreensão de seu livro Monsieur Croche, reunião de inúmeros artigos publicados em vários periódicos franceses.
O conjunto “integral” das cartas de Debussy, estendendo-se de 1872, quando o pequeno Claude Achille tinha apenas 10 anos, a 1918, ano da morte, revela um homem complexo, no dizer de seu biógrafo François Lesure: “Apesar de Debussy afirmar ser ‘simples como uma erva’ (14/07/1898), não é fácil traçar seu retrato. Se colocarmos de ponta a ponta os diversos julgamentos que dele fizeram, ficaremos perplexos sobre sua natureza profunda: selvagem, taciturno com acessos de alegria, tímido, infantil, sensível, terno, dissimulado, ciclotímico, desagradável até, como disseram”.
Depreende-se, na vastíssima correspondência de Claude Debussy ao longo de uma existência relativamente curta, a se ter como parâmetro atual a longevidade em expansão permanente, que o compositor se revela praticamente por inteiro e a quantidade de destinatários testemunha conteúdos que atendem às particularidades de cada um dos que recebiam suas cartas.
É certo que suas ligações familiares foram até difíceis durante um bom tempo. Desavenças com o pai fazem com que, durante anos, Debussy se revele parcimonioso quanto ao progenitor. Lembremos o trauma sofrido pelo menino com a condenação e prisão de seu pai durante a Commune de Paris, insurreição parisiense em 1871. Se Claude-Achille se mantém silencioso sobre esse episódio, a partir da juventude da idade madura evidenciará relação de afeto com seus pais.
Admitido no Conservatório em 1872, revelou-se um aluno mediano, como testemunham suas atuações em várias disciplinas em que obteve láureas modestas. Teria em 1880, graças à indicação de um professor, a oportunidade de viajar à Itália e mais de uma vez à Rússia, como acompanhador de Nadejda von Meck, viúva de milionário empreendedor. Serviram esses estágios para o convívio com uma classe abastada e, possivelmente nesse período, ratifica-se o gosto de Debussy pelo não retumbante, devido talvez à antítese, que se acentuaria ao longo das décadas, da obsessiva admiração da mecenas russa por Tchaikowsky. Ainda a frequentar o Conservatório, não demonstra interesse pelo ensino na Instituição e, apesar de ter recebido o Prix de Rome com sua Cantata L’Enfant Prodigue em 1884, guardaria recordações não lisonjeiras: “O Conservatório é sempre esse lugar sombrio e sujo que nós conhecemos, onde a poeira das más tradições continua ainda nos dedos” (carta a André Caplet, 25/11/1909).
“Correspondance (1872-1918)”, em suas 2330 páginas, apreende a totalidade conhecida da atividade epistolar de Debussy e muitos de seus remetentes. Certamente ainda se encontrarão cartas ou bilhetes escritos por Debussy. Desfilam no volumoso livro em apreço cartas a intérpretes, críticos, amigos, família. A intensa ligação de Debussy com artistas de outras áreas que não a música evidencia preferências, quase a demonstrar que o compartimento musical, o compositor tinha-o de maneira singular, pessoal. Sua proximidade com poetas que enriquecerão suas melodias ou a aquela que terá com o meio simbolista é flagrante: Mallarmé, Pierre Louÿs, Paul Valéry, Henri de Régnier são exemplos.
A correspondência de Debussy perpassa artes, natureza, afetos, depressão, música essencial e ramificação que leva a inúmeros temas do cotidiano. Seria possível compreender que, após o nascimento de Chouchou em 1905, filha de Debussy e Emma, com a família estruturada e vivendo numa morada no Bois de Bologne, acima de suas possibilidades financeiras, Debussy, consagrado após a ópera Pelléas et Mélisande (1902), passe por crises perceptíveis em tantas cartas, mormente as endereçadas a poucos amigos mais próximos. A André Caplet se questiona: “Será que decididamente fui feito para uma vida doméstica?” (1907); “algumas vezes sinto-me miseravelmente só” (18/12/1911). Ao seu editor Jacques Durand escreve: “Só tenho energia intelectual; no cotidiano tropeço na menor pedra, que qualquer outro mandaria passear com um simples pontapé” (15/07/1913). Quando finaliza uma de suas obras fundamentais para piano, quiçá a mais importante, os Douze Études, confessa ao seu fiel amigo durante toda a existência, Robert Godet: “escrevi como um louco ou como aquele que deve morrer no dia seguinte” (14/10/1915).
Clique para ouvir o Étude pour les arpèges composés de Claude Debussy. Piano: JEM
https://www.youtube.com/watch?v=VCAH8fYHjSo
Creio que uma das mais apropriadas definições de Debussy por ele mesmo encontra-se num segmento de entrevista concedida a Henry Malherbe ao Excelsior e inserida no livro Monsieur Croche (11/02/1911):
“…Quem conhecerá o segredo da composição musical? O barulho do mar, a curva do horizonte, o vento nas folhas, o grito de um pássaro provocam em nós múltiplas impressões. E, no todo, sem que consintamos de maneira alguma, uma das lembranças apreendidas expande-se independentemente de nós mesmos e se exprime em linguagem musical. Traz-nos sua harmonia. Qualquer esforço que façamos, não alcançaremos algo mais justo e mais sincero. Se assim vos falo, não é para evidenciar opulência de uma moral artística, mas para provar justamente que não a tenho. Abomino doutrinas e suas impertinências”.
Continuing with the subject of prominent people’s epistolary exchange, my comments address the correspondence of Claude Debussy published in the book “Claude Debussy, Correspondence 1872-1918”, Paris, Gallimard, (2005), a gigantic effort of the French musicologist François Lesure (1923-2001) brought to completion, after his death, by his disciple Denis Herlin and editor Georges Liébert. The volume comprises the complete letters of the French composer to musicians, writers, critics, family, friends, ranging in date from 1872, when Debussy was 10 years old, to 1918, the year of his death. Addressing a wide range of topics — art, emotions, affections, doubts, quotidian demands —, Debussy’s correspondence reveals himself completely and, by allowing public access to his private life, unveils the human side of a musical legend.