Música Clássica e racismo

A música é a linguagem do coração.
Jean-Philippe Rameau (1683-1764)

Quando o homem aprender a amar o menor ser da Criação,
seja animal ou vegetal,
ninguém precisará ensiná-lo a amar seu semelhante.

Albert Schweitzer

Voltando à problemática da Música Clássica, neste segundo post abordo o recrudescimento do aspecto racial, entendendo parte da mídia que a bem mais que milenar criação e prática da Música Erudita seria arte unicamente da raça branca.

Seria possível considerar que todas as ruidosas manifestações pelo planeta, em consequência da morte cruel de George Floyd por um policial, repercutiram em desdobramentos imprevisíveis. Estátuas foram destruídas. A de Winston Churchill também quase o foi em Londres, assim como, em São Paulo, a dedicada a Borba Gato ou, ainda, o monumento de Victor Brecheret em homenagem aos Bandeirantes, inaugurado no 4º centenário da cidade. São criações que, independentemente do valor artístico, representam, através da estatuária, período histórico inalienável.

No periódico francês “Valeurs” online (22/06/2020) lê-se: “De fato, segundo relatório publicado em 2016 pela ‘League of American Orchestras’, os Negros representam 1,8% dos músicos de orquestra e os Latino Americanos, somente 2,5%. Alguns criticam igualmente a falta de ‘inclusão’ de outras obras e o fato que sejam escritas, em sua grande maioria, por compositores de origem europeia. Partindo desse postulado, o ‘San Francisco Chronicle’ recentemente lamentou que a Orquestra Sinfônica da cidade apresente quase exclusivamente composições criadas pelos homens brancos. Outras publicações da imprensa igualmente denunciaram o caráter entendido como etnicamente muito homogêneo do meio da música clássica”.

Somam-se a essas “denúncias” de racismo concernente à Música Clássica ventiladas pela “Valeurs” séries de publicações da mídia americana, inclusive do ‘New York Times’. Em suas várias matérias tem-se sobre a Música Clássica: “encobre um problema racista”, “atacar-se à sua brancura”, “extremamente branca”, “a música clássica é intrinsicamente racista”. O periódico francês completa: “Dessa maneira, a música clássica junta-se à extensa lista de instituições, pois possui uma proporção considerada pequena de pessoas de ascendência não-europeia e por isso são suspeitas de mascararem um modo de recrutamento discriminatório. Em resumo, de aplicarem uma forma de racismo estrutural”.

Pareceria bem exacerbada a ação de determinada corrente a entender também a Música Clássica como privilégio da população branca. Dos primórdios da civilização cristã, passando-se pelo Canto Gregoriano à criação musical ocidental na Idade Média, na Renascença, nos períodos Barroco, Clássico, Romântico e outros sucessivos, a feitura era realizada por europeus, brancos, e praticada tardiamente por outros povos. Não obstante, apesar de minoria, aqueles da “raça negra”, designação que constava nos livros escolares de antanho, notabilizaram-se pelo talento e tiveram e têm pleno reconhecimento mundial. Intérpretes negros da Música Clássica, mormente cantores, foram e são glorificados e a cor da pele não tem a menor influência. Eles são notáveis. Citemos Marian Anderson (1897-1993), Lawrence Winters (1915-1965) e Jessye Norman (1945-2019), como exemplos. O pianista André Watts (1946- ) é recebido pelas plateias do mundo sem discriminação. Sob outra égide, a tão decantada Música Clássica, considerada como sendo da elite unicamente, receberia o benfazejo contributo, há mais de um século, do Jazz praticado por negros nos Estados Unidos. Contudo, embora minoritários, quantos não foram os intérpretes brancos que granjearam lisonjas na prática do Jazz? Na composição, Claude Debussy (1862-1918), Ravel (1975-1937), George Gershwin (1898-1937) e tantos outros não se valeram das inovações trazidas pelo Jazz? Intérpretes brancos pianistas, trompetistas, regentes das jazz-bands e outros mais não desenvolveram seus extraordinários talentos improvisando em torno do Jazz? Sim, majoritariamente praticada por músicos negros, muitos deles rigorosamente excepcionais e admirados pelos praticantes ou ouvintes da Música Clássica.

Na contramão do exposto, o periódico francês online “Valeurs” publica em 13/07/2020 matéria sob o título “Tout le monde est terrifié: des acteurs blancs d’Hollywood dénoncent un racisme inversé”, que transmito, a integrar a exposição do tema desse post: “Sob o abrigo do antirracismo, as discriminações parecem estar de vento em popa em Hollywood… Em artigo publicado domingo, 12 de Julho, o jornal britânico ‘Daily Mail’ dá a palavra a diversos atores, autores e produtores de Hollywood. Estes últimos denunciam um ‘racismo inverso’, que visa aos membros brancos do meio cultural”. A seguir, “Valeurs” elenca uma série de atitudes e acontecimentos expressos no “Daily Mail”, entre opiniões de “alguns, explicando que se instalou um ambiente hostil a todo ‘homem branco de meia idade no show-business’, cuja carreira doravante ‘praticamente terminou’. ‘Nós só contratamos pessoas de cor, mulheres ou pertencentes à LGBT para escrever, desempenhar o papel principal, produzir, fazer funcionar as câmaras, trabalhar nos serviços de artesanato’, assim transmitiram ao ‘Daily Mail’. E prosseguem: ‘Se você for branco, você não pode se exprimir, pois será instantaneamente qualificado de ‘racista’ ou condenado por ‘privilégio branco’ ”.

O compositor francês François Servenière, que nos honra constantemente com suas observações após leitura dos blogs semanais, comenta: “Admiro o Jazz, a música negra, os ritmos cubanos, antilhanos e brasileiros advindos da mestiçagem. Em seu último post você nos fala da renovação da música clássica. Já lhe havia contado a admiração que tenho pelo extraordinário compositor e pianista Michel Camilo, nascido na República Dominicana. Meu Concerto para piano e orquestra Seasons Vertigo (1993-2007) faz parte da mesma tendência neste século, de uma mesma escola de pensamento, da mesma geração de criações do Concerto para piano e orquestra de Michel Camilo. A renovação está nessas tendências: rítmica, aberta, feliz, otimista. Só é necessário colher! O público lá estará enquanto tendências ultra contemporâneas o afugentam”.

Clique para ouvir, de Michel Camilo, o Concerto para piano e orquestra nº 1 com solo do compositor e a Orquestra Sinfônica Nacional de Lyon sob a regência de Leonard Slatkin. A recepção calorosa ao fim da apresentação revela a absoluta não discriminação racial:

https://www.youtube.com/watch?v=-TzNYJxIjfg

Ritmos afro-brasileiros tiveram e igualmente têm forte influência na denominada criação musical erudita. Três dos nomes referenciais de nossa História musical, Villa-Lobos (1887-1959), Francisco Mignone (1997-1986) e Camargo Guarnieri (1907-1993), incorporaram em incontáveis criações a rítmica afro-brasileira. As três obras do ilustre compositor da Bahia Paulo Costa Lima – branco nascido em 1954 – inseridas no blog do dia 4 de Julho não seriam flagrantes exemplos?

É realmente lamentável que essa mídia instigue uma situação que, curiosamente, entre os músicos da Música Clássica, que eu saiba, tem interesse secundário. O exemplo nítido, insofismável, verdadeiro orgulho para nós, brasileiros, está na figura do excepcional músico Luiz de Godoy. Teve formação essencial na Escola Municipal de Música sob a orientação do Prof. Renato Figueiredo. Posterormente estudou na Universidade de São Paulo. Tenho o privilégio de dizer que foi um de meus diletos alunos e que, após minha aposentadoria, ainda continuou parte da sua orientação em minha casa. Em concurso no dificílimo acesso como regente de um dos mais respeitados corais do planeta, os Meninos Cantores de Viena, foi aceito e durante anos viajou pelo mundo excursionando com o coral. Em Dezembro de 2016 receberia na capital da Áustria o Prêmio da Fundação Erwin Ortner, concedido a uma só personalidade do universo coral europeu. Presentemente, após pandemia, assumirá a regência da Ópera de Hamburgo.

Clique para ouvir os Meninos Cantores de Viena, vários corais juvenis de Singapura e a Orquestra Filarmônica juvenil do país sob a direção de Luiz de Godoy na interpretação da canção Home composição de Dick Lee, em arranjo de Wong Kahchun:

https://www.youtube.com/watch?v=a-ei0jwbueI

No blog anterior abordei a eclosão da Música Clássica em países do Extremo Oriente. Não poderiam essas nações vilipendiar a Música Clássica, pois música dos “brancos”, sendo eles “amarelos”, segundo os antigos manuais de ensino? Pelo menos não li nem ouvi jamais um músico do Extremo Oriente, nessas décadas pós Mao-Tsé-Tung, comentar tratar-se de música racista, pois composta e perpetuada por brancos. A China acolhe a Música Clássica, tendendo a superar o Ocidente na sua prática. O “New York Times” de 03/04/2007 aponta para essa Revolução Clássica sonora: “Com a mesma energia, força e enorme peso populacional que a tornou uma potência econômica, a China se tornou uma força considerável na música clássica ocidental. Os conservatórios estão inchados. As cidades da província exigem orquestras e salas de concerto. Pianos e violinos fabricados na China enchem os contêineres deixando seus portos”.

Creio que o debate Música Clássica e racismo está formulado em parte sob as égides ideológica e de uma atualidade convulsiva. Toda uma edificação da linguagem musical, considerando-se a Grécia Antiga, foi elaborada paulatinamente pela raça branca, como apontado acima. O cerne estaria na Educação, não na Música Clássica. Governos como o nosso, através dos tempos, jamais veem a Educação como prioridade, a ela somando-se a Saúde e a Segurança. A Música Clássica não é o problema e sim a não possibilidade de ensino para as classes menos favorecidas. Quando surge o talento, ele é aceito nos quadros da Música Clássica e a recepção é plena e entusiasta, não discriminatória. Os dois links evidenciam a recepção pública ao final das apresentações no seu mais elevado entusiasmo. Michel Camilo e Luiz de Godoy são alguns exemplos exponenciais mencionados, esperança de que, através da educação não panfletária, mas profunda; não mediática, mas com sequência segura, muitos outros possam ter uma trajetória sólida. No caso específico da “genialidade” de Luiz de Godoy, termo utilizado apropriadamente pelo compositor François Servenière, juntemos sua disciplina férrea, determinação e poder de concentração.

François Servenière tem criações que exemplificam a apreensão do Jazz, entre as quais Croissant Jazz (1999-2001) para dois pianos:

ibktU&list=PL117DDFB5DD651856&index=22&t=0s

A Música Clássica é patrimônio indelével da humanidade, para não mais dizer e, se a maioria de seus criadores são “ainda” brancos, considerando-se essa eclosão “amarela” que cultua a composição escrita pelos “brancos” através dos séculos, seria na História que se deveria buscar a origem e o conhecimento e não numa realidade atual de cunho ideológico e imediatista.

Música Clássica e racismo. A cizânia como combustível ideológico e oportunista. Acredito que a Música Clássica estará sempre de braços abertos a acolher o talento, seja ele de qual raça for. A primeira epígrafe diz tudo: “A música é a linguagem do coração”, segundo Rameau. Acrescentaria, coração não tem raça, ele pulsa.

After the killing of the black George Floyd by a white policeman, a wave of antiracist movements swept the globe and now classical music, said to be “extremely white” — written by white composers and played by white musicians — is on the receiving end of racist attitudes. The press adds fuel to the fire by pointing out the small number of nonwhite musicians on the stages. Personally I believe the heart of the issue is not classical music, but education — or lack of education. Black children from low income families have few chances of learning an instrument or even of listening to classical music. Through education talented children from the poorest backgrounds would be able to develop their potential to the full and pursue successful musical careers independently of skin color, discouraging racist attitudes.