Albert Camus (1913-1960)
A peste suprimira julgamentos de valor.
Via-se que ninguém mais se preocupava
pela qualidade das vestes ou dos alimentos que compravam.
Aceitava-se tudo em bloco.
Albert Camus
(“La Peste”)
Em carta ao pensador Roland Barthes, que tecera críticas a La Peste, Albert Camus responde aos 11 de Fevereiro de 1955: “La Peste, que eu gostaria que fosse lida através de várias perspectivsas tem entretanto, como evidente conteúdo, a luta da resistência europeia contra o nazismo. A prova é que esse inimigo, que não é nomeado, todos o reconhecem e em todos os países da Europa. Acrescentemos que uma longa passagem de La Peste foi publicada sob a ocupação, numa coletânea de combate, e que essa circunstância por si só justificaria a transposição que realizei. La Peste, num sentido, é mais do que uma crônica da resistência. Seguramente não é menos”. Ao mencionar a resistência, fá-lo por ter sido, entre outras atribuições como escritor, romancista, dramaturgo, ensaísta, um jornalista militante comprometido com a Resistência Francesa. Elaborado de 1939 a 1943, portanto do começo ao pleno desenrolar da 2ª Grande Guerra, Camus, em entrevista à revista Servir em 1945, diria: “Não sou filósofo. Não creio suficientemente na razão para acreditar em um sistema. O que me interessa é saber como se pode caminhar quando não se crê em Deus ou na razão”. Roger Quilliot, que estabeleceu textos e anotações para a edição de obras de Albert Camus da Bibliothèque de la Pléiade (Paris, Gallimard, 1962), observa que La Peste “…nos oferece enfim uma visão de um mundo sem futuro nem finalidade, um mundo de repetição e homogeneidade, onde o próprio drama cessa a dramaticidade e onde os homens se definem menos por sua ação, sua fala e seu peso físico do que pelo seu silêncio, sua sombra e sua reação diante dos desafios da existência”. Apesar da temática necessariamente levar a tantas situações niilistas, há uma centelha de esperança no ser humano, como afirma Camus: “… aprendemos no turbilhão dos flagelos que há nos homens mais coisas a admirar do que a desprezar”.
A morte trágica de Albert Camus aos 4 de Janeiro de 1960, comentada amplamente pela imprensa e por amigos franceses, despertou-me o interesse por suas obras, mormente as narrativas e romances. Estudava em França àquela altura e li quase em seguida, em tiragens econômicas, L’Étranger, La Peste, La Chute et l’Exil et le Royaume. Ao longo da existência reli L’Étranger e La Chute, livro este que sempre me pareceu enigmático, merecedor de mais leituras.
O Covid-19 despertou no planeta um interesse maior por La Peste. Se realmente a essência essencial decorre do exposto por Camus em sua resposta a Roland Barthes, outros alcances da obra podem ser compartimentados na abrangência de flagelo representado pela peste circunscrita ou pela pandemia mundial. A tipificação geográfica caracteriza a cidade de Oran por volta de 1940, às margens do Mediterrâneo, terra de afeto do autor naquele período da Argélia Francesa, seu berço natal.
A morte de milhares de ratos que saem das entranhas do subsolo das casas, dos encanamentos e das bocas de lobo para agonizar nas ruas, calçadas e corredores provoca a seguir a peste bubônica nos humanos, transmitida pelas pulgas desses roedores. Em La Peste, no peristilo do flagelo a mídia questionava o poder municipal: “Nossos edis já não teriam sido avisados do perigo representado pelos cadáveres desses ratos?”.
O surgimento da peste muda completamente a vida dos habitantes, que veem os portões da cidade se fechar, isolando-a do mundo exterior. Ninguém mais sai nem entra em Oran com seus de 200.000 habitantes, segundo o autor em sua obra de ficção. Os moradores passam a assistir à morte crescente de seus concidadãos. Nesse trágico quadro, são poucos os personagens narrados pelo escriba que, ao final do livro, se revela como sendo o personagem central, o Dr. Bernard Rieux. Ele os acompanha em suas aspirações, esperanças, desalentos, generosidade, solidariedade, desprendimento, mas também má conduta e sobretudo, no caso mais específico do cidadão anônimo, “a ignorância que acredita tudo saber”. Os personagens ignotos reagem de acordo com as circunstâncias: temor, ansiedade, aceitação da peste, desalento, resignação frente à morte e júbilo final com o flagelo debelado. Durante a peste os roubos se avolumam: “Casas incendiadas ou fechadas por motivos sanitários foram pilhadas. Difícil supor serem atos premeditados. A maioria das vezes, uma súbita ocasião levava as pessoas, até então honradas, a ações repreensíveis, que seriam imitadas a seguir”.
A edificação de La Peste foi lenta. Camus pesquisa obras fundamentais que tratam da peste na Europa e na Ásia dos séculos XI ao XIX. Seu conhecimento prévio substancia realidades de endemias que assolaram a região anteriormente e tornam, sob outro aspecto, verossímeis suas interpretações de determinadas agonias, como a do filho do juiz Othon ou de seu amigo Jean Tarrou. Este, acamado em casa do médico, torna-se uma das últimas vítimas da peste. Albert Camus, nessas inusitadas duas longas narrativas, transmite ao leitor a evolução do início à fatalidade, a descrever as mínimas reações. Faz-me lembrar outra leitura, a de “Memórias de um Cirurgião-Barbeiro”, do ilustre médico e escritor Heitor Rosa, ao relatar pormenorizadamente outras agonias durante o século XVI devido à sífilis e ao tétano e a ter Girolamo Fracastoro (1478-1553) como personagem central.
Episódios que se repetem nas epidemias ou pandemias através dos séculos contêm certas constantes. Em La Peste, parte considerável daquilo que se está a sentir com a pandemia do Covid-19 lá está presente na imaginada peste de Oran: descaso inicial dos governantes frente ao flagelo anunciado, minimizando-o como irrelevante e passageiro, e mais: isolamento, lockdown, máscaras, legião de médicos e enfermeiros dedicados que se extenuam nessa luta sem descanso, cidade vazia, distanciamento, temor, agonia do infectado, tentativas para se encontrar “o” remédio, aproveitadores, acúmulo de mortos nos cemitérios. “A peste como abstração era monótona”, escreve o narrador. “Muitos coveiros e enfermeiros, primeiramente oficiais, a seguir improvisados, morreram da peste. Impressiona o fato de não faltarem homens para essa tarefa”.
Se considerarmos a pandemia que se está a viver nesse 2020, La Peste pareceria retratar situações multum in mínimo limitadas a Oran, que se expandem avassaladoras na atualidade. Personagens do enredo desempenhariam duplo papel, se consideradas forem guerra e pandemia. Teriam semelhança com outras que o nosso cotidiano expõe, assim como com outras durante a resistência na Segunda Grande Guerra ou outras mais advindas.
Bernard Rieux, narrador, médico responsável e humanista está sempre propenso a atender os infectados, atitude que, transposta em pleno 2020, exemplificaria a legião de médicos, enfermeiros e ajudantes que têm labutado nesses tempos do Covid-19. “Em todos os exércitos do mundo, à falta de material, substituem-se por homens. Todavia, faltam-nos homens também”. Alguns poucos voluntários e abnegados juntam-se ao médico durante o percorrer da narrativa. Tarrou “é exemplo que pode compreender tudo e que sofre”, segundo o amigo Rieux. Tarrou também redige suas observações e ajuda Rieux em suas difíceis tarefas. Será um dos últimos a sucumbir, ele que buscava uma empírica santidade sem Deus. Joseph Grand, funcionário público, tenta escrever livro, mas a buscar a perfeição da primeira frase, dela não passa. Será o primeiro a se curar da peste. Suas aparições chegam a dar uma pitada de humor contido à narrativa. O padre Paneloux tem várias aparições e seus dois sermões ao longo da peste têm apreensões diferenciadas. Inicialmente tonitruante, após presenciar a longa agonia do filho do juiz Othon tem uma outra percepção do flagelo. “Sim, o sofrimento de uma criança era humilhante para o espírito e para o coração”. A figura de Raymond Rambert ocupa vários espaços no livro. Jornalista temporariamente em Oran, nela fica retido pelo confinamento obrigatório. Após muitas tratativas para burlar o lockdown a fim de encontrar a amada, entende o devotamento do Dr. Rieux e se engaja na ajuda ao combate do mal. Estudiosos veem nele um resistente tardio durante a ocupação nazista. Após a abertura dos portões da cidade, sua amada o reencontra. Castel, médico como Rieux, representaria hoje a legião de cientistas na busca de uma vacina. O juiz Othon, que perde seu filho frente à peste, engaja-se na luta empreendida por Rieux. Também foi visto como um resistente tardio. Outros mais figurantes cruzam o caminho de Rieux, mas um é intrigante: Cottard, personagem que tentara o suicídio, mas propenso a atividades suspeitas. Desagrada-lhe o fim da peste e essa atitude foi entendida como a de um collaborateur em tempos da ocupação nazista. Enlouquece e é preso.
Considere-se em La Peste o tributo ao afeto, seja através da ausência, caso do jornalista Rampert separado da amada pelo fechamento dos portões da cidade, seja pelas várias situações afetivas no cotidiano dos personagens que cruzam os caminhos do Dr. Rieux ou, finalmente, no episódio da abertura plena da cidade, nos encontros daqueles que estiveram separados. Camus enfatiza o afeto, vivifica-o, dá-lhe sentido, a justificar a afirmação “há nos homens mais coisas a admirar do que a desprezar”. (Tradução: J.E.M.).
Situações intrigantes envolvem Camus com a temática julgamento em tribunal e execução física. Em L’Étranger seria o personagem principal, Meursault, que, julgado por ter assassinado um árabe, é executado. Em La Peste, Tarrou, em longa confidência ao médico Rieux, carrega um trauma em duas situações: ao assistir seu pai, juiz, condenar um acusado à pena máxima e ao presenciar, em outro momento, o fuzilamento de outro condenado.
A atemporalidade de La Peste leva o leitor a entender que, na essência, o homem não se desvia do atavismo. Frente ao flagelo, mais acentuadamente acertos e desvios de procedimentos se fazem sentir. Albert Camus em suas obras expõe esses comportamentos. Com raro sentido de observação. O Prêmio Nobel, tão discutido em tantas escolhas, foi conferido em 1957 ao escritor. Inquestionável.
My comments of the book “La Peste” (The Plague) by Albert Camus. Written from 1939 to 1943 — in the midst of the Second World War — and published in 1947, the novel follows the inhabitants of the Algerian city of Oran during a fictional outbreak of bubonic plague. According to Camus’ own words, the novel could be read on several levels, but its most obvious allegory deals with the pestilence of Nazism and the German occupation of France. Each moment in history has its own reading. For us, in the year 2020, the novel seems to be a warning of the dangers posed by infectious diseases at any time. The constants are the same then and now: authorities’ unwillingness to accept the early signs of the epidemic, quarantine, lockdown, face masks, people dying in droves, plague profiteers, expressions of solidarity, the heroism of medical workers, the search for a cure. No wonder coronavirus has made Camus’ novel a bestseller again.