Desdobramentos da leitura frente à pandemia
El terror a la peste es, simplemente,
el miedo a la muerte que nos acompañará siempre
como una sombra.
Mario Vargas Llosa
(El País, Piedra de Toque, 14/03/2020)
Meses sob pressão motivada pela pandemia fazem com que a peste, esse tema recorrente ao longo da História, provoque interpretações as mais diversas. É natural que assim seja. Os séculos guardam na memória testemunhos que, ou pela escrita ou através da oralidade, são revisitados sempre que episódio marcante assim determine.
Constantemente menciono nos blogs diálogos profícuos com o amigo Marcelo, que encontrava aos sábados na feira-livre de minha cidade-bairro. Leitor assíduo dos posts hebdomadários, marcávamos um curto em um dos cafés das cercanias e discutíamos. O confinamento distanciou-me desse aprazível mercado aberto, espaço que sempre tive imenso prazer de frequentar. Já lá se vão mais de quatro meses de pleno isolamento.
Deu-se situação singular num desses dias. Marcelo toca a campainha, atendo-o com a máscara e ambos conversamos ao ar livre, sentados num banco interior e frente ao pequeno jardim de casa. Bem mais jovem, Marcelo transita protegido. Lera na manhã de sábado último o texto a comentar La Peste, de Albert Camus, e durante um bom tempo abordamos a temática e seus reflexos nesses tempos do Covid-19, pois não lera o livro e entendeu pertinente o tema.
Os blogs têm seguido uma dimensão que possibilite a leitura, se não integral numa primeira abordagem, completa após revisita. Busco escrever essencialidades sucintamente, mas entendo que, pelo alcance, outras fiquem prejudicadas. Os questionamentos de Marcelo serviram para comentá-los nesses Ecos sobre La Peste.
Suas indagações invariavelmente voltavam-se à nossa pandemia e, interpretando suas palavras, “o tema que o fez pensar numa exaustão do povo quanto ao noticiário”. Há sim semelhanças entre o conteúdo do livro e a nossa realidade. Camus estabelece em sua narrativa aspectos hodiernos frente ao flagelo que nos assola. Da revolta inicial em tempos da peste passa-se a uma acomodação, ao relaxamento e, tantas vezes, à depressão. Camus acompanha as transformações do concidadão. Anônimo, este adquire importância crucial, observado quase sempre nessa atmosfera de espanto. Na epígrafe do blog anterior já mencionara uma de suas frases: “A peste suprimira julgamentos de valor. Via-se que ninguém mais se preocupava pela qualidade das vestes ou dos alimentos que compra. Aceitava-se tudo em bloco”. Seria o que hoje definimos como efeito manada. “Não se estaria a aceitar o cansaço do povo quanto às cifras dadas com profusão e ênfase pela mídia?”. À pergunta de Marcelo diria que em La Peste esse posicionamento é claro. Hoje, à custa de informações diárias pelos veículos de comunicação, não sem antes manter o ouvinte ou telespectador em suspense, esse cidadão também se cansou, caso dele específico. Quase poderíamos não errar ao dizer que a mídia necessita desses números elevados, verdadeiro chamariz. Durante quanto tempo, exaustivamente, Mariana e Brumadinho não estiveram em pauta? O cansaço de que nos fala Camus advém do excesso de notícias que se repetem ad nauseam.
A conversa com Marcelo abordou reflexões do personagem Jean Tarrou diante de duas condenações à morte que o marcaram profundamente: a primeira, após julgamento a ter seu pai como juiz, sentenciando à pena capital um acusado e a segunda, presencialmente, ficando-lhe indelével a impressão da cena do fuzilamento de outro infeliz, quando enfatiza a ínfima distância entre o batalhão e o condenado. A construção de outro livro relevante de Camus, L’Étranger, é realizada, entre tantas implicações, na direção à guilhotina da figura central do livro, Meursault, este aparentemente indiferente frente à vida e à morte. Evidencia Camus um repúdio à pena máxima. Uma frase de Camus é decisiva: “No universo do revoltado, a morte exalta a injustiça. Ela é o supremo abuso”. Na cena final da peça teatral Caligula, a preceder o assassinato do imperador romano, Albert Camus insere em uma de suas últimas falas: “Quem ousará me condenar nesse mundo sem juiz onde ninguém é inocente!”. Em 1954 intervém a favor de sete tunisianos condenados à morte. Acrescentei que apenas em 1981 a pena de morte foi abolida em França. Estou a me lembrar de meus anos como estudante em Paris nas fronteiras das décadas de 1950-1960. Quase todas as noites tomava sopa e bebia uma taça de vinho tinto com o adorável casal de concierges do prédio onde eu morava. Mais de uma vez, Robert Orambourg, leitor diário de jornal popular, comentou episódios de execuções de condenados à guilhotina. Espantou-me o fato de que uma dessas execuções se dera poucas semanas após o julgamento de bárbaro crime. Jean Tarrou, após ter narrado ao personagem central, Dr. Rieux, o trauma que o acompanharia pela existência devido àquelas duas condenações à morte, ao sucumbir vítima da peste teria, talvez, encontrado a “santidade sem Deus”. Apesar de não acreditar em Deus, Camus não se considerava ateu. No caso de Meursault, no peristilo do cadafalso há a sua plena revolta ao receber a visita do Padre a falar que rezaria por ele.
Em nossa profícua conversa observei que, sob outra égide, a de Saint-Exupéry, Camus também apresenta, através de seus vários personagens, mensagens sobre essencialidades da condição do homem. Acrescentei que se, sob o aspecto humano, “há mais coisas a admirar do que a desprezar”; sob o lado dos periódicos flagelos nada a fazer, mas sim aguardá-los, pois vírus ou bactéria estariam sempre à espreita através dos tempos. Fui buscar o livro e traduzi para Marcelo o final contundente quanto às futuras e malfadadas pestes: “Escutando efetivamente os gritos eufóricos que vinham da cidade, Rieux se lembrou de que essa alegria estava sempre ameaçada. Sabia ele que se pode ler nos livros que o bacilo da peste não morre, tampouco jamais desaparece, mas que essa multidão alegre ignorava tal fato. O bacilo pode permanecer durante dezenas de anos dormindo nos móveis e nos lençóis, a esperar pacientemente nos quartos, nas caves, nas malas, nos lenços e na papelada. Talvez dia virá quando, por desgraça e para ensinar os homens, a peste despertará seus ratos e os enviará para morrer numa cidade feliz”.
Finalmente, Marcelo disse-me que lera nesses últimos dias, num site portal conhecido, que o Prêmio Nobel de Literatura (2010), Mario Vargas Llosa, escrevera que La Peste era um livro medíocre. Disse-lhe que tinha lido o artigo publicado em El País, periódico espanhol, em sua coluna Piedra de Toque. Discordo, data venia, da posição do ilustre Mario Vargas Llosa, escritor que muito admiro, a entender inoportuno e até deselegante segmento de seu artigo Regreso al Medioevo? (14/03/2020): “La peor novela de Albert Camus, La Peste, tiene un súbito renascimento y tanto en Francia como en España se hacen reediciones y esse libro mediocre se há convertido en un best seller”. Considere-se que a afirmação se destina a uma das obras essenciais de Albert Camus, Prêmio Nobel em 1957. Opiniões, opiniões…
Once again I write about Camus’ novel The Plague, with focus on the similarities between the book and the moment we now live: tiredness, sometimes almost indifference, in face of the sensationalist media coverage of the Covid-19 pandemic, the heroism of ordinary people doing extraordinary things, the awareness – as in the final paragraph of the book - that plagues never die, they just lie dormant waiting to take us by surprise. And, opposing this pessimism, the faint note of optimism when the novel’s main character says “there are more things to admire in men than to despise”. Camus, the man who said he didn’t believe in God but was not an atheist, had faith in humanity after all.