A carreira singular da notável pianista russa
As relações entre autor, intérprete e ouvinte
são por vezes contraditórias. Para o ouvinte,
o intérprete e o autor se confundem facilmente,
mesmo que ele acredite distingui-los.
Na realidade, o ouvinte pouco se preocupa
com as intenções do autor e se atém àquilo que ouve,
fator este, reflexão feita, que só podemos aprovar.
André Souris
(“Conditions de la Musique”)
A trajetória da pianista Maria Yudina foge completamente daquela de qualquer outro intérprete, se considerado for o rotineiro traçado de um concertista. São tantos os acontecimentos em seu caminho que se torna difícil enquadrar Maria Yudina em um formulário tão repetitivo na maioria das biografias dos executantes, como número de países visitados, regentes afamados sob a batuta dos quais foram solistas de Concertos para piano e orquestra, exaustiva repetição repertorial, recepção crítica. Igualmente distancia-se fulcralmente do politicamente correto no que tange aparência física, dinheiro como status social, presença do empresário, fatos esses que corroboram decididamente a sua interpretação diferenciada. Maria Yudina é convicta de suas execuções plenas da leitura personalíssima das partituras, fator esse que resultaria no respeito de seus ilustres contemporâneos, compositores e intérpretes, mas também em opiniões controversas.
Ao entrar no Conservatório de São Petersburgo estudará, entre outros professores, com Leonid Nikolaiev. Em sua classe teve como colegas Sofronitsky e Shostakovich.
Primeiramente, está-se diante de uma pianista anticonformista, distante de quaisquer padrões. No final da juventude converte-se à religião ortodoxa, devota atenção especial a São Francisco de Assis, torna-se fiel aos seus princípios espirituais. Quando professora no Conservatório de Leningrado, em aula não deixava de predicar, fato que durante longas décadas motivou ações persecutórias na extinta União Soviética e que lhe acarretaria sérios problemas.
Impedida de lecionar, viveu na pobreza durante algum tempo. Lecionou em Tbilisi, na Geórgia, e mais tarde, sob influência de Heinrich Neuhaus, no Conservatório de Moscou e igualmente no Instituto Gnessine. Em 1960 foi proibida de lecionar por motivos ligados à religião e ao seu repertório, que incluía compositores contemporâneos ocidentais que professavam técnicas repudiadas na União Soviética. Poderia dar recitais, mas ficou impedida de ter suas performances gravadas. Antes de um recital, a preceder a leitura de um poema de seu amigo Boris Pasternak, fez o sinal da cruz e o ato valeu-lhe cinco anos sem poder tocar em público. Tempos de Nikita Khruschev, oposto da aceitação inexplicável que Stalin a ela dispensava. Estou a me lembrar que, estando em Moscou para participar do II Concurso Tchaikovsky em 1962, ganhei LPs com obras de Scriabine interpretadas por Vladimir Sofronitsky, falecido em 1961, assim com o Cravo bem Temperado de J.S.Bach por Sviatoslav Richter. Colegas me falaram inúmeras vezes da consagrada Escola Russa de piano, mas jamais mencionaram Maria Yudina, “ressuscitada” nessas últimas décadas. Em seu importante livro “A Arte do Piano” (1º edição russa, 1958), Heinrich Neuhaus não menciona Maria Yudina e Harold C. Schonberg, em sua obra “The Great Pianists” (1963), apenas cita seu nome sem se pormenorizar.
Fez sempre severa oposição ao regime comunista e inacreditavelmente, apesar das críticas ácidas que fazia ao próprio Stalin, jamais recebeu “castigo”, fato inusitado. Um colega russo disse-me certa vez, no início da década de 2010, na Bélgica, que não tivesse ela o respeito de Joseph Stalin teria desaparecido inexplicavelmente, como quantidade incalculável de opositores.
Alguns fatos, entre muitos na vida de Maria Yudina, merecem menção. Bem divulgado há o episódio narrado nas memórias de Shostakovitch. Refere-se ao fato de Stalin ter ouvido através da rádio o início do Concerto nº 23 para piano e orquestra de Mozart, a ter Maria Yudina como pianista. Pediu ao seu ajudante de campo que buscasse a gravação. Todavia, o concerto estava em transmissão direta. Com medo de represálias, o diretor da rádio envia alguém para contatar imediatamente a pianista. Acordaram-na no meio da noite, conduziram-na ao estúdio e uma pequena orquestra chamada às pressas já estava à sua espera. A gravação foi feita com outro regente, pois o da transmissão direta estava traumatizado com o acontecido. A execução foi gravada diretamente num LP e nele adicionaram uma etiqueta. Quando o ditador morreu, dizem que o LP estava na sua vitrola. Em outra oportunidade Stalin lhe concede um apartamento e ela quebraria os vidros das janelas, a dizer que preferia viver como os outros russos menos afortunados. Em carta a Stalin, após receber uma quantia a ela destinada, responderia que daria a importância à sua igreja para que rezassem pela alma do ditador mercê dos crimes por ele cometidos contra o povo russo. Supersticioso, Stalin a admirava, mas nunca lhe respondeu.
Clique para ouvir, na interpretação de Maria Yudina, o Adagio do Concerto nº 23 em Lá Maior de Mozart, K. 488
https://www.youtube.com/watch?v=6l0bsTNsnX0
Apresentar-se-ia na União Soviética e países satélites, mas jamais fora do bloco. Estando em Leipzig pela primeira vez, atravessaria de joelhos a praça que a levaria à estátua de J.S.Bach. Vestia-se de preto, não cuidava da aparência física sempre austera e tinha em suas relações de amizade artistas plásticos, escritores e arquitetos.
Clique para ouvir, na interpretação de Maria Yudina (1952), o Prelúdio e Fuga em lá menor para órgão, na transcrição para piano realizada por Franz Liszt.
https://www.youtube.com/watch?v=1qWSNI_P378
Um ano mais tarde (1953), transfigura a execução e, ao vivo, destaca com incrível pujança a presença dos baixos, a lembrar sua reverberação em uma catedral.
Clique para ouvir, na interpretação gravada ao vivo de Maria Yudina (1953), o Prelúdio e Fuga em lá menor para órgão, na transcrição para piano realizada por Franz Liszt.
https://www.youtube.com/watch?v=puwboQ_zNNI
Após a queda do muro de Berlim, mais e mais a figura de Maria Yudina se agiganta. Fugindo de interpretações características da chamada Escola Russa, já observadas anteriormente (vide blogs sobre Vladimir Sofronitsky, Emil Gilels, Vladimir Horowitz e Sviatoslav Richter), em cada obra por ela executada há a nítida impressão digital. Suas interpretações fogem de qualquer ditame acadêmico. A tendência a uma espécie de “monasticismo social”, seus escritos religiosos, o despojamento total quanto à aparência física, o anticomunismo – anátema diante da Nomenklatura – não a teriam inclinado à interpretação diferenciada da obra J.S.Bach, prenúncio das ousadias propostas posteriormente relacionadas às composições do grande músico alemão empreendidas por outros pianistas? Arrojada ao tocar, demonstrando uma leitura inusitada das partituras, explorando as altas intensidades com bravura incomum, mas também tendo imensa sensibilidade no tratamento das sonoridades em piano e pianissimo e na flexibilização dos andamentos dentro de uma lógica rigorosamente individual, se tantas vezes ela foge dos ditames impostos pela convenção, nunca deixa de transmitir uma visão convincente. Exemplo claro temos na sua leitura dos Quadros de uma Exposição de Moussorgsky, em que Maria Yudina encontra sua visão particular de cada quadro exposto, a chegar até a interferir no original do compositor. Nesse quesito, sobre outra égide, aproxima-se da releitura dos Quadros... realizada por Vladimir Horowitz, essa influenciada, bem possivelmente, pela transcrição para orquestra elaborada por Maurice Ravel.
Clique para ouvir, na interpretação de Maria Yudina, os Quadros de uma Exposição de Moussorgsky, gravação realizada em 1952:
https://www.youtube.com/watch?v=u2WrmLYfkvA
Em artigo publicado no Suplemento Cultura do Estadão (“As mortes do intérprete”, 1988) escrevia que, mesmo se considerando a qualidade do pianista, interpretações que se distanciam das normas da tradição têm grande interesse, mas dificilmente servem de modelo. Maria Yudina buscou caminho interpretativo inédito e bem tardiamente outros também assim agiram. Segui-la como arquétipo na tentativa de imitá-la leva ao simulacro exemplar. Todavia, as interpretações da notável Maria Yudina são extraordinárias. Nome referencial da arte pianística.
O documentário russo “Alma Mater” bem expõe depoimentos preciosos de seus contemporâneos. Há legenda em inglês:
https://www.youtube.com/watch?v=zF03KVIsrns
This post is about the Russian pianist and teacher Maria Yudina (1899-1970), who dared challenge the Soviet State with her advocacy of modern Western composers, religious convictions and open criticism of the communist regime. Joseph Stalin‘s admiration for her talent may have saved her life, but under Kruschev things have changed and she was often forbidden of pursuing some of her musical activities. Yudina’s playing is marked by virtuosity, strength, exceptional control of dynamics, but is also highly personal, deviating from the traditional piano practices of the Russian school. Hidden behind the iron curtain during her lifetime, after the fall of the Berlin wall her name has grown in stature and now commands huge respect in the classical music world.
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