Idalete Giga e a leitura constante dos blogs
Escrevendo ou lendo nos unimos para além
do tempo e do espaço, e os limitados braços
se põem a abraçar o mundo;
a riqueza de outros nos enriquece a nós. Leia.
Agostinho da Silva
Diversas vezes escrevi sobre a notável especialista em Canto Gregoriano Idalete Giga, Diretora do Centro Ward de Lisboa. Conheci-a em 1981, pois discípula de nossa saudosa amiga, a ilustre professora Júlia d’Almendra (1904-1992), fundadora do Centro de Estudos Gregorianos em 1953, futuro Instituto Gregoriano de Lisboa (1976).
Quase todos os anos dou recitais em Portugal e nossos encontros são inevitáveis, prazerosos e profícuos. Há tantos temas em nossa área musical no sentido amplo e tenho a convicção de que nos enriquecemos mutuamente.
Idalete é leitora fiel de meus blogs semanais, fato que me traz alegria. A pandemia impediu-me de estar em Portugal neste 2020. Há meses não nos comunicamos. Todavia, foi uma surpresa agradável receber sua mensagem, a fazer uma síntese dos blogs que mais a sensibilizaram a partir do dedicado à grande pianista Guiomar Novaes em 9 de Maio último.
Transmito ao leitor a mensagem de Idalete Giga, como o faço com os e-mails do compositor francês François Servenière a focalizar sempre determinado post, estendendo largamente suas convicções a respeito da temática. Desta vez é Idalete que, ao opinar sobre blogs de Maio ao presente, bem focaliza essencialidades dos temas abordados.
“Sempre Querido Amigo José Eduardo,
Estive a ver o último e-mail que lhe enviei. Foi a 6 de Maio. O tempo passa muito depressa, apesar da situação de pandemia que estamos a viver. Aliás, perdemos até um pouco a noção do tempo.
Peço desculpa por ter deixado passar praticamente três meses sem lhe escrever. Fui, no entanto, lendo os seus posts, que são sempre para mim uma aprendizagem preciosa.
Já que tomo sempre algumas notas quando leio os seus textos, vou referir-me a alguns que mais me emocionaram. Fiquei encantada com tudo o que escreveu sobre a extraordinária pianista Guiomar Novaes. Que bela quadra do nosso saudoso e querido Agostinho da Silva como prelúdio do post de 9 de Maio! Congratulo-me com o querido Amigo por fazer lembrar, sobretudo aos brasileiros, essa genial pianista. Ouvi as gravações que inseriu nos posts de 9 e 16 de Maio (Rapsódia Húngara, de Liszt, Orfeu e Euridice , de Gluck-Sgambati e o Concerto para piano nº 20 em ré m, K.466, de Mozart!) . Qualquer das interpretações revela uma grande intérprete. A Melodie emocionou-me especialmente. Que expressividade, que delicadeza! Gluck choraria ao ouvi-la. Partilhei-a na minha página do facebook, bem como o Concerto de Mozart.
No seu texto de 23 de Maio , mais uma vez cita no prelúdio do post um pensamento de Agostinho da Silva, que achei profundamente filosófico: ‘Deus não se afirma nem se nega. Deus é, mesmo quando não é, numa plena manifestação da sua extrema liberdade’. Gostei da entrevista que fez ao seu irmão Ives depois de todo o sofrimento por que passou no hospital e também dos dois artigos que ele escreveu. Graças ao Pai do céu, seu irmão regressou ao mistério que é a própria vida.
Ainda em Maio, o que escreveu sobre os Carnets de Saint-Exupéry revela muitos aspectos desconhecidos deste desse grande humanista.
Adorei o seu post sobre Clara Haskil. Das gravações que inseriu no Youtube e que ouvi, partilhei a Toccata em E m, de Bach. Que maravilha! Como é possível haver tanta ignorância sobre Clara Haskil e outros geniais pianistas que foram atirados para o mundo vazio do esquecimento?
As magníficas interpretações do José Eduardo de Les Tourbillons, de Dandrieu e Rameau, também as partilhei na minha página do facebook. Que desenho belíssimo do nosso querido e saudoso Luca Vitali, O giro da bailarina, a ilustrar o post. No Alentejo chamamos, ao turbilhão provocado pelo vento, um ‘espoginho’.
No post de 20 de Junho, as interpretações do pianista russo Emil Gilels são de cortar a respiração. Adorei sobretudo o Prelúdio em si m, de Bach-Siloti, e o célebre Concerto para piano nº 1, de Tchaikovsky. Interpretação vigorosa e ao mesmo tempo profundamente poética e romântica. Os temas dos vários andamentos são, aliás, belíssimos e inesquecíveis.
Fiquei impressionada com Sviatoslav Richter ao ver o documentário Enigma, de Bruno Monsaingeon. A sua interpretação da Fantasia & Fuga em Lá m, de Bach, é um monumento. Como Bach adoraria ouvir esse genial pianista. Partilhei na minha página e muitos amigos ficaram também impressionados com o virtuosismo de Richter. Ele desfaz-se em precisão rítmica! É único!
Desconhecia as obras interessantíssimas que o compositor contemporâneo Paulo Costa Lima lhe dedicou e que o José Eduardo interpreta genialmente. Pega essa nêga e chêra op. 28 e também Imikaiá op. 32 sugerem-me água em límpidas cascatas. O Ponteio-Estudo é de uma grande dificuldade interpretativa. Parabéns pelas suas interpretações! Estive a ver o link sobre o compositor e fiquei encantada. Encantou-me, sobretudo, a ligação que Paulo Costa Lima faz entre a música popular tradicional e a música erudita contemporânea.
Quanto aos posts de Julho, em que o Amigo escreve sobre as problemáticas da Música Clássica ( I e II ), a quadra de Agostinho da Silva, a preludiar o post de 11 de Julho, ‘Não corro como corria/ Nem salto como saltava/ Mas vejo mais do que via/ E sonho mais que sonhava’ revela a profunda vivência e sabedoria dos velhos.
Creio que a diminuição de público nas Salas de Concerto é o resultado, sem dúvida, de uma Educação deficiente. Mas também se deve a uma ‘dessacralização’ do Ocidente , ou seja, ao desprezo por tudo o que é sagrado, cujo sentido se perdeu. Sendo a Música – popular e erudita, religiosa ou profana – a alma do som, a espiritualização sonora, nada disto interessa hoje aos materialistas e consumidores exacerbados de música barata , medíocre, descartável , ruidosa, que tem contribuído para a decadência da civilização. Justiça seja feita à China, que pretende mostrar ao mundo que assimilou a cultura ocidental, tendo criado centenas de Conservatórios e fábricas de instrumentos musicais…. e ultrapassa o Ocidente!
É uma distorção da mentalidade e mais uma vez uma triste ignorância considerar a Música clássica ligada ao racismo, como se a Música tivesse a cor branca, negra ou amarela. As citações que o José Eduardo menciona, uma de Rameau, ‘A música é a linguagem do coração’ e outra de Albert Schweitzer ‘Quando o homem aprender a amar o menor ser da Criação, seja animal ou vegetal, ninguém precisará de ensiná-lo a amar o seu semelhante’ revelam, sem dúvida, a alma da grande Música (a Mãe de todas as Artes), que é espiritual e profundamente humana.
Não sabia que Luiz Godoy (que dirige os Pequenos Cantores de Viena) tinha sido seu aluno. PARABÉNS! Adorei ouvir a obra de Dick Lee, Home, pelos pequenos cantores de Viena, outros coros e a Orquestra Filarmónica Juvenil de Singapura. dirigida por Godoy. Partilhei na minha página do Facebook.
Também achei muito pertinente o seu texto sobre La Peste, de Albert Camus (post de 25 de Julho), em que faz a comparação com a actual pandemia que estamos a viver. As tragédias humanas continuam a repetir-se e não são coisa do passado, infelizmente. A actual pandemia tem uma relação directa com a poluição do nosso planeta, que continua a ser destruído. E os déspotas, os governos tiranos não querem ver….
Nos ecos de La Peste fiquei triste com a afirmação de Vargas Llosa, que considera medíocre esta obra de Camus. Não consigo compreender tal afirmação de um homem tão inteligente e humano como Vargas Llosa.
Quanto ao excelso pianista chileno Cláudio Arrau, basta ouvir a sua interpretação da Sonata Appassionata, de Beethoven, para não restarem quaisquer dúvidas da sua genialidade.
Depois de ler o seu post e de ouvir as gravações da pianista russa Maria Yudina, só posso agradecer esta dádiva preciosa e não poderia nunca deixar de escrever algumas palavras, embora insuficientes para expressar, com emoção, a personalidade de tão grande e genial pianista. Na verdade, ela não se enquadra em nenhum “formulário” saído da tradição. A sua filosofia de vida, o seu inconformismo, o seu despojamento perante as riquezas materiais, a sua simplicidade, bondade extrema e profunda religiosidade (era uma cristã ortodoxa convicta), o amor que nutria pelo seu povo, para quem tocava e por quem sofreu, todos estes aspectos da sua personalidade nunca poderiam conduzir Yudina a clichés interpretativos, a imitações ou à dependência fosse de quem fosse. Ela encarnava a própria Música. Por isso, as suas interpretações são únicas, pessoais, e revelam bem a alma dessa mulher extraordinária. Ela teve a coragem de enfrentar o déspota e cruel Stalin, que se rendeu à sua genialidade. Se a interpretação sublime do Adagio do Concerto nº 23 em Lá M K.488, de Mozart, fez chorar Stalin, a interpretação de Lacrimosa, do Requiem de Mozart (incluída no Documentário russo Alma Mater), é como uma marcha fúnebre em que Maria Yudina chora por todos os compatriotas perseguidos e mortos.
Afirmava que para ela só havia um caminho para Deus, a Arte. Para compreendermos esta afirmação da própria Maria Yudina basta ouvir a sua interpretação do Prelúdio & Fuga em Lá m para órgão, de Bach (transcrição para piano, de Liszt), num Concerto ao vivo, em 1953. É o esplendor da Beleza. Bach devia ser a sua luz, a sua inspiração. Não admira que, em Leipzig, tenha atravessado de joelhos a praça que a conduziu à estátua do grande Mestre. Emocionante.
Obrigada, querido Amigo, por nos proporcionar interpretações únicas e históricas de grandes pianistas que vieram ao mundo para torná-lo mais belo e humano”.
A mensagem de minha dileta amiga e notável gregorianista corrobora a vontade de continuar. Desde 2 de Março de 2007 ainda não deixei de publicar um sábado sequer meus blogs hebdomadários. Já escrevi que a respiração não pede férias. Continuarei até…
Clique para ouvir pelo Coro “Capela Gregoriana Laus Deo”, Natal de Elvas, Cancioneiro Alentejano. Harmonização e regência Idalete Giga:
https://www.youtube.com/watch?v=l5YnExjckwU
Idalete Giga, choral conductor and an authority on the performance of Gregorian chants who lives in Portugal, is also a longtime friend and attentive reader of my blog. What a surprise to receive a message in which she comments on each of my posts published from last May to the present. Today I share her words with my readers. Idalete is a music lover and I believe her thoughts can deepen our understanding of the topics addressed.