Encerro o ciclo de gravações no Exterior


No fundo,
todas as pessoas idosas pensam de maneira histórica,
mesmo que estejam longe de ter toda consciência disso.

Hermann Hesse

Sim, o crítico dos críticos é só ele – o tempo.
Infalível e insubornável.

Guerra Junqueiro

A reflexão em torno da velhice pode trazer à consciência recordações mantidas em compartimento secreto nas profundezas da memória durante décadas. Lembrar-se da infância, numa tentativa de um balanço parcial daquele período mágico, é também reencontrar momentos aparentemente inexpressivos, mas que se tornaram decisivos.

A Música tem suas exigências, mormente para os intérpretes de certos instrumentos, mercê de suas especificações, apelando à precocidade como elemento essencial para o futuro desempenho. Durante o percurso que se desenha, desvios no trajeto e o canto das sereias tendem a distrair vocações por vários anos e, provavelmente, o caminho jamais será reencontrado. Contudo, o pequeno caminhante, cônscio de sua vocação na busca da plena humanidade move-se pela determinação.

Após ter gravado cinco LPs no Brasil nos anos 1980, nas difíceis condições tecnológicas do período, somente em 1995 registrei meu primeiro CD no Exterior. Completo com “Retour à l’Enfance” (France, ESOLEM Production, 2020), meu 25º, o derradeiro. Há o momento da síntese e esse tempo misterioso chegou. Aos 82 continuarei a tocar, mas a gravação é outra categoria para a apresentação da obra musical, única que tem a possibilidade de permanecer por tempo prolongado, mas também incerto. Sempre entendi a apresentação pública sem registro como o vento que passa. O público pode empolgar-se, mas a memória é implacável na retenção do que foi ouvido e a densa neblina se instala, a não ser para performances raras e essenciais. A exigência diante de microfones, se por um lado é absoluta, sob outro aspecto propicia ao executante a possibilidade de estar próximo da perfeição, esse estado de excelência jamais atingido. A gravação na solidão é inimiga do gesto, tantas vezes a serviço do espetáculo. A vontade de servir à música é a antítese do simulacro. Estar só diante dos microfones libera o conteúdo mais autêntico do nosso de profundis. A maioria de minhas gravações foi realizada na Bélgica Flamenga, na diminuta cidade de Mullem, próxima à Gent. A Capela de Saint-Hilarius, do século XI, foi ao longo de vinte anos meu Templo do coração. Nesses 13 anos e meio de blogs ininterruptos dediquei-lhe vários textos. Tive a oportunidade de gravar, entre 1996-1997, quatro CDs na Sala Bulgária em Sofia, igualmente com acústica extraordinária, mas com outra característica. Em 2003 gravaria CD em Leiria, Portugal. Não obstante, Mullem foi decididamente o lugar mais amado para depositar minhas confidências musicais, sempre sob a supervisão de um grande mestre, o engenheiro de som Johan Kennivé, um dos mais competentes do planeta. Vinte anos de uma amizade irretocável em torno das gravações, sempre durante três longas noites, todos os anos. A comunhão se dava hic et nunc nessa busca do inefável. Ao longo do tempo atravessamos todas as estações, desde o inverno super-rigoroso ao calor aprazível.

Dedico este último CD à criança que eu fui e que começou a desvendar os segredos sonoros aos nove anos, crescendo sempre sob a égide da música e diante de um teclado de 88 teclas que esconde os grandes mistérios da interpretação.

Esse retorno à infância foi feito a passo de lobo, de uma maneira quase mística. Não queria perturbar o miúdo que eu fui, pois ele tinha seus sonhos… Essa criança nos anos 1940 já sentia amor pelo estudo diário, que o encantava. Na infância, há descobertas que permanecem arquivadas para sempre. Iniciava a longa caminhada. Dos dois professores carinhosos desse começo não guardo precisões, Aida de Vuono e Antônio Giammarusti. Logo a seguir fiquei sob a orientação do professor Berkowitz, que chegou ao Brasil durante a guerra. Rigoroso sob o aspecto técnico, todavia retenho lembranças de sua meticulosa preocupação com os dedilhados, a frase musical e, sobretudo, com o legato, para ele essencial para a interpretação. Ofereceu-me um presente num aniversário, as Peças Líricas op. 12 de Edvard Grieg (1843-1907), esse pequeno caderno pleno de poesia e cantos sensíveis. Com o mestre estudei uns dois anos antes de continuar a caminhada com o renomado professor José Kliass, igualmente russo de ascendência judaica, até minha ida para prosseguir em Paris com os irretocáveis mestres franceses.

Para esse 25º CD, que representa meu adeus às gravações para piano solo, escolhi repertório não necessariamente para ser tocado por uma criança, mas cujo espírito está voltado a esse período basilar, os primeiros anos de aprendizado.

Inicialmente a primeira das Peças Líricas do opus 12 (1887) de Edward Grieg, Arietta. O compositor norueguês compõe 10 cadernos de Peças Líricas e para a derradeira composição do último caderno, op 71, Souvenirs, Grieg se utiliza do tema da Arietta, mas a peça evolui em ritmo de valsa, realizando modulações expressivas. Pensando nesses extremos propostos por Grieg, faço minhas essas intenções, e termino o CD com Souvenirs, tão plena de símbolos. Estou a me lembrar de ter acompanhado em paz a reverberação das últimas notas do acorde em mi bemol maior e em ppp nas milenares paredes de pedra da Capela de Saint-Hilarius. Johan e eu permanecemos em silêncio…

Se os extremos representados pelas duas peças de Grieg podem ser entendidos como expressão de início e fim e a presença delas estava a ser pensada com esse propósito, a escolha das outras obras do CD foi realizada igualmente de maneira sensível, criações que me calam fundo.

A seguir Arietta, obras do compositor francês François Servenière (1961- ), tantas vezes presente em meus blogs através de comentários dos posts semanais, sempre a acrescentar argutas observações. Anteriormente gravara, para o CD “Éthers de l’Infini” (ESOLEM, France, 2017), sete Études Cosmiques + Automne Cosmique (vide YouTube), obras inspiradas nas telas da série Cósmica do notável pintor e saudoso amigo Luca Vitali (1940-2013). Promenade sur la Voie Lactée para piano é a terceira versão de sensível criação originalmente escrita para piano, flauta, harpa, coral e orquestra de cordas (2008). Ao ouvi-la nessa configuração, comuniquei a Servenière que a criação teria tudo para ser vertida para piano solo, pois, independentemente de ser uma peça de rara beleza, presta homenagem ao “Pequeno Príncipe” de Saint-Exupéry. Desde a juventude, o piloto-escritor é um de meus eleitos, mormente sua obra-prima, “Citadelle”, meu livro de cabeceira. É também um dos escritores preferidos de Servenière. Das sete peças que compõem Tribulations d’un Écureil Lambda (2002), escolhi três para o CD: Déjeuner, Sieste e Crépuscule. Durante dias Servenière observou movimentos de um esquilo em um parque.

Clique para ouvir de François Servenière, na interpretação de J.E.M., Promenade sur la Voie Lactée:

https://www.youtube.com/watch?v=JQDkWn1HcpQ&list=UUzJwYSy2cjMR4kviAAgcQrA

Em 1999 gravei, para o selo belga De Rode Pomp, CD dedicado a Francisco de Lacerda (1869-1934), compositor nascido nos Açores, e Claude Debussy (1862-1918). Foram amigos. A inefável coletânea do compositor açoriano, Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste (vide YouTube), causou forte impressão sobre François Servenière e Eurico Carrapatoso (1962- ), renomado compositor português. O primeiro compôs Trois musiques pour endormir les enfants d’un compositeur (2011) e Carrapatoso, Six histoires d’enfants pour amuser un artiste (2011) a partir de poemas de Violeta Figueiredo. Carrapatoso soube captar a verve atraente e singela dos versos da poetisa portuguesa. No CD, inseri duas peças de Lacerda: Papillons (1896) e Zara (1900), a primeira uma valsa ligeira característica do período e Zara, a síntese da síntese de um dos processos de Lacerda voltado à antítese do supérfluo.

Clique para ouvir de Francisco de Lacerda, na interpretação de J.E.M., Papillons e Zaraepitáfio para uma criança:

https://www.youtube.com/watch?v=rOa_dEmQg30

Gilberto Mendes (1922-2016), figura emblemática da música brasileira, guardaria sempre uma característica lúdica em quantidade de obras. Foi um privilégio ter sido dedicatário de tantas criações do amigo compositor. Sonatina à la Mozart foi composta em 1951. Nos anos 1990, almoçando no apartamento de Gilberto em Santos, perguntei-lhe sobre suas composições do passado. Disse-me que estavam embrulhadas num baú e que não mais lhe interessavam. Insisti, e sua esposa, Eliane, retira do pacote com barbante as partituras. Imediatamente fui ao piano e li a Sonatina. Ao findar, Gilberto me disse sorrindo: “não é que ela é bonita?”. Percalços em relação a uma bela coletânea de outro compositor de mérito, gravada e que deveria integrar o CD, fizeram-me, num lampejo, optar pela Sonatina, gravada anteriormente em 1996 na Sala Bulgária, em Sófia.

Maury Buchala (1967 ) foi meu aluno na Universidade de São Paulo. Um dos mais talentosos. Em Paris desde os anos 1990, desenvolve carreira como compositor e regente competente. As três pequenas peças que compõem L’enfant devant l’inattendu revelam uma escritura muito pessoal de Buchala.

Clique para ouvir de Maury Buchala, na interpretação de J.E.M., L’enfant devant l’inattendu:

https://www.youtube.com/watch?v=lXQtVGTg0T4

Ressalto a qualidade do encarte. François Servenière, tendo visitado as grutas de Gargas nos Pirineus, uma das mais importantes grutas do paleolítico superior na Europa, inspirou-se nas várias impressões de mãos ancestrais pelas paredes. Tornou essas marcas presentes em quase todas as páginas do encarte. As mãozinhas de minha segunda bisneta, Esther, sobre a minha, foto do instante do acontecido, sem qualquer planejamento, representaram para o compositor pensador a absoluta imagem da passagem do tempo. Sob outra égide, todo o encarte, idealizado por François Servenière, mantém um padrão visual de excelência.

O longo percurso tem sido uma descoberta contínua. Até os 33 anos percorri o repertório tradicional rigorosamente necessário, por vezes revisitado. Todavia, a partir de 1971 minha atenção voltou-se para o repertório pouco ou nada frequentado, do barroco à contemporaneidade. Trabalho arqueológico tantas vezes, pois tesouros mantinham-se escondidos, extraordinárias criações que, por motivos os mais variados, foram praticamente ignoradas. O público, a grande maioria, por motivos os mais diversos não ama o desconhecido. O aprofundamento nesse repertório foi minha dedicação e alegria durante toda a vida. Seguramente posso afirmar que, cercado por bela família, música, leitura, escritos, amizades poucas e certas, corridas de rua, entendo lindamente a frase do pintor francês Dunoyer de Ségonzac (1884-1974): “Leva-se toda uma vida para construir sua casa”.

Today I write about the release of my album “Retour à l’Enfance” (Return to Childhood) by the French label ESOLEM PRODUCTION. The CD title alludes not to a repertoire intended to be played by children, but to works ruled by a playful mood. In this spirit, I have selected pieces by the following composers: Edward Grieg, Francisco de Lacerda, François Servenière, Eurico Carrapatoso, Gilberto Mendes, Maury Buchala. This is my 25th album recorded in Europe and my farewell to piano solo recordings. It has been a long way since I began my piano study at the age of nine. At the outset of my career I used to play the traditional repertoire, but from the seventies onwards I opted for seldom played works, trying to bring to light unknown treasures from baroque to contemporaneity. For several reasons, the great majority of the public does not like the unknown, but my musical choices have been one of the joys of my life. Surrounded by a lovely family and a few real friends, devoting my time to music, writing, street racing, I believe I understand the words of painter Dunoyer de Ségonzac: “It takes a lifetime to build home”.