O que mais dizer de uma pianista absoluta?

Tenho três grandes paixões em minha vida:
Mozart, o Beethoven da segunda fase
e Antonieta Rudge executando os dois.
Arthur Rubinstein

O primeiro nome referencial do piano brasileiro nasceu e morreu em São Paulo. Estudou com o mestre francês Louis Giraudon e posteriormente com Luigi Chiafarelli, professor igualmente de Guiomar Novaes e Souza Lima. Foi artista excelsa e sua atividade como pianista levou-a a se apresentar na França, Alemanha e Inglaterra, sempre com entusiástica recepção.

Preliminarmente apresento comentários relevantes sobre Antonieta Rudge escritos pelo renomado pianista, pedagogo e compositor francês de origem húngara, Isidor Philipp: “Madame Antonieta Rudge é uma artista notável, dotada de todas as qualidades que constituem o verdadeiro e o belo talento. Fiquei encantado ao ouvi-la”. O ilustre pianista, compositor e editor Arthur Napoleão, nascido em Portugal e que, a partir de 1866 até o fim de seus dias, radicar-se-ia no Brasil, escreve: “Na minha já bem longa carreira artística, tive ocasião de me encontrar com grandes celebridades de seu sexo, à frente das quais citarei Clara Schumann e Sophie Menter. Nenhuma delas excedia Antonieta em coisa alguma, nem na execução impecável das maiores dificuldades, nem no estilo, resistência e memória prodigiosa. Mais ainda, Antonieta Rudge não tem que temer o confronto com qualquer pianista, mesmo do outro sexo”. O último escrito extraído do encarte da significativa série de CDs lançados pelo selo Master Class, denominada “Grandes Pianistas Brasileiros”.

Mercê do entusiasmo de Luigi Chiafarelli, Antonieta Rudge apresentou-se tocando música de câmara com Saint-Saëns, Pablo Casals e Harold Bauer, quando de turnês desses três destacados músicos ao Brasil.

Clique para ouvir, de Henrique Oswald, Impromptu op. 19 na interpretação de Antonieta Rudge:

https://www.youtube.com/watch?v=Jt65g_BktD8

Infelizmente, Antonieta Rudge deixou poucas gravações, registradas entre 1930 e 1940, pois tendo praticamente cessado na meia idade carreira pianística para desenvolver atividade pedagógica, a esta função de dedicaria aproximadamente durante 40 anos. Isso não a impediu de se apresentar raramente em récitas históricas, sendo que a última se deu no Teatro Coliseu de Santos em 1964, quando os três mais expressivos alunos de Chiafarelli – Antonieta Rudge, Guiomar Novaes e Sousa Lima – interpretaram o Concerto para três pianos de Mozart. Seria uma das fundadoras do Conservatório Musical de Santos em 1927. Futuramente seria proprietária do estabelecimento de ensino. Entre seus alunos que a louvavam com entusiasmo, os compositores Gilberto Mendes (1922-2016) e José Antônio Almeida Prado (1943-2010).

Clique para ouvir, de Savino de Benedictis, Borboleta Azul, na interpretação de Antonieta Rudge:

https://www.youtube.com/watch?v=GE-e5vz7Tag

Em 1906 casar-se-ia com Charles Miller – introdutor do futebol no Brasil -, casamento que se prolongaria até 1926, quando se une ao escritor e poeta Menotti Del Picchia com quem se casaria em 1968.

Durante cerca de vinte anos, Antonieta, com Menotti Del Picchia e Helena filha do primeiro casamento da pianista, passaram Natal e Ano Novo em casa de meus pais. Em 1971, antes de apresentar a integral de Jean-Philippe Rameau para cravo, executada ao piano em dois recitais no Teatro Itália em São Paulo, telefonei à Antonieta Rudge para repassar esse programa inédito em sua morada. Em duas tardes o fiz, sendo que Antonieta, Menotti e Helena, sentados em uma poltrona ouviram essa denominada “repetição”, tão comum quando se trata de programas novos. Recebi todo o apoio, o ilustre poeta espontaneamente escreveu texto para o programa impresso e a ilustre pianista me ofereceu partituras de seu acervo. O casal e Helena estiveram na minha apresentação da integral das Sonatas Bíblicas de Johan Kuhnau (1660-1722) no MASP em 1972, resultando desenho de Menotti Del Picchia.

Clique para ouvir, de Chopin, Impromptu nº 1, opus 29; de Scriabine, Prelúdio op. 11 nº 10; de Alexandre Levy, Tango brasileiro, na interpretação de Antonieta Rudge:

https://www.youtube.com/watch?v=6rGgDgm1dEI

O multum in minimo pode perfeitamente ser aplicado às interpretações de Antonieta Rudge. Apesar de um extenso repertório, mas escassa discografia, o legado da pianista é irretocável. Suas interpretações, primorosas sob todos os aspectos, primam pela qualidade da apreensão das obras, observada nos grandes mestres do passado. A frase musical é tratada com plasticidade ímpar, o que evidencia a naturalidade do tocar, sem quaisquer artifícios visando a agradar ao ouvinte. Desde as apresentações na adolescência já eram louvadas a sua precisão técnica e a interpretação singular. Se as qualidades musicais de Antonieta Rudge eram de excelência, a pianista seria a primeira artista brasileira a ter o domínio absoluto do técnico-pianístico.

Importantes compositores lhe dedicaram obras, entre os quais Henrique Oswald, Villa-Lobos, Francisco Mignone, Arthur Napoleão, Camargo Guarnieri, Alberto Nepomuceno e Almeida Prado, que após a morte da pianista lhe dedicou Paradisum.

Nos exemplos que apontamos, poder-se-ia afirmar que suas interpretações têm a marca do inefável. Como Arthur Napoleão captou a essência das execuções de Antonieta Rudge!!!

Clique para ouvir de Wagner, na transcrição de Liszt, A morte de Isolda na interpretação de Antonieta Rudge, considerada por muitos músicos, entre os quais me incluo, inexcedível:

https://www.youtube.com/watch?v=Je4FdUW6xpg

A partir de uma máscara realizada por Menotti Del Picchia, o artista Luiz Morrone realizou escultura que está presente, desde 1977, na Praça Portugal, não distante da morada da artista.

A se ver os poucos acessos no Youtube aos grandes intérpretes do passado, percebe-se um exemplo a mais de um desmonte progressivo de nossas raízes culturais mais autênticas. Civilização do espetáculo irreversível, voltada ao que de mais efêmero possa existir.

Today’s post addresses the extraordinary pianist Antonieta Rudge (1885-1974), a reference name of the Brazilian piano and the first to win international acclaim. The great Arthur Rubinstein has said that he had three great passions in life: Mozart, Beethoven in his second phase, and Antonieta Rudge playing both of them. For about twenty years, Antonieta, with her daughter and second husband, the celebrated  poet and writer Menotti Del Picchia, spent Christmas and New Year’s Eve at my parents’ home. She virtually gave up live performances in midlife and was afterwards active as a pedagogue. Despite Antonieta Rudge’s extensive repertoire, her discography is scarce, but her legacy is outstanding in all aspects. Her technical precision and exquisite interpretation have been praised since adolescence. Unfortunately, great masters of the past are little remembered today, as proved by the number of accesses to their videos on YouTube, a sign of present day cultural mediocrity.