Comentário sobre o último CD
Agradabilíssima surpresa reservava-me o domingo 19 deste Outubro. Recebia mensagem do ilustre musicólogo português, José Maria Pedrosa Cardoso, enviando suas apreciações sobre o CD “Retour à l’Enfance” lançado em França pelo selo ESOLEM (vide blog “Retour à L’Enfance”, 26/09/2020), a representar meu derradeiro CD, o 25º gravado na Europa. Familiares e uns poucos amigos aos quais enviei a resenha do professor Pedrosa Cardoso me estimularam a publicar a resenha neste espaço, apesar de minhas hesitações iniciais. Consultado, o respeitado professor consentiu. Apresento novamente a criação de François Servenière, Promenade sur la Voie Lactée, a pedido de inúmeros leitores. Brevemente outras composições constantes do CD estarão no YouTube.
“Encanto de álbum: no seu aspecto, na sua cor, na sua apresentação, no seu conteúdo. Todo ele símbolo de uma vida perfeita, realizada.
Mão grande e mão pequena. Mão grande, de artista consumado: mão pequena, de um iniciado, fisicamente distante. Mão segura, experiente, de José Eduardo Martins: mão tenra, carinhosa, da sua bisneta Esther. Duas mãos, porque de mãos se trata, preenchem simbolicamente o álbum emoldurado com cercadura clássica. Tudo a ver com o significado de uma arte nova inapelavelmente envelhecida. Produção mimada de Esolem Productions, com o dedo de François Servenière.
Visual personalizado: JOSÉ EDUARDO MARTINS. Nos seus 82 anos, apresentado em fotos evocativas: da actualidade laboral e desportiva aos primórdios do seu casamento com o piano, com nove anos. E sempre o piano a justificar o conteúdo da gravação, mas também a sua presença constante nos compositores que a compõem e, não de somenos, o seu enquadramento bem conseguido, na montagem de François Servenière, o editor. É também ele que se apresenta a si mesmo no belo e harmonioso booklet que acompanha o álbum. José Eduardo Martins começou os estudos pianísticos a sério com os professores russos Berkowitz e José Kliass mas, por obra e graça do seu pai e de amigos da família, saltou o Atlântico para estudar em Paris com Margueritte Long e Jean Doyen. Lançado no mundo dos concertos, profundamente imbuído da escola pianística francesa, especializou-se na música da Debussy, de quem tocou a integral da sua música de piano, bem como os ciclos pianísticos completos de J.-Ph. Rameau, M. Mussorgsky, Francisco de Lacerda e parte considerável da obra de Scriabin. Regressado ao seu Brasil, aqui tocou inúmeras vezes e em diversas cidades, vindo a ser contratado como professor na Universidade de S. Paulo, onde chegou a catedrático com teses acadêmicas sobre Claude Debussy e Henrique Oswald. Entre o seus alunos contam-se os pianistas e maestros de renome mundial Luiz de Godoy e Maury Buchala. Da sua capacidade intelectual sobressaem o estudo crítico de várias edições de Henrique Oswald e numerosos livros e artigos em revistas da especialidade no Brasil e no estrangeiro, a que se juntou há 13 anos a criação semanal de um blog sobre música, literatura, impressões de viagens, etc. Visitou diversos países europeus, sobretudo Portugal. Neste país-irmão, onde estabeleceu laços de profundas amizades, durante mais de 60 anos motivou, interpretou e gravou grande música portuguesa.
Tendo chegado a uma idade madura, e depois de ter gravado 24 CDs, José Eduardo Martins apresenta um desenho de retorno ao seu passado. Ele foi dedicatário de aproximadamente 120 obras de 33 compositores, muitas das quais gravou. Com o seu 25º CD, dá por terminada a sua missão de gravar. E tenta mitigar sua decisão de não gravar mais porque “A exigência diante de microfones, se por um lado é absoluta, sob outro aspecto propicia ao executante a possibilidade de estar próximo da perfeição, esse estado de excelência jamais atingido. A gravação na solidão é inimiga do gesto, tantas vezes a serviço do espetáculo. A vontade de servir à música é a antítese do simulacro. Estar só diante dos microfones libera o conteúdo mais autêntico do nosso de profundis”.
José Eduardo Martins baseia assim a sua decisão, deixando uma espécie de testamento da sua capacidade de intérprete que, muito mais que resumo do seu passado, evoca apenas saudade de um tempo irreversível ou, como gosta de afirmar citando Guerra Junqueiro, “insubornável”.
Escolheu para o seu “ultimo CD”, Retour à l’Enfance, peças que funcionam no seu íntimo como marcos maiores do gosto que o tempo moldou no seu espírito. Justifica assim a reunião de um passado mais remoto, nas pequenas peças de Grieg, com o presente prazenteiro dos seus Amigos François Servenière, Eurico Carrapatoso e Maury Buchala. Pelo meio evoca o grande Francisco de Lacerda, que descobriu para o mundo, e o seu amigo e compatriota Gilberto Mendes.
Como sempre, sobretudo nas gravações que fez na Bélgica ao longo de 20 anos na Capela de Saint-Hilarius, o “meu Templo do coração”, José Eduardo Martins apresenta-se meticulosamente sábio e humanamente selectivo na sua música e no reportório que vai interpretar.
Porquê o título de Retour à l’Enfance? Ele explica: “Lembrar-se da infância, numa tentativa de balanço parcial daquele período mágico, é também reencontrar momentos aparentemente inexpressivos, mas que se tornaram decisivos”. E parece não haver dúvida da certeza da suas escolhas.
Abrindo a sua gravação com as Peças Líricas op. 12 de Edvard Grieg (1843-1907), evoca um passo importante do seu passado remoto, quando as recebeu do seu professor Berkowitz como presente de aniversário. Naquelas peças simples, “plenas de poesia e cantos sensíveis”, ele terá ensaiado o fraseado e o legato que lhe ficaram profundamente na alma até ao presente. De facto em Arietta, op 12, nº 1, ele desenha a simplicidade da frase com todo o rubato possível, deixando para Souvenirs, op. 71, nº7 como que a despedida da saudade de um tempo que não volta atrás. Depois, ele começa então um percurso quase biográfico através de cumplicidades e gostos partilhados ao longo dos anos.
Com a música de François Servenière (1961), ele inicia peças que o “tocam” de perto e profundamente. Com este pianista, maestro, compositor, orquestrador e produtor, José Eduardo estabelece um pacto de amizade de há vários anos tendo tocado e gravado peças notáveis como Sept Études Cosmiques e Outono Cósmico no CD Éthers de l’Infini (ESOLEM, 2017). Para o presente CD escolheu, por uma questão de também cumplicidade de gosto na apreciação de Saint-Exupéry, a redução pianística de Promenade sur la Voie Lactée, na qual é evocado o Petit Prince daquele escritor.
Clique para ouvir, de François Servenière, Promenade sur la Voie Lactée na interpretação de J.E.M:
https://www.youtube.com/watch?v=JQDkWn1HcpQ
Também juntou Trois musiques pour endormir les enfants d’un compositeur, peças estas compostas por Servenière e interpretadas por José Eduardo quando este apresentou em Coimbra em recital as Trente six histoires pour amuser les enfants d’un artiste de Francisco de Lacerda (1869-1934). E ainda no mesmo recital estreou também as Six histoires d’enfants pour amuser un artiste do seu amigo Eurico Carapatoso (1962). O intérprete reúne assim neste CD peças que o interessaram e que ele próprio motivou e ajudou a criar, em torno a um amor indisfarçável por crianças e por compositores que beneficiaram do mesmo encantamento desde Lacerda a Servenière e Carrapatoso. Também Maury Buchala (1967) e o próprio Gilberto Mendes (1922-2016) contribuíram a alimentar a matéria “infantil” desta gravação: aquele com a citação do seu título, este com o “infantilismo” da sua sonatina.
Voltando a Servenière, no descritivismo das três Tribulations d’un écureil Lambda, o intérprete consegue vincar a delicadeza da escrita com uma clareza extrema. Já em Promenade sur la Voie Lactée, ele sublinha docemente o melodismo quase improvisativo de uma música modal sobre três níveis harmónicos, com variações astrais.
Depois, temos as Trois musiques pour endormir les enfants d’un compositeur, que JEMartins tinha apresentado em Coimbra: o Nocturne, com insistência nas síncopas, a Aria, canto modal de pura beleza e a Berceuse, delicadamente pura.
Francisco de Lacerda, cujas Trente six histoires… tinham motivado as três peças anteriores, aparece agora no centro de atenção de José Eduardo Martins, que já tinha gravado aquelas, em Papillons, uma peça feita de motivos recorrentes, e em Zara, retrato modal, misteriosamente repetitivo.
Seguem no mesmo ambiente infantilizante as Six histoires d’enfants por amuser un artiste. E aqui, o compositor brinca positivamente com o descritivismo de O raposo, o ambiente de transparência de O fax de papagaio, o cinismo de D. Abutre e o corvo e de Pombo torcaz, a simplicidade de O que faz a minhoca e finalmente com os acentos mordazes e sarcásticos de O crocodilo. Sempre uma execução delicada e convincente.
Gilberto Mendes associa-se à festa infantil criada neste CD, com a sua Sonatina que José Eduardo descobriu: nesta são evidentes os ressaibos mozarteanos, mais concretamente da sua Sonata em Dó maior, embora a simplicidade apareça casada com o pretenso ‘infantilismo’ de Mozart.
Já em Maury Buchala, porventura o mais moderno pianismo deste CD, com uma escrita de sabor puntilista (a lembrar Jorge Peixinho), o intérprete ressalva maravilhosamente a suspensão, a pausa e a interrogação de L’enfant devant l’inattendu.
José Eduardo Martins encerra assim este pretenso adeus à gravação da sua música novamente com o compositor que, para ele e neste momento, desempenha o papel de saudade de um tempo inexorável que já não volta. E fá-lo com uma rara intensidade, levando ao limite a sua sensibilidade e o seu rubato.
Eis em suma a arte inconfundível de José Eduardo Martins. Em traços profundos, a falar para o eterno. Será possível apagar esta fogueira? Não certamente, que o intérprete e o mestre, na sua plena maturidade e na sua sabedoria, está ainda bem vivo. Com os seus admiradores, sugiro-lhe que não veja o seu 25º CD como um pretenso non plus ultra”.
José Maria Pedrosa Cardoso
Oeiras, 18. 10. 2020
Urged by friends and family, I transcribe a review written by the illustrious Portuguese musicologist José Maria Pedrosa Cardoso about my last and final CD, the 25th recorded abroad.