Exemplo de aprofundamento musicológico
Na aclamação de D. João IV, em 1640, diz-se:
Continuou ElRey o caminho à igreja Catedral da Sé,
onde se apeou a dar graças a Deus.
Cantáram os Musicos, Te Deum laudamus,
entre vivas & lagrymas alegres de todo o concurso [...]”
(Menezes 1679: 114 – citação no livro em pauta)
Ao desvelar em suas entranhas “O Grande Te Deum setecentista português” (Biblioteca Nacional de Portugal, Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical, 2019, edição bilingue português-inglês), José Maria Pedrosa Cardoso, professor aposentado da Universidade de Coimbra e nome referencial na musicologia em Portugal, traz contributo doravante basilar ao gênero, tão praticado originalmente nas festividades de fim de ano e que remonta a séculos anteriores ao período tratado pelo estudioso.
Mais significativo se apresenta o denso trabalho de Pedrosa Cardoso se considerarmos o importantíssimo “Dicionário de Música” de Thomás Borba e Fernando Lopes-Graça (Lisboa, Cosmos, 1958), que, no verbete consagrado ao Te Deum, apenas cita Marcos Portugal (1762-1830), entre tantos nomes europeus, e na entrada referente a António Teixeira (1707-1774), que será abordado nesse post, menciona de sua lavra “um Te Deum a 20 vozes cantado na Igreja de São Roque, que parece perdido”.
Clique para ouvir, de António Teixeira, In te Domine speravi, último verso do seu Te Deum, no qual se podem ouvir as vinte vozes em compassos sucessivos numa fuga monotemática, fantástico crescendo:
https://www.youtube.com/watch?v=l2kLfQ2XPOQ
Neste espaço, inúmeras vezes salientei a persistência em temáticas afins. Impressiona o labor de Pedrosa Cardoso, sem quaisquer açodamentos, que só vem à luz após debruçamento ditado pelo ineditismo, dedicação e acuidade. Anteriormente resenhamos “Cerimonial da Capela Real – um manual litúrgico de D. Maria de Portugal – 1538-1577 – Princesa de Parma” (19/04/2008); “O Canto da Paixão nos séculos XVI e XVII – A singularidade portuguesa” (19/04/2008) e “O Passionário Polifônico de Guimarães” (23/11/2013).
Pedrosa Cardoso afirma: “Da experiência nasceu o gosto e o apreço por uma peça sacra na sua origem, nos longínquos anos (finais do século IV) de Santo Ambrósio (ca 340-397) e Santo Agostinho (354-430). Um cântico naturalmente revestido de monodia ao bom estilo de cantochão, não sabemos se milanês, romano antigo ou galicano, assimilando de uma forma livre a menopeia tradicionalmente salmódica”. Sendo um Ofício Divino, o Te Deum atravessou os séculos nas comemorações monumentais, tanto das Cortes como da Igreja. O cântico vem a ser também uma das originárias práticas da música polifônica em Portugal. A designação de Te Deum vem das primeiras palavras do hino litúrgico Te Deum laudamus, Te Dominum confitemur. O certo é que o Te Deum, vocalizado por clérigos em mosteiros, despertaria a atenção dos mantenedores do poder e, com esse estímulo consequente, seria encorpado por conjuntos instrumentais e coros.
Faz-se necessário expor a motivação que levou Pedrosa Cardoso ao desiderato final da investigação musical dos Te Deum setecentistas portugueses: “É assim que se pode ver no Te Deum a afirmação de uma religião que não morreu, ao menos na carapaça da história. De fato, ele pode conter, nos seus 29 versos, os grandes anseios de um Homem e de um Povo, na sua dimensão de triunfo – fanfarras preludiais das composições francesas, utilização do trompete como instrumento da ambiguidade proclamada do poder divino e do poder político, em muitos de seus versos – na sua aceitação do sacrifício de um Cristo que abriu as portas do céus aos que o seguem – caso do dramatismo expresso em certas frases dos Te Deum setecentistas portugueses – na sua dimensão mística – caso da intensa prostração ante o Juiz que há de vir – e na sua dimensão escatológica, levantando alto a esperança contra todos os desesperos deste mundo – caso da invocação final ‘Em Ti, Senhor, confiei, não serei eternamente confundido’ ”.
Clique para ouvir, de João de Sousa Carvalho, Abertura programática a duas orquestras em forma sonata, com introdução lenta, do seu Te Deum de 1792:
https://www.youtube.com/watch?v=V-jm31ydg7w
Pedrosa Cardoso menciona lista fixada por Christian Bährens a dar conta de 228 composições, tanto polifônicas como concertantes ou orquestrais, de Te Deum, dela faltando inúmeros compositores portugueses. Importa saber que, diferentemente de formas instrumentais, como as peças constituintes das suítes barrocas ou a sonata clássica, em que há princípios a serem obedecidos, o Te Deum pode ser encontrado através dos tempos, composto desde número econômico de músicos à construção magnificente com coros e orquestras.
Após discorrer sobre o Te Deum na liturgia e sua difusão no Ocidente, debruça-se Pedrosa Cardoso no cântico em terras lusíadas. Os 29 versos que compõem o Te Deum são pormenorizadamente estudados pelo autor, que os compara na aplicação que lhes é conferida musicalmente por vários autores através dos tempos. A difusão dos Te Deum era realizada de diversas maneiras. Gil Vicente (1465-1536), ao final de alguns de seus autos, faz menção ao Te Deum.
O prestigiado cântico, primitivamente, era para ser cantado no dia de São Silvestre, 31 de Dezembro. Pedrosa Cardoso observa: “A ação de graças a Deus pelos benefícios recebidos no ano transato era celebrada numa função especial no último dia de cada ano civil. Centrada no canto solene do Te Deum laudamus ante o Santíssimo Sacramento exposto, ela motivava dois hinos característicos para a exposição e para a benção do Santíssimo, respectivamente O Salutaris Hostia e Tantum ergo Sacramentum”. Todavia, o cântico do Te Deum passou a estar presente prestigiado nas cortes portuguesas em espetáculos magnificentes e em datas outras. E não foram poucas as criações. Quando do nascimento da Princesa das Beiras, a infanta Maria Teresa de Bragança (1793-1874), seis Te Deum foram executados!
A grande maioria da música composta para os Te Deum em Portugal perdeu-se. É possível que o tempo ressuscite alguns. Mencionei o referencial “Dicionário de Música” de Thomaz Borba e Lopes-Graça, que considerava perdido o Te Deum de António Teixeira, obra monumental do gênero, analisada no livro de Pedrosa Cardoso.
O autor destaca a singularidade do Te Deum setecentista português como sendo “partitura unitária de uma macroforma: o Te Deum propriamente dito aparece emoldurado por uma música envolvente de estilo homogêneo, que o completa e o valoriza como acontecimento celebrativo e estético”. Salienta que, entre 1734 e 1802, pelo menos 11 compositores em Portugal compuseram 13 Grandes Te Deum. Sempre escritos para coros, vozes solistas e uma ou mais orquestras. Verdadeiros espetáculos plenos de majestosidade.
Dois exemplos paradigmáticos receberiam o olhar mais pormenorizado do pesquisador em seu livro maiúsculo: Antônio Teixeira e João de Souza Carvalho (1745-1798). Pedrosa Cardoso louva as qualidades composicionais de António Teixeira e a magnitude de seu Grande Te Deum de 1734, que teve sua estreia na Igreja de São Roque aos 31 de Dezembro de 1734. Saliente-se sua duração, mais de uma hora e meia. Escreve o autor que António Teixeira em seu magno Te Deum “…em paralelo com os versos em cantochão, cantados pelo coro dos clérigos e do povo presentes na igreja de São Roque, construiu longos painéis sonoros que, através de vinte vozes agrupadas em cinco coros e oito solistas vistosamente acompanhados por uma orquestra ao estilo da época, apresentaram, naquele último dia do ano de 1734, uma função de teatralidade religiosa do mais alto nível”. A seguir, Pedrosa Cardoso expõe com a mais precisa competência na matéria uma análise do Grande Te Deum de António Teixeira.
Se designa como protótipo o Grande Te Deum de António Teixeira, o de João de Sousa Carvalho considera como o clímax da forma. Teria escrito ao menos cinco Te Deum, dois breves e três Grandes Te Deum direcionados à majestosidade. Nestes, enriquece substancialmente a paleta orquestral. Pedrosa Cardoso segue o caminho analítico, o que valoriza consideravelmente o acompanhamento da evolução de João de Sousa Carvalho.
Clique para ouvir, de João de Sousa Carvalho, regressado havia pouco de Nápoles, a ária Tibi omnes angeli, do seu Te Deum de 1769, .
https://www.youtube.com/watch?v=_9GSNhEn1Vc
São estudados, em “O Grande Te Deum setecentista português”, outros compositores que legaram Te Deum relevantes para o patrimônio de Portugal: Luciano Xavier dos Santos (1734-1808), David Pérez (1711-1778), Frei José de Santo António (ca 1725-post. 1784), Brás Francisco de Lima (1752-1813), António Leal Moreira (1758-1819), Jerónimo Francisco de Lima (1741-1822), António da Silva Gomes e Oliveira (?-post. 1817), Marcos Portugal (1762-1830), Gisuseppe Totti (17??-1832/33).
O lavor de José Maria Pedrosa Cardoso, ao longo de sua trajetória como um dos mais importantes musicólogos portugueses, encontra em “O Grande Te Deum setecentista português” o ápice. A exegese que tem marcado seus aprofundamentos em manuscritos relevantes, adormecidos nos arquivos das Instituições, é singular. Todas as suas publicações, nesse trabalho de ourivesaria a buscar a interpretação dos textos musicais antigos, são surpreendentes e merecem o maior reconhecimento.
Reiteradas vezes tratei de tema espinhoso, o quase absoluto desconhecimento que se tem no Brasil da Música Erudita criada em Portugal através dos tempos. Insisto que há algo atávico na mente de tantos brasileiros da área musical, reflexo de algo mais profundo – também existente em outras áreas culturais -, que jamais ombreiam os grandes nomes portugueses àqueles compositores da Europa mais ao norte. Agentes culturais e músicos pátrios têm sido responsáveis pelo olvido quase absoluto da composição portuguesa erudita no Brasil. Apesar de ações individuais, acredito improvável, infelizmente, mudança de mentalidades.
Clique para ouvir, de João de Sousa Carvalho, duplo coro Patrem immensae majestatis do seu Te Deum de 1792:
https://www.youtube.com/watch?v=1kDYKOesmJM
This post addresses the book “The Eighteenth Century Portuguese Grand Te Deum” (Biblioteca Nacional de Portugal, Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical, 2019) by José Maria Pedrosa Cardoso, retired teacher of Coimbra University and a reference name in musicologyin Portugal. The work, a Portuguese-English edition, is a learned exegesis of Portuguese 18th century “Te Deum”, the hymns praising God that are part of the Christian liturgy. The back cover sums up the contents of the book nicely:
“Amongst the specificities of Portuguese music of the past is the eighteenth-century Portuguese Grand “Te Deum”, so called for its formal and aesthetic monumentality, expressly composed for the great occasion of thanksgiving on the last day of the year, in the church of St. Roque or in the Royal Chapel of Ajuda. Its overall form consists of four parts: 1. Symphony (ouverture), 2. “O Salutaris hostia”, 3. The “Te Deum” proper, 4. “Tantum ergo”, all of which exist in the 13 large well-preserved scores at the Biblioteca Nacional de Portugal, at the General Library of the University of Coimbra and in the Church of the Loreto, in Lisbon. Their colossal baroque style, for several choirs, soloists and orchestra, of which the prototype, the “Te Deum a vinte vocci” by António Teixeira, exemplifies well the cultural desire and the magnanimous choice of King John V of a liturgy as solemn as the greatest of those of the Vatican. This book provides an introductory discussion of these “Te Deums”, justifying their liturgical origin and the history of their dissemination in Christian Europe and Portugal, and the stylistic peculiarities of all of them, especially that by A. Teixeira (1734) and those by Sousa Carvalho (1769, 1789, 1792)”.