Ruptura e novos caminhos de um pianista


A sociedade deveria fazer o mea culpa,
pois ela tende a enclausurar os artistas,
muitas vezes com a cumplicidade
dos parentes, professores e agentes.
Certos pianistas são instrumentalizados,
impelidos ao palco por razões financeiras,
sendo marionetes alcançando lindas realizações artisticamente,
mas que passam à margem de suas vidas.
Estive à margem de minha vida durante trinta anos de carreira.
Hoje, reconciliei-me com o
métier.
não tenho nenhum amor pelo cerimonial da sala de concerto.

François-René Duchâble
(entrevista a Laurent Deburge, 25/09/2016)

Ao longo dos anos a escrever semanalmente nesta coluna, por diversas vezes comentei minha plena idiossincrasia a várias constantes sacralizadas concernentes à carreira de um intérprete. Segui-las é opção individual basicamente majoritária, romper esse elo sem perder a qualidade é reservado a raríssimos.

Creio haver três categorias de intérpretes frente à carreira consolidada e sequencial: aquele que segue a trajetória obedecendo aos ditames sedimentados pela tradição e que, após ter sido aceito internacionalmente pelos méritos, tem em seu empresário o elo que o liga às grandes temporadas musicais do planeta. Será o agente – geralmente nulo em música, mas expert em marketing – que se ocupará de sua presença na grande mídia, submetendo-o ao repertório repetitivo imposto pelas sociedades de concerto; o executante igualmente meritoso, mas que, a atender a apelos diferenciados, apresenta-se de maneira espetaculosa, sendo aceito com entusiasmo, por vezes idolatria, por um público geralmente mais jovem que busca a “renovação”, palavra que se camufla na aparência da tradição; o intérprete que, também pleno de competência, mas farto de toda a maquinaria que se perpetua, empreende caminho até exótico, abandonando a carreira de um passado de sucessos, prosseguindo exitoso na senda da qualidade. Sem uma denominada carreira, haveria uma quarta categoria: intérpretes relevantes que preferem as apresentações menos internacionalizadas, dedicando-se igualmente ao magistério. Conheci imensos artistas dessa estirpe em vários países, tendo assistido a inúmeras récitas realmente hors série, algumas contendo integrais interpretadas em altíssimo nível.

Minha filha Maria Beatriz enviou-me um vídeo do renomado pianista francês François-René Duchâble (1952-) que, entrevistado em Rennes, na Bretanha (2018), narra as razões que o levaram à ruptura com a denominada carreira tradicional. O vídeo em francês, de pouco mais de 30 minutos, sem tradução, expõe com clareza os porquês do consagrado pianista, a certa altura de sua vida, mudar radicalmente de atitude frente à atividade (2003), ação que o levou à guinada mental e material empreendida desde 1998, resultando na destruição de símbolos que certamente o atormentavam. Esse expurgo fez que estabelecesse outros parâmetros para a vida, sem, contudo, abdicar da qualidade pianística, que deveria subsistir imperiosa. Todavia, o modus faciendi do passado não mais seria resgatado. No vídeo, Duchâble expõe algumas das posições já externadas desde a ruptura em entrevistas publicadas por várias vertentes da mídia. Ao final do post insiro o link que leva à entrevista.

A cisão, após carreira consolidada como um dos grandes intérpretes franceses, faz-me lembrar, sob outra égide, da guinada profunda feita pelo extraordinário pianista igualmente de França, Thierry de Brunhoff (1934-), que, igualmente com carreira consagrada, abandonou os palcos em 1974, ingressando na vida monástica na abadia de São Bento em En-Calcat (Tarn), tornando-se monge desde então.

A ruptura de Duchâble tornou-se um acontecimento. Adquire um piano semidestruído (780 E$) e este é transportado por um helicóptero de conhecidos seus, jogado em um lago e mais tarde recuperado, tornando-se “escultura”. Duchâble afirma: “depositei o piano em ato solene de purificação para abandonar três décadas de mentiras. Esse gesto espetacular foi interpretado como ato de um megalomaníaco desesperado, como se eu estivesse no fim da picada. É falso, pois estava em plena forma, tendo dado 78 concertos entre Janeiro e Julho de 2003. Meu desejo era aceder à luz e sair de uma espécie de atoleiro”. A decisão definitiva, longamente gestada, veio após a gravação dos cinco Concertos para piano de Beethoven. Quanto à casaca, ainda hoje um ícone “indispensável” na indumentária masculina de intérpretes, regentes e membros de orquestra, Duchâble a incendeia. Esses signos exteriores serviriam para a consolidação definitiva da nova trajetória. Afirmaria: “O resultado tem sido magnífico. Acedi à alegria de viver cotidianamente. Reconciliei-me com o piano, a música, o palco e o público. Queria viver minha vida. Levar a música aonde ela não chegava”.

Clique para ouvir, de François-René Duchâble, a cadência composta para o primeiro movimento do 3º concerto para piano e orquestra de Beethoven:

(27) La cadence de François-René Duchâche dans le 1er mouvement du 3ème concerto de Beethoven – YouTube

Nas entrevistas, Duchâble afirma que “fui formatado, pela cultura, pela família, neste meio esclerosado da música. Quis romper não com a música, mas com tudo que a cerca”. Sobre as causas que o levaram à ruptura com o modelo tradicional de carreira internacional, nas várias entrevistas e no vídeo de Rennes, elenca cinco: 1ª “As viagens distantes não importando o destino, pois o fato de sair da França representava para mim um terrível sofrimento físico, mormente quando para a atividade musical”; 2ª, “Os ensaios com orquestra ou com conjunto de câmara. A relação dos regentes com os solistas nem sempre é harmoniosa, sendo aqueles nem sempre dispostos. Sobrevoam as partituras e por vezes ensaiam no dia do concerto de maneira superficial. Esses ensaios nunca foram prazerosos para mim. O ambiente é raramente caloroso, mercê da rotina dos músicos e da disparidade de ganho dos membros da orquestra e de um solista, algo que pode trazer um mal-estar”; 3ª, “as luzes das salas de concerto fixas, brancas e tristes. Acreditamos estar sob interrogatório de polícia. A mania de focalizar o teclado, a técnica e a virtuosidade desviam a atenção da música. Ao invés de olharem as mãos ‘que olhem os meus pés!’, dizia Rubinstein”; 4ª, “minha rejeição ao público puramente musical representado por uma mínima parcela da população. A difusão da música clássica nada tem de democrática, mas continua convencional e tantas vezes fonte de tédio, principalmente pela escolha dos programas destinados aos conhecedores. A longa duração das obras é a principal causa do aborrecimento do público neófito”; 5ª “o ‘semideus’ que julgamos ser na sala de concertos fica reduzido a um pequeno estudante submetido ao julgamento do engenheiro de som que assinala defeitos, como um barulho de pedal, e controla a partitura como um membro de júri. Detesto os estúdios, não mais gravo discos, salvo exceções”. As cinco conclusões, repetidamente mencionadas, permaneceriam como o divisor de águas em sua trajetória.

Decisão tomada, Duchâble confessa que outros interesses que passam ao largo, se em carreira internacional feérica, tornaram-se prioridades e elenca: literatura, poesia, filosofia e a natureza. Doravante consideraria a relação em pleno ar, no meio de um lago, recitais nas montanhas, sob as estrelas, em florestas, assim como daria atenção especial às apresentações em hospitais, escolas, prisões e afirmaria “a comunhão com a natureza, a arquitetura e a música”. Prender-se-ia doravante preferencialmente às formas mais breves, evitando nessas apresentações obras de longa duração. Muitas de suas récitas são feitas sem qualquer cachê, tantas delas revertidas às causas sociais e humanitárias. Outras mais em plena natureza.

Clique para ouvir, na interpretação de François-René Duchâble, o terceiro movimento da Sonata “Ao Luar” de Beethoven:

https://www.youtube.com/watch?v=rRd8doBqeF8

François-René Duchâble volta-se ao passado: “Se detestei por vezes o piano há trinta anos atrás, essa relação melhorou com o passar dos anos e hoje ele é o prolongamento natural de meu corpo. Sou feliz por ser pianista, pois isso corresponde ao meu desejo de ser um ‘arquiteto’ da música. Na música, a arquitetura é a primeira coisa que privilegio. Em seguida temos o rigor dos tempi, o fraseado e, após, a beleza do som”. Esportista, ciclista, Duchâble adaptou a uma bicicleta especial um teclado numérico e, logicamente, alto-falantes. Percorre praças e outros logradouros e tem o prazer de tocar frente a público mutante, que pode também se aglomerar.

Creio ser necessário fazer distinções. François-René Duchâble, pianista com carreira consagrada, rompeu com o modus faciendi relativo ao universo ligado à dualidade intérprete-público, compreendendo suas cinco razões mencionadas acima. A se assistir a vídeos posteriores, não há queda alguma da qualidade interpretativa. Sob outro aspecto, em várias oportunidades associa-se ao consagrado diretor e comediante Alain Carré para apresentações onde poesia e arte cênica estão presentes. Estar frequentemente em escolas, hospitais, prisões ou praças, no caso com sua “bicicleta-piano”, evidencia a necessidade de levar a mensagem musical basicamente inexistente nesses espaços.

Clique para ouvir de Manuel de Falla, Dança ritual do fogo, na interpretação de François-René Duchâble com a participação de Alain Carré:

https://www.youtube.com/watch?v=GIWMjL8UJ-c

Lembro ao leitor que François-René Duchâble tem repertório imenso, mormente voltado ao longo período romântico, mas a cultuar igualmente, de maneira menos intensa, J.S.Bach. Mozart, Debussy, Scriabine, Ravel e Rachmaninov. François Servenière, presente em inúmeros blogs como comentarista eclético, teve excertos de sua coletânea Rhythimiques & Repetitives (dois pianos) interpretados e gravados para CD pelo duo Helène Berger e François-René Duchâble. De Servenière gravei várias criações, lançadas em CDs pelo selo Esolem (França), sendo que algumas obras, como os Études Cosmiques e Promenade sur la Voie Lactée, estão no Youtube.

Clique para ter acesso à entrevista de François-René Duchâble mencionada acima:

https://www.youtube.com/watch?v=PX0oi6JGgpA

Clique para ouvir, na interpretação de François-René Duchâble, os Estudos opus 10 e opus 25 de Chopin:

https://www.youtube.com/watch?v=Pqc5E6y7Zoc

This post addresses François-René Duchâble (1952 -), the French pianist with a successful concert and recording career who in 2003 ended his “conventional” career in protest at what he saw as the elitism of the classical music system and a life of endless travels, rehearsals, recording sessions, all of which he felt ruined his existence. He has buried his professional past symbolically in a very curious way, dropping his grand piano into a lake and burning his tuxedo. Feeling reborn, he now tours around France performing casual concerts for small audiences in schools, hospitals, prisons and in the open air, often pedaling with a keyboard specially adapted for a tricycle.