Narrativa do compositor e tributos a ele prestados

Gosto de gostar de tudo,
de viver a música em toda a sua plenitude de significados.
Me proibir, por razões ideológicas de grupo,
de gostar de uma coisa de que na verdade eu gosto, jamais!
Gilberto Mendes

Gilberto Mendes (1922-2016) foi um de nossos mais importantes compositores. Absolutamente aberto às tendências, percorreu-as conscientemente, mas sempre a deixar em suas composições as impressões digitais, marcas inalienáveis que evidenciam o talento autêntico e a seriedade de propósitos. Estivemos ligados por laços indestrutíveis de amizade desde os tempos de meu ingresso na Universidade de São Paulo em 1982 até sua morte em 2016. Nas fronteiras dos setenta anos, que indicariam sua aposentadoria, insisti para que escrevesse uma espécie de autobiografia musical, a resultar numa extraordinária defesa de tese de doutorado na qual tive o prazer de estar presente como membro da banca examinadora. O texto, com alguns ajustes, foi publicado e teve excelente guarida (“Uma Odisséia Musical – Dos mares do sul à elegância pop/art déco”. São Paulo,  Edusp, 1992). Vieram ao longo outros livros, nos quais Gilberto Mendes narrava suas aventuras musicais, opções estéticas, amizades conquistadas pelo mundo e Santos, sempre Santos, a sua cidade mágica.

Tardiamente penetraria nas narrativas idealizadas, pois seu espírito criador voltava-se aos personagens abstratos que povoavam sua mente, mas não desprovidos de nebulosas identidades. Seu livro “Danielle em surdina – Langsam” foi promissor impulso aos 91 anos (vide blog: “Danielle em surdina, Langsam”, 06/04/2013). Pouco antes do desenlace escreveu “Os dois amigos entraram finalmente na Rua Borges”, publicado postumamente com a elucidativa apresentação de Ademir Demarchi (Santos, Realejo, 2019).

Os curtíssimos episódios dessa última publicação revelam compartimentos essenciais da personalidade de Gilberto Mendes, a realidade e a ficção. Mesclá-las, eis o objetivo alcançado. Gilberto está presente nessa autoficção sem se nomear; capta período preocupante para um grupo de militantes do Partido Comunista e Ramiro seria seu pseudônimo. À maneira de um Dostoievsky, autor que ele tanto admirava, Gilberto observa. Esteve na militância durante cerca de 20 anos e, com o advento da “Revolução” de 1964, jogou todo o material que possuía no mar de sua Santos, seu porto seguro.

Acompanhar essas brevidades é compreender que as reuniões para discussão de temas afins ao Partidão tinham igualmente outras finalidades, pretexto para conquistas amorosas regadas, por vezes, por generoso vinho. Várias classes reunidas, aqueles pertencentes à burguesia em seus matizes, os decantados “intelectuais”, assim como os portuários seguidores das cartilhas que vinham do leste europeu. Nessas reuniões havia sempre o receio de serem flagrados, mercê da ilegalidade, mas as discussões corriam soltas sobre temas concernentes à estrutura daquele núcleo, às doutrinações marxistas, aos debates sobre arte e literatura. A certa altura os temas voltaram-se igualmente à encenação de peça teatral e vários participantes encontravam nos ensaios momentos de autovalorização.

Para os que tiveram o privilégio de conviver com Gilberto sur le tard a narrativa tem uma cativante apreensão dessa participação do autor, quase sempre como um observador irônico, por vezes com fino humor, traços inalienáveis de Gilberto. Sendo “Os dois amigos entraram finalmente na Rua Borges” uma visitação às décadas longínquas vividas sob o ímpeto de uma juventude na idade madura, inserir um caso amoroso, “paixão arrebatadora”, entre o principal articulador, Rodrigo, e uma bela e misteriosa frequentadora, traria à pena de Gilberto um frescor narrativo nos seus mais de 90 anos. Não estaria o compositor a se divertir ao recordar e também dando asas à fértil imaginação?

Clique para ouvir, de Gilberto Mendes, Sonatina à la Mozart (1951), na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=ZO0-u5kU5c4

Na nonagésima década, a ironia gilbertiana estaria implícita nesse tratamento em que, ao não penetrar no âmago da doutrinação partidária, menos voltado aos fundamentos do núcleo do Partidão que deveriam ser a essência das reuniões, confere aos vários participantes da trama interesses tão alheios, com exceções. Meio século após, apesar de sempre ser simpático às teses da esquerda, assim como foi aberto a tantas tendências composicionais, Gilberto não tinha o menor pendor para o fanatismo ideológico e nos deixou uma grande lição nesse sentido. “Os dois amigos entraram finalmente na Rua Borges” é um exemplo.

Flávio Viegas Amoreira é escritor, poeta e jornalista. Em sua profícua atividade teve a grata ideia de homenagear Gilberto Mendes com um “esboço”, como ele bem afirma, de uma biografia almejada para 2022, ano do centenário do compositor. Literato, buscou concentrar nas páginas de “Gilberto Mendes – notas biográficas” (Santos, Imaginário Coletivo, 2021) as relações intensas do músico com poetas e escritores, contemporâneos ou não. Seis “prefaciantes”, em breves e precisas palavras, testemunham a admiração pelo homenageado, apreendendo facetas características do imenso Gilberto Mendes: Charles A. Perrone, “Concertos novo-musicais!”; Luiz Zanin Orichi, “O espírito livre de Gilberto Mendes”; Carlos Conde, “Um perfil (também) humano”; Edson Amâncio, “Gilberto Mendes”; João Carlos Rocha, “Carta a Gilberto”; Madô Martins, “Cabelos Brancos”. Essas expressivas apresentações dimensionam a proposta de Flávio Viegas Amoreira e enriquecem suas “notas biográficas”. É um outro olhar sobre o compositor, a evidenciar seu direcionamento voltado igualmente à literatura, à poesia em especial e ao cinema. Gilberto me confessaria que suas idas semanais para assistir aos filmes que escolhia levavam-no ao encantamento desde o instante em que, sentado ao lado de sua esposa Eliane, “que se tornou uma segunda mãe”, segundo Gilberto, as luzes se apagavam paulatinamente e os toques sonoros criavam o clima necessário.

As “notas biográficas” de Flávio Viegas Amoreira têm significado amplo. Fixa período fulcral na formação de Gilberto Mendes: “Aquele período, entre 35 e 40, foi ápice da década ideológica e concomitante ao período de formação estética de Mendes: geração inoculada com brilho de Hollywood mesclado ao cinema alemão, ainda não contaminado pelo nazismo, o advento do mercado editorial brasileiro com traduções de Freud, Mann, Brecht, o conhecimento dado aos trópicos de Fernando Pessoa, Marcel Proust, todos experimentos tributários de James Joyce, os romances de gozo e fruição de Somerset Maugham, Charles Morgan e a prosa conceitual de Chesterton e Audous Huxley, sem falar no onipresente Joseph Conrad”.

Entendê-lo nesse labirinto literário-poético, onde há o olhar atento de um cinéfilo absoluto, é missão complexa, assim como o foi no caso de Claude Debussy, que apreendeu um universo de tantas tendências antes de pender para o simbolismo sem o qual, apesar de certamente não explicar Debussy, não se pode compreender a formação de sua linguagem. Quantos não foram os poetas por ele visitados em suas sublimes Mélodies? Gilberto percorre esse caminho a abraçar tendências outras ao concretismo por ele tão fequentado. Amoreira comenta: “Sempre senti tão gêmeos o trabalho do poeta com o do compositor: extraímos do nada, absolutamente nada mais do que qualquer outro artista, pura entrega de alma para almas laçadas por uma perícia inconsútil e invisível. No começo o compositor nasceu poeta mesmo sem o poema escrito”. No caso das Proses Lyriques (1892-1893) de Debussy, o compositor seria o autor dos poemas. Louis Laloy, primeiro biógrafo de Debussy, escreveria em 1909 que “as mais aproveitáveis lições não lhe vieram da parte dos músicos, mas de poetas e pintores”. Se Flávio Viegas Amoreira assinala até o “autodidatismo” de Gilberto Mendes, a visão aberta ao mundo, fruto em parte dessa visão marítima de sua Santos tão amada a partir do fluxo de navios com todas as bandeiras, a diversidade da escolha dos poetas de correntes tão diversas atenderia à essência essencial do compositor, voltada ao universal.

Na substanciosa narrativa de Amoreira, após mencionar frase de Gilberto “Toda a arte é boa, está acima de critérios de qualidade”, lembrar-se-ia de frase de Schoenberg, transmitida ao seu amigo Robert Gerhard após ouvir o concerto para piano e orquestra de Grieg “Esta é a espécie de música que eu realmente gostaria de escrever”. Flávio Viegas Amoreira completa: “A música de Grieg, certamente um compositor menor, para os ‘classificadores’ implacáveis”. Essa arguta observação me faz recordar de um episódio que se deu em minha sala de aula na USP. Estava a tocar o 4ª Noturno de Gabriel Fauré quando Gilberto adentra, ouve até o final e me diz serenamente: “Daria toda minha obra em troca desse Noturno”. Lição de humildade vinda de um imenso músico! Em conversa recente com Eliane Mendes, disse-me ela que mais de uma vez Gilberto mencionou esse episódio.

Clique para ouvir, de Gabriel Fauré, o 4ème Nocturne de Gabriel Fauré, na interpretação de J.E.M.:

https://embedy.cc/movies/UmMrbjZ3RFBhb24xb2VTa3NQOS8zaHpVWHFnSDErMkhEZERKZGUxODNxOD0=

Amoreira desfila em sua narrativa, nas passagens pertinentes, incontável lista de escritores, poetas, compositores, artistas plásticos e de teatro, amizades outras que trazem à luz o universo de Gilberto. Impressiona a abrangência de um músico interessado em todas as manifestações culturais e “políticas”, mantendo-se sempre solícito com todos que o procuravam. Observa: “Admirei de longe, desde sempre, Gilberto Mendes como uma celebridade artística nacional, pelas ruas de Santos em minha juventude, frequentando cinemas de mãos dadas com Eliane, caminhando pela praia… Sabia ser ele na música algo que eu gostaria de seguir na literatura: alguém entregue todo tempo ao seu ofício sagrado de criador”. Gilberto Mendes adaptou vários poemas do autor de “notas biográficas” para seu sinfônico “Alegres Trópicos, Um Baile na Mata Atlântica”.

Nesse contato permanente na cidade amada pelo músico e o poeta, uma frase de Flávio Viegas Amoreira evidencia algo não raro entre os tantos compositores sur le tard: “Mas também pude testemunhar seu desencanto com desvios da esquerda brasileira, sua preocupação ecológica crescente com destinos da Amazônia e o chorar com desastres como o de Mariana. Tinha perdido muitas  ilusões, mas ainda resistia por uma utopia muito particular de criação e motivação dos jovens”.

O centenário de Gilberto Mendes se aproxima. Certamente haverá uma série de tributos a ele prestados. Urge realizá-los.

In two recent publications, Gilberto Mendes is revealed in significant aspects of his life and work. In a short novel, Gilberto writes an autofiction depicting a tumultuous period in the 1960s, a narrative not devoid of humor. In a second book, writer, poet and journalist Flávio Viegas Amoreira provides biographical notes of great interest. As a friend of Mendes, he penetrates his poetic/literary universe, apprehending the composer’s choices. Next year we will celebrate Gilberto Mendes’ birth centennial.