Reflexões após questionamentos

La musique c’est le langage du coeur
Jean-Philippe Rameau (1683-1764)

Recebi instigante mensagem de um ex-aluno, João Afonso, hoje em atividade no Exterior, questionando-me sobre as múltiplas tendências da composição musical que, em um acelerar contínuo, avançam desde as primeiras décadas do século XX. “Qual a razão da multiplicidade de tendências ter público tão pequeno e não entusiasmar aquele habituado ao convencional? Os que vão às apresentações de música dodecafônica, eletroacústica ou experimental constituem público bem inferior àquele que continua a ouvir as grandes composições do passado e parece ter certa repulsa aos concertos habituais. O que se passa? Será que essas tendências mais recentes serão aceitas com o tempo? Os pianistas do passado tocavam obras do seu tempo?”

É muito difícil responder ab abrupto. Qualquer resposta incorrerá em controvérsia, pois o tema não implica unicamente a música, mas a arte como um todo, nessa vertiginosa caminhada do homem frente não apenas à tecnologia galopante, mas às transformações dos costumes em geral. Ao longo de catorze anos de meus posts hebdomadários ininterruptos, em vários deles abordei essas questões sob diversos prismas e há correntes distintas em termos de público: aquele entusiasta ou “provocativo”, em número restrito voltado à música contemporânea; o outro, com contingente bem maior, que ouve em salas de concerto as composições criadas a partir do século XVIII às primeiras décadas do século XX, mormente as obras do denominado período romântico. Esse público tradicional é afeito ao repertório que conhece. Frequentará as salas, mas preferirá largamente ouvir as Sinfonias nºs 5, 6, 7 e 9 de Beethoven do que outras do autor. Um saudoso amigo, médico competente, generoso e pianista amador, Dr. Ruy Yamanischi, disse-me certa vez, quando o convidei para recital em que apresentaria obras em primeira audição, que preferia ouvir N vezes a 5ª Sinfonia ou a 1ª Balada de Chopin a ouvir, desses compositores referenciais, obras bem menos tocadas ou, então,  criações contemporâneas. A fala desse querido amigo, cuja bondade se refletia através de atos – jamais cobrou um centavo de alguns colegas músicos que a ele apresentei –, traduz o pensamento da esmagadora maioria desse público de concertos.

Quanto ao público, é nítido que as composições hodiernas compostas nessas multidirecionadas propostas, mormente a partir da segunda metade do século XX, poderiam ser uma das causas do afastamento dos frequentadores habituais dos concertos, pois a prolixidade e a diversidade os impedem de reter o que ouviram. Para a imensa maioria do público, essa ininteligibilidade é uma das variantes para o distanciamento.

O insigne regente e musicólogo suíço Ernest Ansermet (1883-1969), em texto de 1967, “Les réalités de la vie musicale”, inserido em “Écrits sur la musique” (Neuchatel, à la Baconnière, 1971), escrevia, a contrariar tendências que surgiam: “O argumento fundamental dos músicos de vanguarda e daqueles que os apoiam e daqueles que toleram sua música é este: é necessário mudar, é preciso caminhar com o tempo – ou seja, o argumento mais pueril, o mais superficial e o mais preguiçoso que se possa evocar a propósito da arte, pois o essencial é que a música continue como música, com os atributos humanos da música”. Ansermet não descarta seus coetâneos, realizando primeiras audições de tantos deles ou mesmo apresentando obras outras desses autores, como Stravinsky, Bartók, Honegger, de Falla, Debussy e Ravel. Frise-se que Ansermet nutria uma idiossincrasia por Arnold Schönberg (1874-1971), criador do dodecafonismo. Nessa mesma orientação, o compositor Serge Nigg (1924-2008), introdutor do dodecafonismo em França  (1946), tendo se distanciado da série dodecafônica (sistema a permitir os doze sons da escala cromática, impedindo contudo a repetição de qualquer dos doze sons que a compõem) e dos epígonos que adotaram o serialismo, afirmaria tardiamente: “Nenhum compositor poderá afirmar que sua música sobreviverá; mas, um método seguro para escapar da posteridade é seguir os ukases da moda”. Em entrevista sob outra perspectiva, comenta: “Fui sempre totalmente alérgico à música eletroacústica. Por temperamento, eu não a suporto: esse material é algo que me é perfeitamente estranho. Para mim, os sons eletroacústicos são sons mortos, enquanto que nada me parece mais belo que o som do violoncelo, de um oboé ou de um violino. Por quê? Pelo fato de serem sons fabricados pelo homem, produzidos por sua ação, e que ele pode modificar à vontade”. Em post bem anterior, escrevi resenha sobre suas entrevistas publicadas na série “Témoignages” pela Université Paris-Sorbonne (vide Serge Nigg, 04, 03, 2011).

Mencionaria o notável compositor português, saudoso amigo Jorge Peixinho (1940-1995), que me dedicou o magnífico Étude V – Die Reihe Courante (1992), em que desmembra a série (12 notas). O querido amigo Elson Otake, responsável nesses últimos anos pela introdução de minhas gravações junto ao Youtube, preparou a montagem do Etude V Die-Reihe Courante nessa sexta-feira, 30 de Julho.

Clique para ouvir, de Jorge Peixinho, Etude V Die-Reihe Courante, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=Uc1PTtYbnoA

Quanto aos pianistas do passado frente ao repertório de seus coetâneos, diria primeiramente que a linguagem dos compositores do período ainda atingia aquilo que Rameau evidenciava como destinada ao coração. Ricardo Viñez (1875-1943) apresentava obras de Claude Debussy, Maurice Ravel, Isaac Albéniz, Enrique Granados; Blanche Selva (1884-1942) interpretou em primeira audição os quatro cadernos de Iberia, de Albéniz; Vladimir Horowitz (1903-1989), a Sonata op. 26 de Samuel Barber; Tatiana Nicolaieva (1924-1993), quase toda a criação de Dmitri Shostakovitch e tantos outros exemplos poderiam ser elencados.

Teríamos ainda um outro problema. Constata-se que as novas gerações de pianistas estariam mais atentas às suas carreiras, que tantas vezes são impulsionadas pelos concursos internacionais, regidos pelos repertórios da tradição. Consolidados, efetiva ou provisoriamente a essas criações dedicar-se-ão durante a existência, fato comentado pelo ilustre compositor e teórico musical argentino Juan Carlos Paz (1897-1972). Ao mencionar uma conterrânea, vencedora do Concurso Chopin de 1965, escreveria sem nomeá-la: “Magnífico, lástima que artisticamente inútil. Para que serve, efetivamente, outro fenômeno pianístico a juntar-se aos já existentes, produtos da nefasta disciplina geradora de virtuoses que, durante trinta anos ou mais, passearão seu repertório chopiniano, lisztiano, beethoviniano diante de estagnados, estáticos e estúpidos auditórios que desejam ouvir a cada dia as mesmas obras e para os quais só interessa o espetáculo desportivo com que os brinda o virtuose favorito?” Após outras considerações, finaliza: “Resultado positivo: negócio para empresários. Nada mais”. (Juan Carlos Paz, “Alturas, tensiones, ataques, intensidades” – Memorias I. Buenos Aires, De La Flor, 1972).

Para este pianista nos seus 83 anos, que ao longo da existência frequentou repertório do barroco à contemporaneidade, tendo realizado a estreia de cerca de 170 músicas, 80 delas escritas para projeto de Estudos por compositores relevantes de diversos países e que teve a exata duração de 30 anos (1985-2015), a diversidade de tendências se fez presente. Só não propus aos compositores Estudos com a intervenção eletrônica ou com o piano preparado, bem antes de conhecer as palavras de Serge Nigg. Nesse quesito fica-me a lembrança de recital que dei na University of Wales em Cardiff, capital do País de Gales (1996), quando três pianos de marcas diferentes estavam à minha disposição. Disse à Diretora da Universidade que preferia uma marca em especial, recebendo resposta a dizer que o mesmo teria de ser reparado, pois um pianista convidado tocara na noite anterior repertório com obras para as quais o piano teve de ser preparado, pois teve entre as cordas grampos, abafadores, bolas de gude, etc, etc… Comprovei que cordas estavam rompidas e martelos quebrados! Sob outra égide, repito comentário depositado em um post bem no início de meus blogs. Na Inglaterra, onde estive para palestra em Colóquio sobre Claude Debussy (1993) na Universidade de Londres, um participante inglês relativamente jovem entregou-me um Estudo para piano, sabedor de meu projeto. Numa leitura superficial observei que a peça era impossível de ser executada, pois por vezes exibia seis ou sete vozes num grande emaranhado de passagens com ritmos diferentes. Incrédulo, perguntei-lhe se alguma vez compusera uma fuga. Respondeu-me imediatamente: “Não, pois se trata de uma forma ultrapassada”!

Sob outra égide, foram quatro CDs que gravei no Exterior com obras contendo Estudos contemporâneos de compositores da Bélgica, Brasil, Portugal, França e Bulgária.

Prosseguindo em minha resposta a João Afonso, diria que, apesar de ter frequentado inúmeras obras pertencentes às mais variadas tendências composicionais dessas últimas décadas, excluindo-se aquelas que, destinadas ao projeto, tivessem as características mencionadas acima, pergunto-me quantas, dentre o extenso multidirecionamento de tendências pelo mundo, teriam o embasamento a partir das lições adquiridas através dos séculos.

Distantes da ideologia, mencionaria, como exemplos, três ilustres compositores brasileiros com posição aberta nesse controverso tema das tendências. Ricardo Tacuchian (1939- ) entendia em texto basilar que há várias tendências e não as obstaculiza, mas sim as nomeia. Criou o Sistema-T de organização de alturas, sistema de composição que não se esquece da herança acumulada através dos séculos. Gilberto Mendes (1922-2016), também com mente aberta, mas com perfil diferenciado, propôs tantas e tantas vezes em suas composições caminhos vários, por vezes entremeados de fino humor e de teatralidade, entendendo, contudo, sempre um norte a orientá-lo. Ambos, assim como Paulo Costa Lima (1954- ) que, numa linguagem segura, não despreza o contexto musical de raiz do imenso Estado da Bahia. Os três, abertos aos caminhos que se apresentam, mas distantes de certos experimentalismos bem complexos que descartam legados essenciais da música. O que provoca desconfiança quanto às intenções de certas tendências musicais surge quando preferencialmente partem para a ruptura sem sequer olhar para o passado, negligenciando toda a herança advinda de conquistas através dos tempos, como monodia, polifonia, harmonia, a consequente tonalidade e a permanência desta durante o período mais criativo da história da música, entre os séculos XVIII, XIX e as primeiras décadas do século XX. Experimentalismos são perceptíveis em centros dos Estados Unidos, Europa, Japão, Brasil e outros mais. O erro estaria não quando o embasamento se dá, mas quando a “criação” surge sem fundamentos plausíveis. Não poderíamos mencionar uma ou mais tendências. São tantas que impedem o público habitual de ao menos fixar em mente seus resultados.

A inclusão de três Estudos para piano escritos por mestres respeitados, Jorge Peixinho, Paulo Costa Lima e Ricardo Tacuchian, justifica-se, além disso, pelo fato de que escrevem, no caso específico do piano, muito bem para o instrumento e, quando a virtuosidade se dá, ela é pianisticamente de grande interesse, tantas vezes com propostas inusitadas. Diria o mesmo dos 7 Études Cosmiques, do compositor francês François Servenière, igualmente no Youtube.

Clique para ouvir, de Paulo Costa Lima, Estudo Imikayá, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=Fw2qYBd-kyE

Clique para ouvir, de Ricardo Tacuchian, Estudo Avenida Paulista, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=a4rt8r-QsDg

Às argutas questões levantadas por João Afonso diria que muitas dessas tendências experimentais correm o risco de se concentrar em guetos, se já não lá estão. Há ainda um longo caminho para entendimentos. Oxalá isso ocorra.

O entusiasmo pelos extremos históricos apenas me leva à certeza de que a criação musical, edificada com a razão e o coração, ditada pelo talento do compositor, foi e continua a ser, desde que a arbitrariedade não impere, um dos bálsamos para a humanidade.

Clique para ouvir, de Carlos Seixas (1704-1742), a Sonata nº 34 em Mi Maior, na interpretação de J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=QXoSKycVA5k

Findava o post quando recebo de minha dileta amiga Maria Celestina Leão Gomes, ex-presidente da Associação Lopes-Graça, a notícia do falecimento da ilustre pianista portuguesa Olga Prats (1938-30/07/2021). Esteve próxima do grande compositor Fernando Lopes-Graça (1906-1994), divulgando muitas de suas criações, interpretando inúmeras em primeira audição e gravando obras referenciais. Lopes-Graça dedicou-lhe a extraordinária Sonata nº 5. No âmbito da música contemporânea apresentaria, entre outras composições, criações de Victorino d’Almeida e Constança Capdeville. Como sócio honorário da Associação Lopes-Graça junto-me a todos os que admiram a arte de Olga Prats.

A former student, who has been living abroad for a long time, e-mailed me asking several questions about the way the general public views modern compositional trends. Having practiced during many decades the repertoire from Baroque to contemporaneity, I try to answer his questions in this post.