O compositor Ricardo Tacuchian e a maturidade plena
O contingenciamento de recursos para a música clássica
é um crime que se perpetua contra as futuras gerações,
contra as camadas mais humildes da população
e contra o nosso status de país civilizado.
O congelamento ou corte de verbas para a cultura em geral
e para a música clássica em particular
já está nos cobrando um custo social alarmante.
Isto sim, é preconceito, é elitismo, é discriminação
às camadas menos favorecidas da sociedade.
Agora, mais do que nunca, precisamos da Música Clássica.
Ricardo Tacuchian
(aula inaugural)
Proferir uma aula inaugural em curso de pós-graduação exige competência do professor convidado, precedido pelo acúmulo de conhecimento. Essa assertiva estabelece de imediato a integração entre o Mestre e os ingressantes aos cursos de pós-graduação. Prefiro a palavra Mestre a qualquer outra da carreira universitária, pois, apesar de indicar o início da jornada na pós-graduação, através da história Mestre sempre designou a excelência máxima. Minimizaram-na.
Ricardo Tacuchian é um dos nossos mais importantes compositores e um dos mais lúcidos pensadores. Sua obra tem sido interpretada no Brasil e em vários países do mundo, sempre a ter recepção condigna. Extensa, sua produção abrange inúmeros gêneros. Para aquelas destinadas a conjuntos orquestrais, Tacuchian se mostra um regente competente. No magistério, Ricardo Tacuchian formou inúmeros músicos, que hoje atuam com dignidade em tantos rincões.
Convidado pela Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR), ministrou a Aula Inaugural do Programa de Pós-Graduação em Música da Instituição de Ensino e, entre os vários temas de grande interesse abordados, a problemática da Música na atualidade é tratada. Antes de abordar algumas reflexões de Tacuchian, diria que a transmissão através de sua larga experiência revelou a independência do pensar e o olhar a atualidade musical com singular acuidade.
Com preocupação, Tacuchian observa o desmilinguir das instituições e, apoiando-se na teoria do sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017), corrobora o posicionamento de uma modernidade líquida, a contrastar com a modernidade sólida do passado. Essa assertiva pode ser constatada mormente nas áreas da cultura em geral e da sociologia.
Tema que debatemos inúmeras vezes neste espaço refere-se à apreensão que o ouvinte tem de determinada obra. Tacuchian observa com agudeza: “Não existe nada mais fluido do que a música. Ela desaparece quando termina a performance. Se, numa primeira audição, deixa-nos uma forte impressão, esta pode diminuir com o passar do tempo. O tempo, por sua vez, é outro conceito fluido que sempre desafiou os filósofos e cientistas. Às vezes, a impressão causada por uma primeira audição musical se intensifica com o tempo; outras vezes, esta primeira se reduz ou até desaparece”. Lembraria o pensamento do ilustre regente Ernest Ansermet (1883-1969) ao considerar que, para uma obra se manter na memória do ouvinte, haveria a necessidade de parâmetros como melodia, ritmo e outras referências que o induzem a reter o que ouviu. Verifica-se, sob outra égide e em quantidade incalculável, que a maioria das apresentações de criações contemporâneas se restringe apenas a uma primeira audição. O compositor francês Serge Nigg (1924-2008) não afirmaria que sentia frio na espinha ao verificar que, num Festival de Música Contemporânea, haveria 80 primeiras audições mundiais?
Tacuchian tem clareza ao considerar a importância da Pós-Graduação em termos de orientação na trajetória de um postulante à dissertação ou tese. De sua posição “Na verdade, depois que terminamos uma graduação, entramos na fase de pós-graduação para o resto da vida”, diria que nos deparamos com duas categorias de pós-graduandos. Há aquele que desenvolverá seu trabalho acadêmico a focalizar um tema que jamais será abandonado em sua trajetória de vida. Continuará o aprofundamento, enriquecendo seu acervo cultural sobre a temática. Isso não exclui um olhar para outros temas que surgirão pela frente e que caminharão paralelamente a um ou mais focos de atenção. O que é deplorável é a verificação, tão comum, de pós-graduandos que escolhem um tema qualquer a objetivar apenas a ascensão na carreira. Em blog bem anterior (vide “O Drama da Pós-Graduação”, 21/06/2007) comento o caso de um ex-aluno que encontrei tempos após sua conclusão de mestrado. Perguntei-lhe como estava a desenvolver a temática depois da conclusão do mestrado, recebendo a resposta que “jamais voltaria àquela temática que me cansara tanto” e que estava tentando uma bolsa para o doutorado! Esses “pós-graduandos” existem, não são poucos e, infelizmente, as universidades estão abarrotadas em seus almoxarifados de dissertações e teses que jamais serão consultadas. Tacuchian aponta os percalços para que objetivos sejam atingidos: “E nesta jornada enfrentaremos uma série de desafios conceituais e de pesquisa, alguns contratempos e muitos imprevistos e surpresas. Nos cursos de pós-graduação propriamente ditos uma visão holística dos focos de estudo deve ser uma preocupação do investigador”. Concordo plenamente com Tacuchian a abraçar esse termo utilizado em Portugal à palavra pesquisa, hoje vulgarizada para quaisquer outros trabalhos acadêmicos.
A partir de uma observação fulcral de Tacuchian — “Em geral, um curso de mestrado visaria mais à organização do conhecimento, enquanto o doutorado seria a criação de conhecimento. Entretanto, os limites entre estas duas áreas às vezes se superpõem” —, consideraria uma poética visão de meu saudoso amigo Guido Soares, professor titular de Direito Internacional da Faculdade de Direito da USP. Dizia ele que no mestrado entramos numa floresta e observamos plantas e árvores, no doutorado entramos novamente e focalizamos uma árvore em especial, dissecando-a e, na livre-docência, sobrevoamos a floresta já com o conhecimento possível do todo.
Após mencionar Mario Vargas Llosa em obra capital, La civilización del espectáculo, ao escrever que “o conceito de cultura se estendeu tanto que passou a abranger tudo. E, se a cultura é tudo, também já não é mais nada”, Tacuchian comenta, a questionar: “a palavra Cultura foi sequestrada para a expressão Cultura de Massa ou Indústria Cultural, que funciona com o conceito de produção em série. Mas a obra de arte não seria, antes, a peça única e nunca uma fordiana produção em série?” Entende obsoletos os vários e calorosos debates em torno da criação musical nos meados do século XX, mercê do “sectarismo estético e da arrogância da ‘certeza’, pois todos eles ficaram superados em nossa era da incerteza”.
Da experiência com o experimentalismo, desde os ensinamentos que captou de Hans Joachim Koellreutter (1915-2005), Tacuchian compreenderia com o tempo que a instantaneidade não era seu caminho: Tece reflexões sobre o experimentalismo: “Uma de suas principais teses é que o principal critério de valor da obra de arte seria o uso do signo novo. O artista deveria dar as costas para toda a tradição e partir para a aventura do desconhecido. O grande mestre não considerou uma questão capital, que foi apontada pelos semiólogos da época: uma das características do signo novo é o seu envelhecimento precoce. Assim, uma música experimental em sua primeira audição se tornava velha logo em seguida, e saía do repertório. Ia do espanto para o esquecimento ou do impacto para o déjà-vu. Havia compositores que afirmavam que a música era como se fosse um pão do espírito e deveria ser consumida, sem deixar vestígio para a posteridade: ‘O pão nosso de cada dia’ que desapareceria depois de devorado”.
Desesperançoso com o experimentalismo que, pelo sectarismo que distanciava o compositor do público, aquele a não se importar com a recepção deste, Tacuchian considera que “O criador não se submeteria às exigências meramente mercadológicas, mas representaria os anseios de uma determinada parcela do público. Esta parcela seria aquela que tivesse os mesmos anseios estéticos de cada criador. Assim, o compositor escreveria música para um público que ele escolheu e não vice-versa. Assim, ficaria preservada a independência estética do artista e a sua comunicabilidade com o ‘seu’ público”. Há não muito tempo li entrevista de um compositor eletroacústico a dizer que sabia bem que escrevia para um público determinado, pequeno, um gueto.
A partir do início do século, Tacuchian confessa que “não precisaria seguir uma determinada corrente estética” e afirma seu desiderato na busca da “criação de uma música simbólica e mais humana, isto é, ligada aos anseios psicológicos e sociais do homem moderno; e, last but not least, a ênfase no idiomatismo instrumental com exploração de todos os recursos naturais do instrumento e/ou da voz e suas possíveis extensões”.
A seguir, Tacuchian aborda métodos de trabalho a fim do aprofundamento e suas palavras refletem a experiência de décadas de uma constante prática na criação e na didática. Considere-se a constância, o não abandono de metas propostas: “Se um especialista para de investigar por um longo período, quando voltar à prática da criação ou organização de novos saberes vai perceber que sua mão está pesada e que as ideias não fluem com a mesma naturalidade de antes”. Essa assertiva ocorre em todas as práticas, sejam elas voltadas às artes, aos esportes, à vida. Estou a me lembrar de meu saudoso pai, que insistia na repetição de termos chaves: método, disciplina, perseverança, concentração.
Tacuchian faz crítica àqueles que menosprezam a cultura denominada “de elite”, acreditando nas lições da história, determinando “que é nos momentos de crise que o homem comum mais necessita das grandes manifestações do espírito para aplacar as dores da realidade”.
Sobre a eterna insatisfação de um criador, sempre a pensar em nova obra, em como ter um objetivo que, a princípio, está envolto em névoas que se dissipam no decorrer da caminhada, Ricardo Tacuchian conclui: “Vocês podem me perguntar se estou satisfeito com estes objetivos. Eu responderia que não. Estamos em permanente busca de um ideal que, embora saibamos inalcançável, gera um movimento que nos mantém vivos. Um jovem sem esta procura já envelheceu; um idoso com este anseio de novos caminhos será eternamente jovem. Assim deve ser a vida, a arte e, consequentemente, a pós-graduação”.
Bem mais do que uma aula inaugural, o texto do notável compositor Ricardo Tacuchian é um documento que ultrapassa o tempo e traduz as angústias daqueles que transitam pela arte erudita livre de arbítrios que atraem holofotes, mas que se mostram efêmeros, sem deixar quaisquer raízes. A arte erudita, seja ela qual for, e a verdadeira arte popular de raízes profundas, sem a contaminação de interesses vis que atraem uma mídia culturalmente em declínio, ainda respiram. Esperanças tênues ainda se mostram na linha do horizonte. A erudição pressupõe o caminhar sem o olvido da história. Ricardo Tacuchian bem afirma que “Ninguém começa pelo meio, mas a partir das conquistas do passado”.
Em 1985 organizei uma publicação de oito composições em homenagem ao insigne compositor Henrique Oswald. Dos oito autores convidados, três se “inspiraram” na consagrada peça para piano do homenageado, “Il Neige!”. Francisco Mignone (1897-1986) escreveria “Il Neige Encore”, Gilberto Mendes (1922-2016), “Il Neige de Nouveau” e Ricardo Tacuchian (1939- ), “Il Fait du Soleil”.
Clique para ouvir, de Ricardo Tacuchian, “Il Fait du Soleil”, na interpretação de J.E.M.:
https://www.youtube.com/watch?v=aUuE9z90dpc
Composer Ricardo Tacuchian has recently given the online Inaugural Class for the post-graduation course at the State University of Paraná. In this blog I comment on some of the many interesting topics addressed in his lecture.