Navegando Posts publicados em julho, 2021

Reflexões após questionamentos

La musique c’est le langage du coeur
Jean-Philippe Rameau (1683-1764)

Recebi instigante mensagem de um ex-aluno, João Afonso, hoje em atividade no Exterior, questionando-me sobre as múltiplas tendências da composição musical que, em um acelerar contínuo, avançam desde as primeiras décadas do século XX. “Qual a razão da multiplicidade de tendências ter público tão pequeno e não entusiasmar aquele habituado ao convencional? Os que vão às apresentações de música dodecafônica, eletroacústica ou experimental constituem público bem inferior àquele que continua a ouvir as grandes composições do passado e parece ter certa repulsa aos concertos habituais. O que se passa? Será que essas tendências mais recentes serão aceitas com o tempo? Os pianistas do passado tocavam obras do seu tempo?”

É muito difícil responder ab abrupto. Qualquer resposta incorrerá em controvérsia, pois o tema não implica unicamente a música, mas a arte como um todo, nessa vertiginosa caminhada do homem frente não apenas à tecnologia galopante, mas às transformações dos costumes em geral. Ao longo de catorze anos de meus posts hebdomadários ininterruptos, em vários deles abordei essas questões sob diversos prismas e há correntes distintas em termos de público: aquele entusiasta ou “provocativo”, em número restrito voltado à música contemporânea; o outro, com contingente bem maior, que ouve em salas de concerto as composições criadas a partir do século XVIII às primeiras décadas do século XX, mormente as obras do denominado período romântico. Esse público tradicional é afeito ao repertório que conhece. Frequentará as salas, mas preferirá largamente ouvir as Sinfonias nºs 5, 6, 7 e 9 de Beethoven do que outras do autor. Um saudoso amigo, médico competente, generoso e pianista amador, Dr. Ruy Yamanischi, disse-me certa vez, quando o convidei para recital em que apresentaria obras em primeira audição, que preferia ouvir N vezes a 5ª Sinfonia ou a 1ª Balada de Chopin a ouvir, desses compositores referenciais, obras bem menos tocadas ou, então,  criações contemporâneas. A fala desse querido amigo, cuja bondade se refletia através de atos – jamais cobrou um centavo de alguns colegas músicos que a ele apresentei –, traduz o pensamento da esmagadora maioria desse público de concertos.

Quanto ao público, é nítido que as composições hodiernas compostas nessas multidirecionadas propostas, mormente a partir da segunda metade do século XX, poderiam ser uma das causas do afastamento dos frequentadores habituais dos concertos, pois a prolixidade e a diversidade os impedem de reter o que ouviram. Para a imensa maioria do público, essa ininteligibilidade é uma das variantes para o distanciamento.

O insigne regente e musicólogo suíço Ernest Ansermet (1883-1969), em texto de 1967, “Les réalités de la vie musicale”, inserido em “Écrits sur la musique” (Neuchatel, à la Baconnière, 1971), escrevia, a contrariar tendências que surgiam: “O argumento fundamental dos músicos de vanguarda e daqueles que os apoiam e daqueles que toleram sua música é este: é necessário mudar, é preciso caminhar com o tempo – ou seja, o argumento mais pueril, o mais superficial e o mais preguiçoso que se possa evocar a propósito da arte, pois o essencial é que a música continue como música, com os atributos humanos da música”. Ansermet não descarta seus coetâneos, realizando primeiras audições de tantos deles ou mesmo apresentando obras outras desses autores, como Stravinsky, Bartók, Honegger, de Falla, Debussy e Ravel. Frise-se que Ansermet nutria uma idiossincrasia por Arnold Schönberg (1874-1971), criador do dodecafonismo. Nessa mesma orientação, o compositor Serge Nigg (1924-2008), introdutor do dodecafonismo em França  (1946), tendo se distanciado da série dodecafônica (sistema a permitir os doze sons da escala cromática, impedindo contudo a repetição de qualquer dos doze sons que a compõem) e dos epígonos que adotaram o serialismo, afirmaria tardiamente: “Nenhum compositor poderá afirmar que sua música sobreviverá; mas, um método seguro para escapar da posteridade é seguir os ukases da moda”. Em entrevista sob outra perspectiva, comenta: “Fui sempre totalmente alérgico à música eletroacústica. Por temperamento, eu não a suporto: esse material é algo que me é perfeitamente estranho. Para mim, os sons eletroacústicos são sons mortos, enquanto que nada me parece mais belo que o som do violoncelo, de um oboé ou de um violino. Por quê? Pelo fato de serem sons fabricados pelo homem, produzidos por sua ação, e que ele pode modificar à vontade”. Em post bem anterior, escrevi resenha sobre suas entrevistas publicadas na série “Témoignages” pela Université Paris-Sorbonne (vide Serge Nigg, 04, 03, 2011).

Mencionaria o notável compositor português, saudoso amigo Jorge Peixinho (1940-1995), que me dedicou o magnífico Étude V – Die Reihe Courante (1992), em que desmembra a série (12 notas). O querido amigo Elson Otake, responsável nesses últimos anos pela introdução de minhas gravações junto ao Youtube, preparou a montagem do Etude V Die-Reihe Courante nessa sexta-feira, 30 de Julho.

Clique para ouvir, de Jorge Peixinho, Etude V Die-Reihe Courante, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=Uc1PTtYbnoA

Quanto aos pianistas do passado frente ao repertório de seus coetâneos, diria primeiramente que a linguagem dos compositores do período ainda atingia aquilo que Rameau evidenciava como destinada ao coração. Ricardo Viñez (1875-1943) apresentava obras de Claude Debussy, Maurice Ravel, Isaac Albéniz, Enrique Granados; Blanche Selva (1884-1942) interpretou em primeira audição os quatro cadernos de Iberia, de Albéniz; Vladimir Horowitz (1903-1989), a Sonata op. 26 de Samuel Barber; Tatiana Nicolaieva (1924-1993), quase toda a criação de Dmitri Shostakovitch e tantos outros exemplos poderiam ser elencados.

Teríamos ainda um outro problema. Constata-se que as novas gerações de pianistas estariam mais atentas às suas carreiras, que tantas vezes são impulsionadas pelos concursos internacionais, regidos pelos repertórios da tradição. Consolidados, efetiva ou provisoriamente a essas criações dedicar-se-ão durante a existência, fato comentado pelo ilustre compositor e teórico musical argentino Juan Carlos Paz (1897-1972). Ao mencionar uma conterrânea, vencedora do Concurso Chopin de 1965, escreveria sem nomeá-la: “Magnífico, lástima que artisticamente inútil. Para que serve, efetivamente, outro fenômeno pianístico a juntar-se aos já existentes, produtos da nefasta disciplina geradora de virtuoses que, durante trinta anos ou mais, passearão seu repertório chopiniano, lisztiano, beethoviniano diante de estagnados, estáticos e estúpidos auditórios que desejam ouvir a cada dia as mesmas obras e para os quais só interessa o espetáculo desportivo com que os brinda o virtuose favorito?” Após outras considerações, finaliza: “Resultado positivo: negócio para empresários. Nada mais”. (Juan Carlos Paz, “Alturas, tensiones, ataques, intensidades” – Memorias I. Buenos Aires, De La Flor, 1972).

Para este pianista nos seus 83 anos, que ao longo da existência frequentou repertório do barroco à contemporaneidade, tendo realizado a estreia de cerca de 170 músicas, 80 delas escritas para projeto de Estudos por compositores relevantes de diversos países e que teve a exata duração de 30 anos (1985-2015), a diversidade de tendências se fez presente. Só não propus aos compositores Estudos com a intervenção eletrônica ou com o piano preparado, bem antes de conhecer as palavras de Serge Nigg. Nesse quesito fica-me a lembrança de recital que dei na University of Wales em Cardiff, capital do País de Gales (1996), quando três pianos de marcas diferentes estavam à minha disposição. Disse à Diretora da Universidade que preferia uma marca em especial, recebendo resposta a dizer que o mesmo teria de ser reparado, pois um pianista convidado tocara na noite anterior repertório com obras para as quais o piano teve de ser preparado, pois teve entre as cordas grampos, abafadores, bolas de gude, etc, etc… Comprovei que cordas estavam rompidas e martelos quebrados! Sob outra égide, repito comentário depositado em um post bem no início de meus blogs. Na Inglaterra, onde estive para palestra em Colóquio sobre Claude Debussy (1993) na Universidade de Londres, um participante inglês relativamente jovem entregou-me um Estudo para piano, sabedor de meu projeto. Numa leitura superficial observei que a peça era impossível de ser executada, pois por vezes exibia seis ou sete vozes num grande emaranhado de passagens com ritmos diferentes. Incrédulo, perguntei-lhe se alguma vez compusera uma fuga. Respondeu-me imediatamente: “Não, pois se trata de uma forma ultrapassada”!

Sob outra égide, foram quatro CDs que gravei no Exterior com obras contendo Estudos contemporâneos de compositores da Bélgica, Brasil, Portugal, França e Bulgária.

Prosseguindo em minha resposta a João Afonso, diria que, apesar de ter frequentado inúmeras obras pertencentes às mais variadas tendências composicionais dessas últimas décadas, excluindo-se aquelas que, destinadas ao projeto, tivessem as características mencionadas acima, pergunto-me quantas, dentre o extenso multidirecionamento de tendências pelo mundo, teriam o embasamento a partir das lições adquiridas através dos séculos.

Distantes da ideologia, mencionaria, como exemplos, três ilustres compositores brasileiros com posição aberta nesse controverso tema das tendências. Ricardo Tacuchian (1939- ) entendia em texto basilar que há várias tendências e não as obstaculiza, mas sim as nomeia. Criou o Sistema-T de organização de alturas, sistema de composição que não se esquece da herança acumulada através dos séculos. Gilberto Mendes (1922-2016), também com mente aberta, mas com perfil diferenciado, propôs tantas e tantas vezes em suas composições caminhos vários, por vezes entremeados de fino humor e de teatralidade, entendendo, contudo, sempre um norte a orientá-lo. Ambos, assim como Paulo Costa Lima (1954- ) que, numa linguagem segura, não despreza o contexto musical de raiz do imenso Estado da Bahia. Os três, abertos aos caminhos que se apresentam, mas distantes de certos experimentalismos bem complexos que descartam legados essenciais da música. O que provoca desconfiança quanto às intenções de certas tendências musicais surge quando preferencialmente partem para a ruptura sem sequer olhar para o passado, negligenciando toda a herança advinda de conquistas através dos tempos, como monodia, polifonia, harmonia, a consequente tonalidade e a permanência desta durante o período mais criativo da história da música, entre os séculos XVIII, XIX e as primeiras décadas do século XX. Experimentalismos são perceptíveis em centros dos Estados Unidos, Europa, Japão, Brasil e outros mais. O erro estaria não quando o embasamento se dá, mas quando a “criação” surge sem fundamentos plausíveis. Não poderíamos mencionar uma ou mais tendências. São tantas que impedem o público habitual de ao menos fixar em mente seus resultados.

A inclusão de três Estudos para piano escritos por mestres respeitados, Jorge Peixinho, Paulo Costa Lima e Ricardo Tacuchian, justifica-se, além disso, pelo fato de que escrevem, no caso específico do piano, muito bem para o instrumento e, quando a virtuosidade se dá, ela é pianisticamente de grande interesse, tantas vezes com propostas inusitadas. Diria o mesmo dos 7 Études Cosmiques, do compositor francês François Servenière, igualmente no Youtube.

Clique para ouvir, de Paulo Costa Lima, Estudo Imikayá, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=Fw2qYBd-kyE

Clique para ouvir, de Ricardo Tacuchian, Estudo Avenida Paulista, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=a4rt8r-QsDg

Às argutas questões levantadas por João Afonso diria que muitas dessas tendências experimentais correm o risco de se concentrar em guetos, se já não lá estão. Há ainda um longo caminho para entendimentos. Oxalá isso ocorra.

O entusiasmo pelos extremos históricos apenas me leva à certeza de que a criação musical, edificada com a razão e o coração, ditada pelo talento do compositor, foi e continua a ser, desde que a arbitrariedade não impere, um dos bálsamos para a humanidade.

Clique para ouvir, de Carlos Seixas (1704-1742), a Sonata nº 34 em Mi Maior, na interpretação de J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=QXoSKycVA5k

Findava o post quando recebo de minha dileta amiga Maria Celestina Leão Gomes, ex-presidente da Associação Lopes-Graça, a notícia do falecimento da ilustre pianista portuguesa Olga Prats (1938-30/07/2021). Esteve próxima do grande compositor Fernando Lopes-Graça (1906-1994), divulgando muitas de suas criações, interpretando inúmeras em primeira audição e gravando obras referenciais. Lopes-Graça dedicou-lhe a extraordinária Sonata nº 5. No âmbito da música contemporânea apresentaria, entre outras composições, criações de Victorino d’Almeida e Constança Capdeville. Como sócio honorário da Associação Lopes-Graça junto-me a todos os que admiram a arte de Olga Prats.

A former student, who has been living abroad for a long time, e-mailed me asking several questions about the way the general public views modern compositional trends. Having practiced during many decades the repertoire from Baroque to contemporaneity, I try to answer his questions in this post.

 

 

 

 

Pianista britânico referencial

É um inútil desperdício de tempo celebrar a memória dos mortos
se não nos esforçamos em exaltar as obras que deixaram.
Monteiro Lobato

Solomon Cutner, como pianista conhecido apenas por Solomon, nasceu e faleceu em Londres. Foi um dos notáveis intérpretes que nos visitaram no primeiro lustro dos anos 1950. Tive o privilégio de assistir ao seu recital. Ficaria gravada na memória do jovem estudante a profunda concentração de Solomon, sem fazer qualquer concessão. Se nos lembramos é pelo fato de que Solomon, como alguns outros já mencionados em blogs anteriores, causou no adolescente forte impressão.

São raros aqueles pianistas que tiveram trajetórias singulares, com interrupções e percalços. Solomon foi um deles. Filho de um modesto alfaiate, iniciou cedo os estudos pianísticos com uma das alunas de Clara Schumann, Mathilde Verne. Sua carreira pode ser entendida em duas fases distintas. Inicialmente, a do menino prodígio, um dos mais destacados do período, pois aos oito anos apresentou-se interpretando o Concerto nº 1 de Tchaikovsky no Queen’s Hall em Londres. Arthur Rubinstein esteve presente ao evento. Após intensa atividade, por volta dos 15 anos chegou a rejeitar o instrumento. Aconselhado pelo maestro Sir Henry J.Wood dedicou-se durante anos a buscar o aperfeiçoamento. Na França estudaria com Lazare Lévy e Marcel Dupré e, em Londres, com Dame Myra Hess. Retornaria aos palcos em 1923, adotando desde então o nome artístico Solomon.

Principalmente após sua primeira apresentação nos Estados Unidos, em 1926, empreenderia carreira extraordinária, que o levou a percorrer os continentes e ser saudado como um dos grandes mestres do teclado. Singraria carreira triunfante até 1956. Nesse ano, estava em período de gravação da integral das Sonatas e Concertos para piano de Beethoven quando, durante férias na França, vem a sofrer um derrame, que resultou na paralisia de seu braço direito, dificuldade na fala e outras decorrências pertinentes ao mal, o que o fez interromper todas as apresentações. Viveria mais 32 anos. Durante esse longo período, recebeu o título de “Commander of the Order of the British Empire”.

Clique para ouvir, de Beethoven, o terceiro movimento da Sonata Appassionata, op. 57, na interpretação de Solomon:

https://www.youtube.com/watch?v=wqYJJeyHe7A

Ciclos com as Sonatas e os concertos de Beethoven e interpretações de obras de Mozart, Schubert, Chopin, Schumann, Brahms e Debussy tornaram-no pianista referencial. Curiosamente, recusou-se a gravar os Concertos para piano e orquestra de Beethoven com o maestro Wilhelm Furtwängler, mercê de suas ligações com o nazismo. Atuou igualmente como camerista, tendo formado trio com os insignes violinista Zino Francescatti e celista Pierre Fournier.

Solomon primou em suas execuções (tantas delas no Youtube) pelo respeito ao pensamento do autor. Ouvi-lo é apreendermos a dimensão de uma leitura a mais próxima do que está expresso na partitura. Solomon possuía uma virtuosidade extraordinária, que em nenhum momento esteve a serviço da expansão do ego. É lógico que há a plena revelação da personalidade do intérprete, mas a obediência às propostas do compositor mostra-se sempre bem expressa por Solomon. Rubatos exagerados, virtuosidade pela virtuosidade, gestual pour épater les bourgeois inexistem. Sob outro aspecto, suas interpretações se caracterizam pela expressão lírica personalíssima, igualmente sem quaisquer arroubos. Sua leitura da célebre Sonata Ao Luar op. 27 nº 2 de  Beethoven é exemplo maiúsculo dessa apreensão inusitada expressa no Adagio inicial, em que realiza esse andamento ainda mais lento. É extremamente mais complexo executá-lo sob esse enfoque, Largo, na realidade. Com absoluta maestria, Solomon obtém uma interpretação inusitada, onde prevalece a condução homogênea, a depreender uma poética singular, que enfatiza o caráter etéreo desse aclamado movimento.

Clique para ouvir, de Beethoven, a Sonata Ao Luar, op. 27 nº 2, na lendária interpretação de Solomon (1945):

https://www.youtube.com/watch?v=HK__kS2R3-w

Schubert, um de seus eleitos, está sensivelmente expresso na interpretação de um dos mais frequentados Improvisos do compositor.

Clique para ouvir, de Schubert, o Improviso op. 90, nº 4 (D.899), na interpretação de Solomon:

https://www.youtube.com/watch?v=IOv5pGKlNYk

Chopin também foi um de seus eleitos. Sua interpretação da 4ª Balada do compositor bem demonstra sua identificação com a obra do autor. A compreensão estilística, a interpretação pessoal e jamais arbitrária e o lirismo inerente estão presentes. Uma das mais expressivas gravações dessa criação.

Clique para ouvir, de Chopin, a 4ª Balada em fá menor op. 52, na interpretação de Solomon (1946):

https://www.youtube.com/watch?v=YyUWOun-OP4

Inusitada foi a atitude de Solomon ao gravar, de Scriabine (1872-1915), um dos mais importantes Concertos para piano e orquestra do período (1896-1897). Existiam algumas gravações referenciais, mormente por pianistas russos, mas Scriabine ainda não era tão frequentado como seu coetâneo Rachmaninov.

Clique para ouvir, de Alexander Scriabine, o Concerto para piano e orquestra em fá sustenido menor, op. 20, na interpretação de Solomon:

https://www.youtube.com/watch?v=1aXWhmLt0ew

Nos já tantos justos e merecidos blogs a reverenciar os grandes mestres do piano do século XX, tantos deles esquecidos, rememorarmos Solomon é saudar sempre o respeito à tradição interpretativa. Estou a me lembrar de inúmeras vezes, quando na vida acadêmica, ter perguntado a alunos sobre notáveis pianistas de antanho. O silêncio indicava o absoluto desconhecimento desses artistas quase esquecidos. Ao mencioná-los, verificava que as reações eram de indiferença. E a ausência de ao menos curiosidade era evidência de que algo sério já se adensava no horizonte. Logicamente exceções existiram, mas concentravam-se no seleto compartimento das raridades.

Dame Myra Hess, tema do blog precedente, e Solomon são dois dos notáveis pianistas ingleses entre outros mais, como Clifford Curzon e Gerald Moore e, de uma geração mais recente, John Ogdon, também já falecido. Ouvi-los é compreender a importância de uma tradição pianística não tão divulgada como a de outros países do hemisfério norte. Grandes mestres.

The English pianist Solomon was one of the piano icons of the 20th century. He had two distinct phases in his career, which ended abruptly after a stroke in 1956, and he has lived another 32 years without being able to practice the art that made him famous.

Um dos nomes referenciais do piano no século XX

A música expulsa o ódio daqueles que não têm amor.
Ela traz paz aos que não têm repouso,
consola os que choram.
Aqueles que se perderam encontram novos caminhos,
e os que recusam tudo encontram confiança e esperança.
Pablo Casals (1876-1973)

Estou a me lembrar da adolescência e de impactos que marcaram. Meu saudoso pai era um apaixonado pela arte da fotografia, tirava-as em abundância e revelava-as em um pequeno quarto escuro para essa finalidade na edícula de nossa morada. Tinha todo o material para esse mister. Igualmente tinha o maior cuidado com um projetor de películas, marca RCA. Sua paixão por documentários em 16mm era proverbial. Adquiria constantemente filmes de grandes   intérpretes em execuções referenciais. Convidava amigos apreciadores e assistíamos a esses filmes. Seguia-se o ritual, o pai armava a tela, retirava o grande rolo guardado em uma caixa de metal e o inseria no projetor, posicionava-o, apagava as luzes e o maravilhamento se dava, apesar do barulho da aparelhagem. Ficaram-me guardadas no de profundis as execuções dos notáveis violoncelistas Pablo Casals e Emmanuel Feuermann, do duo pianístico Vronsky & Babin, do violinista Jascha Heifetz, dos pianistas Arhur Rubinstein, Wilhelm Kempff, Alfred Cortot e Dame Myra Hess, entre tantos outros mestres excelsos. No que concerne a Dame Myra Hess, a insigne pianista inglesa interpretava sua transcrição para piano do consagrado coral de J.S.Bach, Jesus, alegria dos homens, e a Sonata Appassionata nº 23, op. 57, de Beethoven. Por várias vezes assistimos a esse filme. Ao ouvir o coral de Bach, fascinou-me sua execução e pedi ao meu pai para adquirir a partitura que, estudada, permanece em meu repertório desde aquele período encantatório, gravando-a na Bélgica em 2004 e presentemente postada no Youtube.

Clique para ouvir, de J.S.Bach-Hess, o coral Jesus, alegria dos homens, na excelsa interpretação de Dame Myra Hess:

https://www.youtube.com/watch?v=yaCg_nC2W5s

Nascida em Londres, iniciou aos cinco anos os estudos pianísticos e aos 17 interpretava o 4º Concerto de Beethoven e o 4º de Saint-Saëns, sob a regência do renomado Sir Thomas Beecham. Impressiona a sua atividade, pois meses a seguir, em 1908, apresenta recitais diferenciados e o  Concerto nº 1 de Liszt. Tendo interpretado nesse período um recital com as últimas Sonatas de Beethoven, recebe crítica não tão laudatória e doravante se concentraria em suas Sonatas e Concertos, o que a fez ser reconhecida ao longo das décadas como uma importante executante do mestre alemão. Após turnês pela Europa, estreia em 1922 em Nova York, tendo recepção calorosa como recitalista, assim como camerista em turnê pelos Estados Unidos.

Clique para ouvir, de Chopin, a Valsa nº 1 em Mi bemol op.18, na interpretação de Dame Myra Hess:

https://www.youtube.com/watch?v=wjphsoYN0QQ

Myra Hess foi não apenas uma notável pianista, mas também uma resistente, a desempenhar através da música missão relevante durante os anos sombrios da IIª Grande Guerra.

Impressiona o seu destemor e voluntária participação durante a guerra, pois durante mais de seis anos Myra Hess esteve à testa de programação na National Gallery, na Trafalgar Square. Iniciado o conflito, interrompe turnê nos Estados Unidos e retorna à Inglaterra e,  após visitar a National Gallery, cujas telas haviam sido retiradas por precaução, propôs concertos prontamente aceitos. Na sua primeira apresentação, o numeroso público contornava a rua da famosa galeria. Participaria de aproximadamente 150 apresentações, num total próximo de 2.000, sempre à hora do almoço, mercê dos bombardeios nazistas durante as noites. Muitos artistas se prontificavam a exibir-se nas récitas com cachês diminutos. Frise-se que Myra Hess, em plena guerra frente aos alemães, privilegiaria o repertório austro-germânico por considerar que a arte está acima de quaisquer outras ideologias ou mais considerações. Temendo bombardeios diurnos, concertos eram transferidos para uma sala menor. Público das mais diversas classes acorriam às récitas. Um documentário breve e histórico de 1942, “Listen to Britain” (realizado por Humphrey Jennings e Stewart McAllister)), em pleno período dos ataques aéreos sobre Londres, apresenta Dame Myra Hess em curta passagem a interpretar o início do Concerto nº 17 em Sol Maior de Mozart, K 453, com a presença da Rainha Consorte da Inglaterra (a partir dos 14’00”):

https://www.youtube.com/watch?v=Nq1UqU2u1hs

Dame Myra Hess, assim notabilizada, receberia em 1941 o título de “Dame Commander of the Order of the British Empire”, concedido pelo rei George VI mercê de seu empenho cívico nos tempos sombrios da IIª Grande Guerra. Doravante incorporaria o título ao seu nome artístico. A National Gallery preserva a memória da pianista em dia a ela dedicado. Deve-se a Dame Myra Hess a perpetuação dos concertos ao meio-dia, ora presentes em quase todo o mundo.

Continuaria a carreira brilhante, preferenciando salas pequenas, mais intimistas e menos estressantes e perpetuando autores austro-germânicos: Mozart, Beethoven (seu preferido), Schubert, Schumann… Inglaterra, Países Baixos e Estados Unidos, preferencialmente, acolheriam com entusiasmo suas apresentações.

Como camerista, atuou com alguns dos mais respeitados intérpretes da história: violinistas Joseph Szigetti, Fritz Kreisler e o celista Emanuel Feuermann. Apesar de não ter legado um número expressivo de gravações, tornou-se lendária a interpretação do Quinteto de Schumann op. 44 com os insignes Isaac Stern, Alexander Schneider, Milton Thomas e Paul Tortelier.

Em Setembro de 1961 faria sua última apresentação no Royal Festival Hall de Londres. Retirar-se-ia, continuando no entanto a orientar. Entre seus alunos, Solomon Cutner e Stephen Kovacevith.

Faleceu de ataque cardíaco aos 25 de Novembro de 1965. Uma placa homenageia a grande intérprete e figura heroica no 48 Wildwood Road, em Londres.

Fluíram mais de seis décadas daquele período mágico em que, entre tantos luminares, ouvi e vi em filme de 16mm a notável Dame Myra Hess a interpretar transcrição de J.S.Bach e a Sonata Appassionata de Beethoven. Ao ouvi-la hoje, o impacto não é menor. Uma das pianistas excelsas que buscava prioritariamente preservar a tradição pianística. Nenhum exagero na condução das frases, acabamento impecável e um respeito íntegro à forma musical. Uma grande artista.

Clique para ouvir, de Beethoven, o Concerto nº 3 em dó menor, na interpretação de Dame Myra Hess, sob a regência de Arturo Toscanini (Novembro, 1946):

https://www.youtube.com/watch?v=FpOSagfzVr8

Dame Myra Hess has been not only a remarkable pianist, but also a woman who took an active part, through music, in World War II effort by organizing, in a span of six years, about 2000 concerts at the National Gallery in London, minimizing the suffering of the English people in times of intense bombing by Nazi Germany against Great Britain.