Pianista diferenciada em interpretações personalíssimas


Lerás bem quando leres o que não existe
entre uma página e outra da mesma folha.
Agostinho da Silva
(“Espólio”)

Annie Fischer nasceu e morreu em Budapeste. Foi uma das mais importantes pianistas da história, consagrando a escola pianística húngara, que teve como grande patrono Franz Liszt. Lembrá-la se faz necessário pelo fato, já tantas vezes colocado neste espaço, do progressivo esquecimento dos nomes maiores da cultura universal, de maneira sistemática, intencional, irredutível, irracional. Esquecer o passado, buscando uma nova escrita a partir das turbulências hodiernas, afigura-se como o prédio “construído” sem alicerces. O culto ao passado é aprimoramento, a única possibilidade da existência do termo origem.

Annie Fischer, assim como seus ilustres contemporâneos, estudou na Academia de Música Franz Liszt na capital da Hungria. Curiosamente, em sentido diverso ao que se processou em França, na Alemanha e na Rússia, como exemplos, a plêiade dos destacados pianistas húngaros não obedece a um “estilo” acadêmico em particular. György Cziffra, György Sébok, Andor Foldes, Géza Anda já estiveram presentes em posts anteriores e são mestres incontestes da formidável e diversificada, frise-se, escola húngara de piano.

Annie Fischer teve como mestres Erño Dohnányi e Arnold Szekely. Tinha ela apenas 19 anos e sua interpretação da monumental Sonata em si menor de Liszt tornar-se-ia lendária. Em 1924, ainda adolescente, estreia como solista do 1º Concerto de Beethoven e, dois anos após, dos Concertos nº 23 de Mozart e o lá menor de Schumann.

Assim como Géza Anda e Claudio Arrau, Annie Fischer também obteve a máxima láurea no Concurso Franz Liszt em Budapeste.

Sua carreira esteve preferencialmente voltada à Europa e Austrália.  Tardiamente apresentar-se-ia poucas vezes nos Estados Unidos.

De origem judaica, Annie Fischer viveria na Suécia durante a Segunda Grande Guerra. Casou-se com o renomado musicólogo Aladar Thot. De regresso à Hungria, gravaria para o selo Hungaraton; mas, por vários motivos, entre os quais por não ser comunista, suas gravações não atravessariam as fronteiras do país. Contudo, a partir de sua morte esses registros foram divulgados a contento. Fora de seu país gravaria para o selo EMI.

Mozart foi um dos compositores eleitos. Annie Fischer confere a suas gravações mozartianas uma leitura ligada à tradição, mas com nítida visão pessoal.

Clique para ouvir, de Mozart, Concerto nº 21 em Dó Maior para piano e orquestra, K. 467, na interpretação de Annie Fischer:

https://www.youtube.com/watch?v=Tx06rIRgbqE

Considere-se que a Annie Fischer das gravações em estúdio diverge de seus registros em público, tanto no que concerne aos recitais como às apresentações como solista de concertos com orquestra. Apesar de certo desconforto ao gravar em estúdio, a própria necessidade da impecabilidade do registro fonográfico determinaria uma postura que, em princípio, não se afigurava espontânea para a pianista. Paradoxalmente, suas gravações em estúdio, por muitas razões, envolvendo fatores como a concentração por inteiro, a ausência total do “medo do palco”, que atormentou e atormenta tantas carreiras, a certeza da possibilidade de edições, o que alivia tensões, propiciaram a esses registros a transmissão plena de seu projeto interpretativo. Gravou todas as Sonatas de Beethoven para a Hungaraton, mas tempos após divergiria de algumas de suas execuções. A hercúlea façanha, iniciada em 1977, prolongou-se durante anos e Fischer não permitiu o lançamento de parte da integral durante sua existência. Em público, suas interpretações eram apaixonadas, vigorosas e nem sempre impecáveis, dado o arroubo de seu temperamento. Mauricio Pollini, um de seus grandes admiradores, tem frase basilar a respeito ao dizer que quão menos ideias o pianista tem, menor sua possibilidade de cometer erros ao tocar. Sviatoslav Richter foi outro a ter admiração confessa pela pianista: “Annie Fischer é uma grande artista imbuída de um espírito de grandeza e profundidade genuína”.


A interpretação das célebres Cenas Infantis de Schumann, op 15, bem demonstra qualidades essenciais da artista. Concepção personalíssima, a dar relevo a cada uma das 13 “pecinhas”, uma visão que une lirismo, arroubo e poesia intensa. Schumann escreveria à Clara, então sua noiva, em Fevereiro de 1838: “Acho que você vai gostar, mas vai ter que esquecer que é uma virtuose”.   Annie Fischer, nas peças menos idílicas, trata-as de maneira singular e apresenta no todo uma das mais significativas interpretações dessa obra intensamente frequentada por ilustres pianistas.

Clique para ouvir, de Schumann, Cenas Infantis, na interpretação de Annie Fischer (1964):

https://www.youtube.com/watch?v=iILhSpRvXrw

Outras facetas da pianista estão relacionadas à sua “aversão” à carreira rotineira e ao fato de não ser afeita às entrevistas. Conta-se que, após recitais, ao regressar ao camarim já a esperava um cigarro sem filtro. Deixa-se inúmeras vezes fotografar fumando.

As características virtuosísticas de Annie Fischer se mostram empolgantes em obras de Liszt. Se aos 21 anos a interpretação da Sonata em si menor de Liszt causou inequívoca impressão no júri do Concurso Liszt, essas qualidades, somadas a uma verdadeira “autoridade” ou bravura em determinadas passagens do Étude nº 6 d’après Paganini, do compositor húngaro, atestam a interpretação hors série.

Clique para ouvir, de Liszt, o Étude nº 6 d’après Paganini, na interpretação de Annie Fischer:

https://www.youtube.com/watch?v=mMBsq3BFwi0

Annie Fischer. Uma pianista a ser mais visitada. Tenho insistido reiteradas vezes em que não se pode olvidar legados. A interpretação desse Estudo Paganini-Liszt inserido em Março de 2014 no Youtube não chega a 2.000 acessos!!! Nessa inversão absurda de valores, uma pianista russa-norte americana, dotada de qualidades mais  “visuais” do que propriamente musicais, na interpretação de obra consagrada de Chopin tem acessos que superaram a cifra de dez milhões!!! Ouçamos o passado, possibilidade talvez única de não perdermos o rumo.

Annie Fischer was one of the remarkable pianists of the 20th century. Her interpretations are very personal and show an unusual fusion of poetic vision with impetuous virtuosity. One must listen to her in both configurations: through studio recordings and live, for her posture changes according to her environment.