Pianista voltado igualmente ao repertório de seu tempo

Minha maior preocupação sempre foi a música e não eu próprio.
Rudolf Firkusný

Na minha juventude assisti em São Paulo a um dos recitais de Rudolf Firkusný. Empolgou o público interpretando obras do repertório romântico e criações de Janácek. Àquela altura, causava surpresa o pianista que interpretava obras que não integravam o denominado repertório convencional. Ficou-me viva impressão.

Nascido na República da Checoslováquia, iniciou cedo seus estudos musicais com o pianista e compositor Leos Janácek (1854-1928). Curiosamente, Janácek, que não tinha especial interesse por meninos prodígios, direcionou-o preferencialmente para a teoria e a composição. Após estudos pianísticos na Academia de Praga, viaja para a França, onde ficou sob a orientação de Alfred Cortot e após, na Alemanha, sob a tutela pianística de Arthur Schnabel, dois dos maiores mestres do século XX.

Faria sua estreia nos Estados Unidos em 1938 com branda recepção crítica, que só seria laudatória três anos após.

A ocupação nazista na Checoslováquia fê-lo se instalar em Nova York. Não comungando ideais comunistas, desiste de voltar ao seu país, a ele retornando apenas para visitas esporádicas, pois se torna cidadão americano, desenvolvendo relevante carreira como pianista e professor na renomada Juilliard School. Sua carreira se estendeu por todo os Estados Unidos, Europa, Japão e América Latina.

Firkusný destacar-se-ia entre muitos de seus coetâneos na interpretação de compositores checos menos frequentados nas salas de concerto, como Bedrich Smetana (1824-1884), Antonín Dvorák (1841-1904), Leos Janácek e Bohuslav Martinú (1890-1959), compositor este que lhe dedicou várias obras. A rara preocupação para com esses compositores foi um dos grandes méritos do ilustre pianista.

Clique para ouvir, de Janácek, Sonata nº 1.X.1905, na interpretação de Rudolf Firkusný:

https://www.youtube.com/watch?v=4vH2gGgkRBs

Depoimentos de Rudolf Firskusný têm interesse, pois revelam características do intérprete, como também observações concernentes ao que ele entende como método de trabalho (Elyse Mach, Great Contemporary Pianists Speak for Themselves. New York, Dover, v. 1, 1991). Suas reflexões são pertinentes não apenas como pianista, mas como professor que em seu tempo apreendeu o resultado das diversas escolas pianísticas. Entre alguns de seus comentários:

“É claro que ainda ouvimos falar da escola russa ou da escola francesa, ambas com suas tradições peculiares, mas essas tradições acompanharam paralelamente as linhas da sua música que estava a ser composta, mais do que qualquer outra coisa. A escola russa é robusta porque a música de Rachmaninoff e Tchaikovsky é robusta e, consequentemente, exige um poderoso tipo de expressão mais densa. A música francesa, por outro lado, é leve e arejada; muito elegante e limpa, como as obras de Couperin, Rameau, Saint-Saëns, Debussy e Ravel, a exigir do intérprete um toque mais suave”. Estou a me lembrar de que, no período em que estive a estudar em Paris (1958-1962), agudizava o choque entre as duas escolas, proveitoso com certeza, sendo que o impacto advindo dos notáveis pianistas russos que se apresentavam na capital francesa foi enorme. Basicamente, meio século após verifica-se que as escolas chinesa, japonesa e sul coreana que avançam no ocidente com seus jovens intérpretes, exibe a assimilação das escolas russa, francesa, alemã…

Clique para ouvir, de Brahms, Klavierstücke, op. 119, na interpretação de Rudolf Firkusný:

https://www.youtube.com/watch?v=W_-C45-dw7k

Firkusný comenta sobre a abrangência cultural de um pianista: “As carreiras devem estar sempre a progredir. Gosto de ler, especialmente livros sobre músicos, como as cartas de Mozart, que contêm referências diretas e ideias sobre a sua própria música e a de seus contemporâneos”. Sobre suas andanças pelo mundo: “A viagem necessária para a minha profissão tem muitas vantagens.  Tento procurar lugares ou pessoas interessantes, e busco alargar o meu interesse da forma que posso. Com a grande corrida pela perfeição acentuada, os pianistas gastam mais tempo a praticar em casa, preferencialmente a outras coisas que são tão importantes como as horas no teclado. Todos os artistas desenvolvem algum tipo de personalidade e, inevitavelmente, essa resulta na performance. Não há dúvida sobre a importância da exibição virtuosa, mas se for tudo o que o pianista tiver para dar, obviamente faltará algo na sua interpretação. A profundidade e a amplitude de toda a pessoa são definitivamente necessárias para se interpretar corretamente qualquer composição”.

Não negligencia o estar apto para as peças de virtuosidade: “Eu nem sequer gosto de discutir aparato físico porque é como andar; fazes à tua maneira porque é tua maneira, e porque tem de ser feito. Desenvolve-se uma certa técnica como parte da formação, e aí está. És tu, mas é apenas um começo, um começo. Se a técnica está interiorizada, abrem-se novos anéis; gira-se. É um meio para um fim”.

Durante as Olimpíadas assisti às provas de skate  com a obtenção da medalha de prata pela incrível menina Rayssa Leal, a Fadinha; da ginástica olímpica com as medalhas da notável Rebeca Andrade, assim como acompanhei a final do US OPEN, em que duas jovens (18 e 19 anos) se encontraram após  vencerem as melhores tenistas da atualidades. Era notória a contração facial das “veteranas” e a desenvoltura “descontraída” das novatas durante o longo torneio. O mesmo ocorre frequentemente com a execução musical. Rudolf Firskuný observa com precisão: “Tendo a sofrer de nervosismo e de um pouco do denominado ‘medo do palco’. Na verdade, penso que ele está mais presente, pois à medida que envelheço sinto mais responsabilidade para com a minha música e o meu público, por isso a sensação de tensão aumenta. Pode ocorrer bem antes de uma apresentação, por vezes no próprio dia e, não raro, pouco antes de subir ao palco, mas está sempre presente”.

Clique para ouvir, de Schumann, Estudos Sinfônicos, op. 13, na interpretação de Rudolf Firskuný:

https://www.youtube.com/watch?v=75bH19erj2Y

Ouvir Rudolf Firskuný é captar a mensagem de um dos destacados pianistas do século XX. Acrescenta à interpretação a consciência do artista com almejos amplos.

Rudolf Firkusný was one of the great masters of the 20th century. Among his merits is his inclination not only for the traditional repertoire, but also for the music of his time.