Um pianista reflexivo não devidamente cultuado
O esquecimento é o verdadeiro sudário dos mortos.
George Sand
Nesses tempos em que a cultura musical erudita tem sofrido reveses constantes sob tantos aspectos, a lembrança dos grandes intérpretes do passado tem de ser resgatada. É realmente preocupante o distanciamento das novas gerações com as anteriores, que fundamentaram as bases para que a atividade musical pudesse continuar em nível elevado. Romper o elo que liga as gerações poderá ter efeitos danosos, pois olvidaremos legados insofismáveis que propiciaram à interpretação musical seguir rumos seguros.
Da série de grandes mestres do teclado do século XX presentes neste espaço, muitos deles esquecidos, são poucos os que têm um número aceitável de acessos no Youtube. É constrangedor verificar que uma sombra plúmbea envolve pianistas realmente referenciais. Muitos jovens, mormente asiáticos ou do leste europeu, laureados em prestigiosos concursos de piano, já têm muitíssimo mais acessos do que pianistas que foram aceitos na plenitude em suas épocas.
Géza Anda, nascido em Budapeste, tornar-se-ia futuramente cidadão suíço. Seguir sua trajetória é entender um dos mais expressivos nomes do piano, infelizmente falecido precocemente e não divulgado à altura de seu imenso talento.
Tendo estudado na Academia Franz Liszt, em Budapeste, com mestres renomados, Ernst Dohnányi e Zoltán Kodály, desde jovem seu talento foi reconhecido. Importa saber que, em 1940, Géza Anda receberia o prêmio Liszt, concedido anteriormente aos ilustres pianistas Annie Fischer e Claudio Arrau. Em plena IIª Grande Guerra, em Berlin, Géza Anda interpretaria as “Variações Sinfônicas” de César Franck, sob a regência de Wilhelm Furtwängler e, um ano após, em Budapeste, sob a regência de Wilhelm Mengelberg, executaria o “3º Concerto” de Béla Bartók. Aos vinte anos, Géza Anda já se destacava como solista, sob a batuta de dois dos maiores regentes da história. Ao longo da carreira, centrada no repertório clássico romântico, apresentou-se com as mais importantes orquestras do planeta dirigidas por nomes basilares: Ferenc Fricsay, Claudio Abbado, Ernest Ansermet, Sir John Barbirolli, Karl Böhm, Ernest Bour, Eugen Jochum, Herbert von Karajan, Joseph Keilberth, István Kertész, Otto Klemperer, Rafael Kubelík, Ferdinand Leitner, Erich Leinsdorf, Fritz Reiner, Hans Rosbaud, Sir Malcolm Sargent, Carl Schuricht, Sir Georg Solti e George Szell.
Foi o primeiro pianista a gravar os 27 Concertos para piano de Mozart. Para tanto, fê-lo não só como pianista e autor das cadências, mas igualmente a conduzir orquestra reduzida, na busca de similitude com o período mozartiano. Esse hercúleo labor deu à interpretação da integral uma singular identidade. Transferia à performance com os componentes do conjunto orquestral o pensamento “único”, irretocável. Dir-se-ia que a homogeneidade dessa coleção de Concertos está presente em todos eles. Uma construção arquitetônica. Legado que Géza Anda deixou aos pósteros. A gravação dos 27 Concertos foi realizada pelo selo Deutsch Grammophon. Esse pioneirismo estimulou pianistas de gerações posteriores a empreenderem a realização da hercúlea integral.
Clique para ouvir, de Mozart, o Concerto nº 16 em Ré Maior K. 451. Géza Anda interpreta e rege (cadência do pianista):
https://www.youtube.com/watch?v=SOhGsFxGANw&list=RDSOhGsFxGANw&start_radio=1&rv=SOhGsFxGANw&t=82
Gravação histórica reúne Clara Haskil e Géza Anda na interpretação de Concertos de J.S.Bach e Mozart para dois teclados e pianos, registros anteriores à empreitada da integral mozartiana mencionada acima.
Clique para ouvir, de J.S.Bach, o Concerto para dois teclados em Dó Maior, BWV 1061, na interpretação de Clara Haskil e Géza Anda sob a direção de Alceu Galliera a conduzir a Philarmonia Orchestra London:
https://www.youtube.com/watch?v=UKlNkGPGouc
Durante um período deixaria de gravar. Essa atitude fez com que uma série de gravações surgissem a partir de suas apresentações.
Clique para ouvir, de Béla Bartók, o Concerto nº 3 na interpretação de Géza Anda, sob a regência de Férenc Fricsay (1960):
https://www.youtube.com/watch?v=dBIa1ttRFMM
O legado de Géza Anda, um pianista injustamente pouco frequentado, é enorme. Suas interpretações revelam o pianista pensador, preocupado em transmitir unicamente a obra em sua essencialidade. Se suas performances dos 3 Concertos de Béla Bártok foram consideradas as mais significativas da sua geração, assim como a da integral dos Concertos de Mozart, criações de Schumann, Chopin, Brahms também povoariam seu repertório. Destacar-se-ia igualmente como professor na Áustria e na Suíça, onde fixaria residência.
Partiu cedo, mercê de câncer esofágico; mas, apesar de um quase olvido inexplicável, Géza Anda foi um dos grandes mestres do piano. Ouvi-lo motiva um prazer estético singular.
Géza Anda ranks amongst the greatest keyboard virtuosi of the last century, but unfortunately after his early death his name somewhat faded away in people’s memory. In his approach to music, among other qualities, he searches for a full composition-interpretation identity. Anda’s recording of Mozart’s 27 Concertos, where he had triple participation, as pianist, conductor and author of the cadences, remains a benchmark of quality, the same happening with his recording of the three concertos by Béla Bartók.