Tema natural, mas sob incontáveis apreensões

A morte dos outros me afeta:
e seu morrer, a sua morte,
são parte da minha vida,
são marcos ao limite último.

Joan Reventós i Carner (1927-2004)
(“Os anjos não sabem velar os mortos”)

Às voltas com momentos críticos que está a passar um de meus mais intensos amigos, amigo-irmão, estive a pensar sobre a morte e a percepção que dela se tem a partir de tantas circunstâncias. Apreendida com naturalidade e resignação, mercê de fatores voltados às religiões; recepcionada na solidão de quem perde um ente querido; exacerbada por multidões quando atinge figuras mediáticas, a morte, sem se importar com essas reações, segue inexorável. Mors certa hora incerta, como reza o latim.

O notável filósofo e musicólogo Vladimir Jankélévitch (1903-1985), em seu livro “La Mort” (France, Flammarion, 1977), a tratar do mistério e do fenômeno da morte, no capítulo inicial, escreve sobre o cotidiano do destino final: “Podemos considerar que o problema da morte seja propriamente um problema filosófico. Se ponderarmos objetivamente e de um ponto de vista geral, não podemos basicamente saber o que seria uma ‘metafísica da morte’; contrariamente, ‘entendemos’ muito bem uma ‘física’ da morte, seja ela referente à biologia ou medicina, sociologia ou demografia: a morte é um fenômeno biológico, como o nascimento, a puberdade e a velhice; a mortalidade é um fenômeno social como a natalidade, o casamento ou a criminalidade. Para o médico, o fenômeno letal é determinável e previsível, segundo especialidades, em função da duração média da vida e das considerações gerais dos meios. Sob o aspecto jurídico e legal, a morte é um fenômeno também natural: nas prefeituras, a seção voltada às mortes é como as outras existentes e, ao lado dela, há uma subdivisão do estado civil, outras para nascimentos e casamentos; o serviço funerário é um órgão municipal, nem mais nem menos do que o das vias públicas, dos jardins públicos ou da iluminação das ruas; a coletividade mantém indistintamente suas maternidades, suas escolas e suas casas de saúde. A população aumenta com os nascimentos, decresce com as mortes: nenhum mistério, simplesmente uma lei natural e um fenômeno empírico normal, ao qual a impessoalidade das estatísticas e dos meios retira todo o caráter de tragédia”. Essa percepção, que condiz com a realidade cotidiana, mesmo que dela muitas vezes não tenhamos consciência, minimiza até certo ponto a extensão da tragédia, a depender de convicções, crenças e idolatrias.

Jankélévitch desenvolve considerações sobre um quadro de Domenico Fetti (1589-1623), “Melancolia” ou “Meditação”, alegoria a representar a Sabedoria meditando sobre um crânio.  Ao ver do filósofo, “não há nada a se pensar sobre a morte e a Sabedoria está tão vazia quanto o crânio sobre o qual ela medita. Diante da morte, o homem está como se estivesse diante da profundeza superficial do céu noturno: ele não sabe o que fazer”.

Deparamo-nos com a morte nesses tempos pandêmicos. Parentes e amigos partiram e legião de infortunados, que não resistiram,  fizeram-me refletir sobre o tema. A apreensão da morte num meio familiar tem uma  dimensão, mas quando atinge figuras amplamente mediáticas recebe por parte da multidão recepção desconcertante.

Estou a me lembrar de três fatos determinantes. Quando do assassinato da atriz de novelas Daniela Perez, aos 28 de Dezembro de 1992, uma turba compareceu à Delegacia e em número maior ao cemitério. O fato serviu para que escrevesse ao jornal “O Telégrafo” da Horta, sede da ilha Faial, pertencente ao Arquipélago dos Açores, pois era correspondente do Suplemento Literário “Antilha” do diário faiense, artigo a responder texto precedente do ótimo poeta da ilha, Heitor Aghá Silva, sobre o malefício que as novelas traziam à língua mãe praticada no arquipélago (vide blogs: “A Voz e o Eco Captados Além-Mar” e “Um trágico amalgamar”, 20 e 27/03/2010, respectivamente). Em “Um trágico amalgamar”, publicado no “Antilha” aos 12 de Março de 1993, fazia referência a essa multidão: “No cemitério ou junto à Delegacia de Polícia, durante dias, um público absurdo buscava vaticinar o veredicto para os réus e, na histeria, idolatrar os mitos vivos que compareciam aos lugares citados”.

A colocação se faz necessária após dias recentes, quando mídias nacionais voltaram-se sem tréguas para noticiário semelhante, ou seja, a trágica morte da jovem Marília Mendonça, quiçá tão ventilada e abrangente como o foram as mortes de Tancredo Neves e Airton Senna! Tantos pronunciamentos de figuras conhecidas profetizando a “eternidade” da jovem cantora. Tancredo Neves faz parte essencial de nossa história e Airton Senna está perpetuado como herói nacional.

Dias antes morria um dos maiores pianistas da atualidade em termos mundiais, Nelson Freire (1944-2021). Sem exagero e sem ter o mínimo conhecimento de “leis” estatísticas, ousaria dizer que a divulgação de sua morte nesses recentes dias talvez tenha correspondido a bem menos de 0,1%, se comparada for à dispensada à morte e ao sepultamento da cantora. Nelson Freire se apresentou durante cerca de 60 anos nas mais importantes salas de concerto do planeta e foi glória absoluta de nossa arte. A perenidade certa já lhe foi garantida, pois Nelson Freire está no panteão onde só os iluminados repousam.

Resignado, cercado de amigos e familiares que o amam, meu amigo-irmão aguarda o momento de partir.

A imagem inicial, “L’arbre des morts”, da artista Jeanne Esmein, inspira-se num poema de Louis Gillaume (1907-1971) que rememora lenda nórdica, segundo a qual, à chegada do recém-nascido, plantava-se uma árvore, futuro esquife a deslizar rio baixo após a existência. A primeira estrofe…

“L’arbre funèbre atteint la pleine mer
il se croit seul quand mille autres l’entourent
offrant leur flambée obscure à la lune”

The critical condition of a friend who is like a brother to me made me think about death. I quote remarks by the noted philosopher Vladimir Jankelévitch on the subject and also comment on the public’s reception of death.