Uma sensível mensagem de François Servenière
É ciência subir os Himalaias
E criar matemática sem fim
Mas é cultura vê-la poesia
E ter os Himalaias dentro em mim.
Agostinho da Silva
Há tempos longe deste espaço, o ilustre compositor francês François Servenière soube tardiamente da morte de meu amigo-irmão, o notável musicólogo português José Maria Pedrosa Cardoso (vide blogs: “José Maria Pedrosa Cardoso”, 11 e 18/12/2021).
Admirador incondicional dos trabalhos “arqueológico-musicais” de Pedrosa Cardoso e amigo do pesquisador, escreveu uma mensagem à viúva Maria Manuela, enviando-me no ato uma cópia. Após a autorização de ambos, repasso aos leitores, pois a carta revela o apreço e a sensibilidade do músico Servenière.
“Minha estimada Manuela,
Soube nesta semana pelo José Eduardo do desaparecimento, no dia 8 de Dezembro de 2021, de nosso querido José Maria. Só apreendi essa triste notícia em fins de Janeiro, pois uma pane no meu site bloqueou a recepção de mensagens. Devido a esse percalço não recebi, durante meses, os artigos do José Eduardo, inclusive aquele em que menciona o infausto acontecimento.
Assim como José Eduardo, demorei um tempo para assimilar a notícia. Estava entre meus projetos ir a Portugal e visitar meus amigos… Soube que os grandes sinos da Universidade de Coimbra soaram longamente no dia de sua partida. Que sublime atenção para um espírito que voava naquele momento em direção ao Nirvana! Sim, José Maria e eu não éramos tão próximos, mas as relações que tivemos foram parêntesis luminosos, sinceros e crísticos, se considerarmos nossa conjuntura tão sombria. José Maria era a centelha mesmo da vida, estruturada numa espiritualidade fundamentada e senhor de uma cultura musical fenomenal, um farol para seu ser e sua obra transparecendo através de sua alegria de viver, tão evidente no fervor de seu olhar. José Eduardo me falou um pouco a respeito de sua resignação nos derradeiros tempos face à cruel prova a que a doença o obrigou. Nosso amigo brasileiro disse-me ainda que, mesmo nos estertores da vida, José Maria se preocupava com uma justa homenagem que Portugal deveria prestar ao seu pai, nascido no Minho. Prometida, essa homenagem deverá se realizar, acredito.
Reiteradas vezes meu olhar recai sobre o livro, que me foi enviado gentilmente pelo José Maria, sobre as tradições vocais em Guimarães durante a Idade Média (vide blog: “Passionário Polifônico de Guimarães”, 23/11/2013). Ele trona no meu estúdio como obra de referência, motivo de apetite e de curiosidade de todos os meus visitantes, família e colegas. Começarei em Abril os trabalhos de meu novo estúdio, magnífico projeto para o último terço de minha vida, assim espero. Findo o trabalho, colocarei o livro do José Maria em evidência na minha biblioteca, como é feito ao se expor uma obra única, mercê de um presente único… (trata-se de obra investigativa, mas de arte também, graças à publicação integral do manuscrito em cores e à dimensão do Passionário… Nota: J.E.M.). Ao mesmo tempo, como prometera a José Eduardo em e-mail anterior sobre o infausto acontecimento, devo enquadrar em patchwork numerosas fotos escolhidas entre aquelas que tenho de meus amigos do Brasil e de Portugal, José Maria, Manuela, Idalete Giga, Eurico Carrapatoso, Luca Vitali, Regina e, logicamente, José Eduardo. Os seus sorrisos do sul serão faróis para a minha criação e me indicarão o nascer do sol e seu ocaso, a estrela polar e o farol à noite, em resumo, direcionando meu espírito para a escrita musical, gravação e mixagem de minhas obras.
Clique para ouvir Natal de Elvas, canção alentejana (harmonização: Idalete Giga). Coro Capela Gregoriana Laus Deo, sob a direção de Idalete Giga:
https://www.youtube.com/watch?v=l5YnExjckwU
Externo esta minha posição, lembrando à Manuela que figuras como o notável e saudoso pintor Luca Vitali e o iluminado José Maria me foram essenciais para compreender o essencial da arte e nossos caminhos artísticos sinuosos por vezes, pois a vida é necessariamente sinuosa e não é raro explorarmos caminhos como em estado de cegueira quando em densa neblina.
Na França, o cerebral domina o coração da música. Durante nossa longa formação da escrita musical, com sólidas bases no passado, constatamos sempre a mistura incessante e não justificada com as teorias de matemáticos (tantas vezes cientistas), adeptos dos algoritmos evanescentes como única lógica da música e, mais globalmente, da arte dita ‘moderna’ ou ‘contemporânea’. Eurico Carrapatoso, por sua vez, proclama como um exorcista: ‘Darmstadt, saia do meu corpo’. Estando longe dessas preocupações, por obrigação profissional meus estudos superiores me obrigaram a trabalhar essas tendências, sem contudo aderir a nenhuma delas. Na França o ambiente intelectual está sempre voltado à Revolução, à guilhotina! E o satanismo niilista não está suficientemente distante…
Clique para ouvir, de Eurico Carrapatoso, Ó, meu Menino – Magnificat em Talha Dourada, na interpretação do Canticorum sob a direção de Rui Teixeira:
https://www.youtube.com/watch?v=2V5pwjbGpKA
Cansado das admoestações elitistas como único caminho para trabalhar a música dita ‘séria’, contatei José Eduardo em 2007, após a escuta excepcional de ‘Il Neige’, de Henrique Oswald, publicado no web. Responde-me no dia… Desde lá nós nos correspondemos semanalmente e entrei no círculo de seus amigos que ele me apresentou. Os portugueses Eurico Carrapatoso e suas sublimes músicas, que voam em direção às estrelas… Idalete Giga e seus sublimes cantos gregorianos descendo dos céus… José Maria e suas sublimes inspirações vindo do além… o também brasileiro Luca Vitali e suas visões galácticas…
Clique para ouvir, de François Servenière, o Étude Cosmique nº 4, Níquel, a partir de pintura em acrílico de Luca Vitali. Interpretação de J.E.M.:
https://www.youtube.com/watch?v=6twd8WP_9js
Por trás desses personagens notáveis havia uma constante. Todos estão sob a égide da beleza e do amor, únicos estimulantes.
Apesar de já ter quantidade de obras no meu catálogo, o início desse novo paradigma de vida coincidiu com uma nova porta em minha vida. Por ela entrei em um novo mundo, cujo endereço situava-se no Novo Mundo, da mesma maneira que um explorador coloca um novo país de coração na lista de suas peregrinações e de seus anseios, sempre a continuar sua incessante busca em direção ao horizonte fugidio. Seguindo a lógica, esse período resultou em novas obras magníficas, interpretadas sublimemente ao piano por José Eduardo.
Em 2020, José Maria presenteou-nos com uma crítica elogiosa do CD ‘Retour à l’Enfance’, produzido por José Eduardo, Johan Kennivé e por mim. Releio por vezes aquelas palavras escolhidas e algumas frases como se estivesse a observar as pegadas históricas de um musicólogo eminente que se debruça sobre nosso laborioso trabalho. José Maria permanecerá ao longo do tempo.
Querida Manuela, queria me desculpar por não tê-la contatado antes, fato a me deixar consternado. Aceite, eu lhe peço, minhas sinceras condolências pelo desaparecimento de José Maria. Tanto a Manuela como José Maria me perdoarão, talvez.
Com a minha amizade e minha tristeza, mas também com minha alegria, pois a vida é fonte de alegria.
François”. (tradução: J.E.M.).
Clique para ouvir, de François Servenière, Promenade sur la Voie Lactée, na interpretação de J.E.M.:
https://www.youtube.com/watch?v=JQDkWn1HcpQ
I publish in this blog a belated and sensitive message from the French composer François Servenière to the widow of the noted musicologist and friend José Maria Pedrosa Cardoso, with authorization from both. Touching words that testify to the dimension of his affection.
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