Willy Corrêa de Oliveira e as “canções que formam o tempo da vida”
Bom tempo mesmo aquele que imagino ter sido.
Agostinho da Silva
(“Espólio”)
No vasto repertório para piano, sempre houve espaço para um compartimento sensível, pouco frequentado pelo intérprete que desenvolve carreira. Essas criações são intimistas e acentuadamente a civilização do espetáculo prefere ouvir obras de maior impacto, a revelar as qualidades virtuosísticas do intérprete. Se as Cenas infantis de Schumann ou Children’s Corner de Debussy e outras mais são apresentadas, são exceções. Ao longo de meus 25 CDs gravados no Exterior, ficaram registradas as Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste e Zara de Francisco de Lacerda, La Boîte à Joujoux de Debussy e Música de Piano para as crianças de Fernando Lopes-Graça. Todas elas demandam a abordagem através de envolvimento singular. Se os Quadros de uma Exposição de Moussorgsky pertencem ao “grande” repertório, nem por isso esse princípio basilar lúdico deixa de estar presente em cada quadro. Imbuir-se do espírito. Estou a me lembrar de que, para a gravação da extraordinária criação de Moussorgsy, já estabelecera minha interpretação. A gravação se daria em noite invernal na Capela Saint Hilarius, em Mullem (2003). Contudo, na manhã a anteceder o registro fui respirar em praça na bela cidade de Gent. Sentado, presenciei crianças brincando. Corriam, paravam, mudavam o roteiro, diminuíam as passadas ou saíam em desabalada carreira. Naquele instante, veio-me a ideia de mudar a interpretação de Tuilleries, que estabelece no subtítulo essa algazarra infantil. À noite, dei inflexões pertinentes, comportando rubatos que representam essa flexibilização do andamento, pois são crianças a brincar e não militares em marcha.
Recife, infância: espelhos… insere-se nesse vasto repertório lúdico. Willy Corrêa de Oliveira apreende o âmago da interioridade de um miúdo através da revisitação à sua infância em Recife: “Me decidi por repertoriar as músicas que aprendi na infância: as primeiras que a gente canta; cantarola sem saber por quê. Aquelas canções que formam o tempo da vida, de um realismo assustador: ninguém jamais pediu para apreendê-las. Elas, sim, se estabelecem em nós (e desafiam críticas e indagações futuras) e preparam-nos, de algum modo, para recebermos todas as músicas que virão depois. As que a gente buscou. As que escolhemos para reter”. Indelevelmente retidas, aquelas canções podem ser decisivas. Willy confessa que as melodias não têm forçosamente geografia precisa.
Antolha-se-me que a incursão musical nesse universo da infância pode ter várias vertentes. Willy escolheu a mais sincera. Auscultou sons que não se perderam tantas décadas passadas. Melodias populares, do folclore, partilhadas por tantas outras crianças, mas que ficaram hibernadas na mente de Willy. Todo o acervo advindo do aprofundamento concentrou-se na síntese da síntese da composição. Evita propositadamente vestígios de virtuosismo e extensão. Desculpa-se “pela brevidade de algumas peças. Não há mesmo quase tempo de ouvi-las, reconheço. Mas eu não queria, de maneira alguma, ‘trabalhá-las’ em demasia: eram momentos fundamentais suficientes”.
Reconhece Willy que vasculhar o longínquo passado não é realizado sem dificuldades. Luiz Guimarães Júnior ((1844-1898), em Visita à Casa Paterna, presencialmente poetisa: “Resistir quem há-de? / Uma ilusão gemia em cada canto, / Chorava em cada canto uma saudade”. A revisita mental aos sons ouvidos nos primeiros anos merece uma abordagem de resgate de sensações antagônicas, quiçá. Moussorgsky relata na maturidade que se lembrava das histórias russas contadas pela babá, que por vezes o impediam de dormir. Willy confessa “… que o trabalhar com estas canções foi difícil. Foi como enfrentar, sozinho, assombrações no sótão. Mas também o alívio de ter podido dizer a todas, uma por uma, que não me amedrontavam mais. Tudo se passou como se fosse um encontro do homem maduro com o menininho que era ele mesmo num espaço-tempo (em Recife). Um encontro intenso que o espelho de Tarkowski havia propiciado, uma reconciliação de tal modo bem-aventurada entre o homem maduro e o menininho (que era ele mesmo, em Recife) que não havia mais irritação, nem incômodo pelas suas criancices. As peças foram, sim, escritas com a tinta da melancolia, ‘a melancolia das coisas eternas’… mas não com a saudade (que é por ‘coisas findas’)”.
Debruçar-se sobre Recife… foi para mim um repensar a minha própria infância, essa cercada não pelas canções dos folguedos, mas por aquelas registradas em partituras “eruditas”. Carinhosamente estudei o caderno do Willy, buscando penetrar nesse mundo mágico, único, de uma outra infância. Sentir, a partir do toque dos dedos no teclado, a singeleza que transparece na magia que Willy imprime a essas canções de cariz popular, calou-me fundo. O leitor-ouvinte saberá reconhecer algumas melodias tão sensivelmente trabalhadas na essência essencial da simplicidade.
Apresentei Recife, Infância: Espelhos… em audição no Conservatório do Brooklin, dirigido pelo saudoso Sígrido Levental, em 1990, num recital inteiramente dedicado às composições para piano de Willy Corrêa de Oliveira. Emoção nunca olvidada.
Meu dileto amigo Elson Otake tem, há mais de uma década, introduzido minhas gravações no Youtube. A coletânea poderá ser seguida através da partitura. Sugeriu a colocação do texto introdutório integral de Willy para Recife… Minha querida amiga Jenny Aisenberg cuidou da versão para o inglês, a fim de facilitar outras leituras. Guardou as características intimistas propostas pelo compositor.
Clique para ouvir, de Willy Corrêa de Oliveira, Recife, Infância: Espelhos, na interpretação de José Eduardo Martins:
https://www.youtube.com/watch?v=5KlT7_VPp88
“Recife, Infância: Espelhos…” is a magical work. Willy Corrêa de Oliveira travels to the past and rescues popular songs retained in his memory. It is a simple, unassuming work, admirable in its conception. A collection that will remain in the musical literature intended for the ludic universe.