Aspectos da edificação de um músico

El artista que ejecuta profesionalmente el piano,
o cualquier otro instrumento musical,
debe antes que nada dominar en todos sus detalles
tanto el instrumento como la obra que ejecuta.
Jaime Ingram

Continuo a anotar determinados questionamentos sobre a formação do músico desde a origem. Há abundante literatura que aborda a complexa atividade sob várias facetas e já dediquei diversos posts à temática. Tem havido uma aceleração dessas dúvidas, mormente após desfilar, ao longo dos anos, uma quantidade significativa de grandes mestres do teclado do passado, que tem propiciado uma guarida acolhedora por parte dos leitores.

Uma das dúvidas bem colocada por diversos leitores é a da nomenclatura que por vezes emprego a “diferenciar” músico e virtuose. Na realidade, ao mencionar o termo virtuosidade, deixaria claro que todos os grandes mestres elencados neste espaço a tem. Não obstante, há alguns que a possuem no mais alto nível devido a vários motivos e, para tanto, figuraram entre os pianistas homenageados Vladimir Horowitz, Josef Hofmann, Shura Cherkassky, Jorge Bolet, Andor Foldes…Todos causaram admiração pelas performances absolutas sob o plano da técnica pianística, além de terem sido grandes músicos. Como entender a transcendente técnica de György Cziffra, um autodidata na infância e que, em campo de concentração durante a 2ª Grande Guerra, durante bom período teve que transportar pedras de 30 quilos ou mais, motivo que o levaria a utilizar munhequeira na futura carreira de pianista?

Gisèle Brelet afirmaria que “há uma qualidade particular do virtuose independente dos dons propriamente musicais: a necessidade e o gosto pela exteriorização. Parece-me que a obra, uma vez apreendida musicalmente,  pode ser interpretada tanto pelo músico como pelo virtuose. Ao músico bastam a estrutura ideal da obra e a sonoridade na indeterminação de suas possibilidades. E ele interpreta, tentando salvaguardar essa estrutura ideal que seu pensamento contemplou, não buscando realizar uma execução particular, mas conduzindo-a até o extremo limite do concreto e a completa determinação qualitativa” (“L’Intérpretation Créatrice”, 1951).  Na maturidade, tanto o músico intérprete ou o virtuose não desprovido de musicalidade serão respeitados. Seria possível acreditar que o primeiro se voltará preferencialmente à interiorização e Wilhelm Kempff, Alfred Cortot, Dinu Lipatti e Clara Haskil são exemplos nítidos, enquanto que os elencados anteriormente causam estupefação através do desempenho como virtuoses.

Clique para ouvir, de Schubert, o Improviso op. 90, nº 3, na interpretação de Dinu Lipatti:

https://www.youtube.com/watch?v=NganWOe8yTc

Clique para ouvir, de Moskowsky, Étincelles, na interpretação de Vladimir Horowitz:

https://www.youtube.com/watch?v=X27N_svVPok

Perguntas chegaram nesses anos a respeito da memória e o porquê de determinados intérpretes terem repertórios imensos e memorizados. Há muitos estudos a respeito e pontuo dois do Dr. André François Arcier (Le Trac: Le comprendre pour mieux l’appprivoisier Le trac: stratégies pour le maîtriser, 1998 e 2004, respectivamente) que pormenoriza o tema, mormente quanto à possibilidade do “branco” – falha da memória -, entre tantos mais referentes às tensões várias do intérprete de diversos instrumentos (vide blog “O medo do palco – Problemática e possíveis soluções”, 04/10/2008). Sim, há intérpretes com memórias prodigiosas e mencionei diversos pianistas superdotados nesse quesito: José Vianna da Motta, Jean Doyen, Claudio Arrau, Wilhelm Backhaus, Arthur Rubinstein, Friederich Gulda e tantos outros. A leitura à primeira vista se aprende desde os primórdios. Ela é essencial para o instrumentista. Já a retenção do repertório na memória tem graduações, pois há aqueles que memorizam normalmente e, em menor número, alguns superdotados que retêm na memória quantidade incalculável de composições, podendo ser acionadas quando necessário, sem equívocos. O pianista português Vianna da Motta (1868-1948), em uma das nove turnês pela América do Sul, interpretou mais de 100 obras memorizadas. Retinha as 32 Sonatas de Beethoven, o Cravo bem Temperado de J.S. Bach e parte considerável do repertório romântico. Eu estudava em Paris nas fronteiras das décadas 1950-60 e falava-se que Arthur Rubinstein (1887-1982) apresentara sequencialmente, em Paris, 17 recitais diferentes em pouco mais de três semanas, todos memorizados. A memória de Claudio Arrau abrangia basicamente as integrais de J.S.Bach, Mozart, Beethoven, Schumann…

O tema menino prodígio igualmente pontuou questionamentos. Os primórdios do aprendizado são tão diversos. Há aqueles, geralmente filhos de músicos, que o iniciam quase no berço e, se dons existirem – a genética pode ser determinante -, ainda na idade edipiana já se apresentam em público para gáudio de plateias embevecidas. Se qualidades inalienáveis existirem, esses futuros intérpretes poderão ser impelidos, mercê de suas aptidões voltadas à exteriorização ou não, a desenvolver suas atividades em torno de repertórios determinados.

Quantos dos pianistas elencados não foram precoces, mas nem todos. Se alguns já se apresentam ainda no primeiro lustro, outros mais farão sua estreia após o segundo. Estou a me lembrar de que minha mestra, a legendária pianista francesa Marguerite Long, dizia que o ideal é a criança ter a iniciação antes dos 10 anos, pois após a estrutura muscular já estaria menos maleável. Por vezes, a precocidade excessiva pode trazer traumas, como o que acometeu a pianista norte-americana de origem polonesa Ruth Slenczynska (1925- ), que em seus programas de concerto inseria ter sido forçada a estudar exaustivamente desde a tenra idade (vide blog: “A criança prodígio frente à interpretação musical e à vida”, 14/06/2014).

Se pontuo alguns tópicos relacionados aos questionamentos recebidos, impossível esgotá-los. Terei prazer em abordá-los proximamente. Faço minhas as palavras do ilustre pianista panamenho Jaime Ingram (1928- ): “no me veo haciendo frente a la vida sin la compañía del piano y la música”.

Writing about great pianists of the past over the years, I took note of many questions received from readers. Today I comment on some of such questions.