Navegando Posts publicados em maio, 2022

Willy Corrêa de Oliveira e as “canções que formam o tempo da vida”

Bom tempo mesmo aquele que imagino ter sido.
Agostinho da Silva
(“Espólio”)

No vasto repertório para piano, sempre houve espaço para um compartimento sensível, pouco frequentado pelo intérprete que desenvolve carreira. Essas criações são intimistas e acentuadamente a civilização do espetáculo prefere ouvir obras de maior impacto, a revelar as qualidades virtuosísticas do intérprete. Se as Cenas infantis de Schumann ou Children’s Corner de Debussy e outras mais são apresentadas, são exceções. Ao longo de meus 25 CDs gravados no Exterior, ficaram registradas as Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste e Zara de Francisco de Lacerda, La Boîte à Joujoux de Debussy e Música de Piano para as crianças de Fernando Lopes-Graça. Todas elas demandam a abordagem através de envolvimento singular. Se os Quadros de uma Exposição de Moussorgsky pertencem ao “grande” repertório, nem por isso esse princípio basilar lúdico deixa de estar presente em cada quadro. Imbuir-se do espírito. Estou a me lembrar de que, para a gravação da extraordinária criação de Moussorgsy, já estabelecera minha interpretação. A gravação se daria em noite invernal na Capela Saint Hilarius, em Mullem (2003). Contudo, na manhã a anteceder o registro fui respirar em praça na bela cidade de Gent. Sentado, presenciei crianças brincando. Corriam, paravam, mudavam o roteiro, diminuíam as passadas ou saíam em desabalada carreira. Naquele instante, veio-me a ideia de mudar a interpretação de Tuilleries, que estabelece no subtítulo essa algazarra infantil. À noite, dei inflexões pertinentes, comportando rubatos que representam essa flexibilização do andamento, pois são crianças a brincar e não militares em marcha.

Recife, infância: espelhos… insere-se nesse vasto repertório lúdico. Willy Corrêa de Oliveira apreende o âmago da interioridade de um miúdo através da revisitação à sua infância em Recife: “Me decidi por repertoriar as músicas que aprendi na infância: as primeiras que a gente canta; cantarola sem saber por quê. Aquelas canções que formam o tempo da vida, de um realismo assustador: ninguém jamais pediu para apreendê-las. Elas, sim, se estabelecem em nós (e desafiam críticas e indagações futuras) e preparam-nos, de algum modo, para recebermos todas as músicas que virão depois. As que a gente buscou. As que escolhemos para reter”. Indelevelmente retidas, aquelas canções podem ser decisivas. Willy confessa que as melodias não têm forçosamente geografia precisa.

Antolha-se-me que a incursão musical nesse universo da infância pode ter várias vertentes. Willy escolheu a mais sincera. Auscultou sons que não se perderam tantas décadas passadas. Melodias populares, do folclore, partilhadas por tantas outras crianças, mas que ficaram hibernadas na mente de Willy. Todo o acervo advindo do aprofundamento concentrou-se na síntese da síntese da composição. Evita propositadamente vestígios de virtuosismo e extensão. Desculpa-se “pela brevidade de algumas peças. Não há mesmo quase tempo de ouvi-las, reconheço. Mas eu não queria, de maneira alguma, ‘trabalhá-las’ em demasia: eram momentos fundamentais suficientes”.

Reconhece Willy que vasculhar o longínquo passado não é realizado sem dificuldades. Luiz Guimarães Júnior ((1844-1898), em Visita à Casa Paterna, presencialmente poetisa: “Resistir quem há-de? / Uma ilusão gemia em cada canto, / Chorava em cada canto uma saudade”. A revisita mental aos sons ouvidos nos primeiros anos merece uma abordagem de resgate de sensações antagônicas, quiçá. Moussorgsky relata na maturidade que se lembrava das histórias russas contadas pela babá, que por vezes o impediam de dormir. Willy confessa “… que o trabalhar com estas canções foi difícil. Foi como enfrentar, sozinho, assombrações no sótão. Mas também o alívio de ter podido dizer a todas, uma por uma, que não me amedrontavam mais. Tudo se passou como se fosse um encontro do homem maduro com o menininho que era ele mesmo num espaço-tempo (em Recife). Um encontro intenso que o espelho de Tarkowski havia propiciado, uma reconciliação de tal modo bem-aventurada entre o homem maduro e o menininho (que era ele mesmo, em Recife) que não havia mais irritação, nem incômodo pelas suas criancices. As peças foram, sim, escritas com a tinta da melancolia, ‘a melancolia das coisas eternas’… mas não com a saudade (que é por ‘coisas findas’)”.

Debruçar-se sobre Recife… foi para mim um repensar a minha própria infância, essa cercada não pelas canções dos folguedos, mas por aquelas registradas em partituras “eruditas”. Carinhosamente estudei o caderno do Willy, buscando penetrar nesse mundo mágico, único, de uma outra infância. Sentir, a partir do toque dos dedos no teclado, a singeleza que transparece na magia que Willy imprime a essas canções de cariz popular, calou-me fundo. O leitor-ouvinte saberá reconhecer algumas melodias tão sensivelmente trabalhadas na essência essencial da simplicidade.

Apresentei Recife, Infância: Espelhos… em audição no Conservatório do Brooklin, dirigido pelo saudoso Sígrido Levental, em 1990, num recital inteiramente dedicado às composições para piano de Willy Corrêa de Oliveira. Emoção nunca olvidada.

Meu dileto amigo Elson Otake tem, há mais de uma década, introduzido minhas gravações no Youtube. A coletânea poderá ser seguida através da partitura. Sugeriu a colocação do texto introdutório integral de Willy para Recife… Minha querida amiga Jenny Aisenberg cuidou da versão para o inglês, a fim de facilitar outras leituras. Guardou as características intimistas propostas pelo compositor.

Clique para ouvir, de Willy Corrêa de Oliveira, Recife, Infância: Espelhos, na interpretação de José Eduardo Martins:

https://www.youtube.com/watch?v=5KlT7_VPp88

“Recife, Infância: Espelhos…” is a magical work. Willy Corrêa de Oliveira travels to the past and rescues popular songs retained in his memory. It is a simple, unassuming work, admirable in its conception. A collection that will remain in the musical literature intended for the ludic universe.

Um toque pianístico que seduz pela sinceridade

O piano é realmente um instrumento maravilhoso.
De certa forma, não é apenas o mais sofisticado,
mas também
o mais transcendental de todos os instrumentos,
pois obriga o intérprete a não confiar apenas na técnica,
como muitos ainda pensam,
mas na sua imaginação criativa
quase até o estado de feitiçaria.
O paradoxo reside no fato
de que a voz do piano
morre no momento do nascimento.

Lili Kraus

Um leitor atento me pergunta se outros pianistas sofreram as agruras em campos de concentração como György Cziffra, tema de três posts em Abril de 2021, mas mencionado no post anterior. A saga de Cziffra é narrada em “Des Canons et de Fleurs”, assim como a da pianista chinesa Zhu Xiao-Mei, que passou anos em campos de “reeducação” durante a Revolução Cultural imposta por Mao Tsé-Tung, relatando as vicissitudes no pungente “La Rivière et son secret” (vide blog: 06/11/2009). Como não se lembrar da quantidade de músicos judeus que, reclusos, após se apresentarem durante certo tempo nos campos de concentração de Terezin era exterminados antes da chegada de outros mais? Lá morreram os compositores Viktor Ullmann e o promissor Gideon Klein, assim como intérpretes de música de câmara, pianistas,  artistas plásticos… A pianista Alice Herz-Sommer (1903-2014), foi uma das sobreviventes desse campo nazista.

Lilly Kraus, pianista nascida na Hungria, também esteve prisioneira em campo de concentração em Jacarta durante a ocupação japonesa, entre Junho de 1943 a Agosto de 1945. Segmento de sua narrativa tem interesse: “Parece-me que a minha felicidade durante apresentações é facilmente compreensível, uma vez que, durante quatro anos, não toquei piano. Nem sequer tive a oportunidade de ver qualquer partitura entre 1942 e 1945. Estávamos em Jacarta numa digressão de concertos em 1940. Ninguém supunha uma invasão japonesa em Java (hoje Indonésia), mas eles ocuparam o território. De certa forma, éramos prisioneiros em Jacarta antes do nosso encarceramento efetivo. O Anschluss (anexação da Áustria) degradou a Áustria civilizada a um estado de distrito policial provincial alemão, mercê da brutal ‘conquista’ de Hitler. Embora  meu marido, Dr. Otto Mandl, fosse austríaco, foi-nos impossível regressar à Áustria por vários motivos. Primeiro, pela razão de meu marido ser judeu; segundo, pelo fato de que todos os austríacos vivendo em seu país ou no estrangeiro – no nosso caso, na Itália – deviam trocar seus passaportes, tornando-se dessa maneira automaticamente alemães. A aliança Hitler-Mussolini tornou os italianos ‘dependentes’ da Alemanha; por isso, as autoridades de Milão nos escreveram inúmeras cartas, solicitando a troca de nossos passaportes”. Todas essas vicissitudes, narradas com tintas sombrias, mas esperançosas, pela pianista, apenas dimensionariam suas interpretações futuras.

Clique para ouvir, de Mozart, a Sonata em Dó Maior, K. 330

https://www.youtube.com/watch?v=LKAT5MNV1b8

Lily Kraus teve brilhante carreira. Sua formação na Academia de Música Franz Liszt e após no Conservatório de Budapeste foi sólida. Teve como mestres Zoltán Kodaly e Béla Bartók. Prosseguiu seus estudos em Viena com Eduard Steuermann e a seguir com Arthur Schnabel em Berlim. Aprimoramento dentro das bases autênticas da tradição pianística.

Sua dedicação às criações de Mozart e Beethoven, entre outros autores, fizeram-na reconhecida internacionalmente. Apresentações pela Europa, Austrália, Japão e África do Sul dos anos 1930 sedimentaram seu nome entre os destacados pianistas do período. Foi justamente numa turnê pela Ásia na década de 1940 que os infortúnios mencionados acima aconteceram.

Logo após a guerra, Lili Kraus se estabeleceu na Nova Zelândia, onde se tornou cidadã neozelandesa, lecionando e a prosseguir com sua carreira internacional. Suas apresentações públicas privilegiavam preferencialmente as criações de Mozart e Beethoven, e suas aparições frente às orquestras mais renomadas davam guarida aos Concertos para piano e orquestra desses notáveis compositores. Como camerista, igualmente realizou ciclos destacando integrais desses autores.

Seu marido Otto Mandl (1889-1956) deixou de atuar em suas atividades comerciais para se dedicar à carreira da esposa, não abandonando sua dedicação à filosofia.

Clique para ouvir, de Mozart, o Concerto K 414 em Lá Maior, na interpretação de Lili Kraus:

https://www.youtube.com/watch?v=e8MzjKllWCY

Em 1953, minha mulher, pianista Regina Normanha Martins, participando do First Juniors Bach Festival, Berkeley Califórnia, teve a oportunidade de ouvir dois recitais de luminares do piano, Egon Petri (vide blog Egon Petri, 08/05/2021) e Lili Kraus. Lembranças inefáveis ficaram retidas para sempre.

Para o ouvinte, as interpretações de Lili Kraus, após tantas agruras em período de Guerra, transmitem uma transparência, diria, uma generosidade em suas gravações. Tudo é claro, sem exageros, transparecendo sempre uma naturalidade impecável.

Deixemo-la traduzir impressões duradouras: “Mozart deu esse dom de doçura, que é tão extraordinário porque nasceu da tragédia. Preencho uma afinidade com Mozart porque ele, tal como eu, tinha uma sensibilidade quase insuportável para todos os sofrimentos à sua volta, se me atrevo a falar no mesmo fôlego, a fazer minhas essas afirmações utilizando o seu nome. Agora, para poder suportar a dor, o querido Senhor deu-nos um antídoto com capacidade para uma tremenda serenidade, humor e alegria que conduzem à felicidade; no sentido contrário, não seria possível  suportar o sofrimento”.

Lili Kraus was a “survivor” of a concentration camp in Java during the Japanese occupation in the years 1943-45. A remarkable pianist, expert in the works of Mozart and Beethoven, among other composers, her performances radiate spontaneity and, I would say, an interpretative joy.

 

 

Dúvidas que pairam a partir da atualidade cultural nebulosa

Desfrute sempre do presente com discernimento,
assim o passado te será uma bela lembrança
e o futuro não será um espantalho
Franz Schubert

Estava a fazer compras rotineiras em supermercado de minha cidade-bairro, Brooklin–Campo Belo, e em certo momento um jovem me pergunta se eu era quem ele pensava. À resposta afirmativa veio a razão da pergunta, pois sua professora aconselhara-o a seguir meus blogs hebdomadários e a ouvir minhas gravações no Youtube. Através das imagens me reconheceu. Confesso que fiquei feliz, pois raramente ouço pergunta semelhante, mormente pelo fato de ter verdadeira idiossincrasia pela mídia atual por motivos vários, que vão da sentida decadência cultural em nosso país, da ausência de artigos ou da crítica musical especializada, tão operante até pouco mais de meio século atrás, da sentida diminuição de público para os recitais de música erudita ou de resistência e pelas transformações ditadas pelos costumes, graças em grande parte à ascensão vertiginosa dos aplicativos internéticos que, se ostentam por vezes temática de boa qualidade, dedicam-se principalmente às insignificâncias. Todas essas mutações que impactam a sociedade desestimulam acentuadamente as apresentações públicas no Brasil, principalmente os recitais solo e a música de câmara.

Os avanços tecnológicos, que fizeram desaparecer do mercado os discos 78 rotações, os LPs e condenaram à morte os CDs, conduzem o ouvinte ao fugaz, aos aplicativos e, através desses, é possível verificar a estratosférica diferença de acesso à denominada música de concerto e  a outras tantas modalidades voltadas ao público que lota os grandes espaços públicos. É fato que todos os hits que granjeiam milhões de acessos rapidamente são substituídos. Não poucas vezes abordei esse tema.

Estou a me lembrar de um recital que apresentei em Belém do Pará, integrando uma semana de recitais e concertos que a cidade programara na década de 1990. No mesmo hotel estavam hospedados dois insignes músicos, a pianista Yara Bernette e o violoncelista Antônio Del Claro. Numa das noites, no terraço do hotel, nós três conversávamos e Bernette, que vivera décadas na Alemanha, onde atuou como professora catedrática de piano da Escola Superior de Música da Universidade de Hamburgo, asseverou que o recital solo estava com os anos contados e que apenas alguns intérpretes com patrocinadores e mídia acoplada ainda levariam público maior (vide blog: Yara Bernette – 1920-2002, 12/12/2020).

A ilustre musicóloga francesa Danièle Pistone, após observar que “o recital se encontra em dificuldade”, continua a dizer: “No momento em que desaparecem os ‘monstros sagrados’, quando se impõe ‘o fim do sacerdócio’, quando o ensino se torna o ‘descarrego normal’ e quando a evolução da música gravada é ainda mal controlada, no momento em que os pianistas franceses nem sempre são bem apreciados em seu país, necessário se faz salientar como esses intérpretes se sentem solitários e, talvez, nem sempre felizes” (“Pianistes du XXe siècle – Critique, pédagogie, interprétation”. Textes reunis et édités par Danièle Pistone. Université de Paris-Sorbonne, 2007).

Essas considerações me fazem retroagir e pensar nos excelentes mestres que São Paulo abrigou cerca de 70 anos atrás e em uma plêiade de jovens pianistas, entre os quais diversos se salientaram no Brasil e internacionalmente. Três, entre outros mais professores, se destacavam: José Kliass e os pianistas professores Sousa Lima e Fritz Jank. Em seu livro “Os últimos intelectuais”, o professor de história da Universidade da Califórnia  Russel Jacoby escreveu que a entrada de respeitados mestres nas universidades fê-los, em parte, perder esse convívio extramuros e uma de suas frases é aguda: “Quando por fim a posição requerida e a segurança forem atingidas, o talento, e até o desejo de pensar intrepidamente há muito terá atrofiado” (vide blog: “Os últimos intelectuais”. 21/03/2009).

Clique para ouvir, de Jean-Philippe Rameau, “Les Cyclopes”, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=c7lyY0pBRkU

Teria sido após a Segunda Grande Guerra que as maiores transformações da história da humanidade se processaram devido à tecnologia. Para as gerações mais novas, a aceleração relativa às inovações é mais facilmente assimilada. Num paralelismo real, as transformações da sociedade igualmente estão em curso acelerado. As artes e a música se inserem nesse processo. No caso da música erudita ou de concerto, assiste-se a uma proliferação de tendências “composicionais” jamais vista na história. Nesse vastíssimo repertório novo, quantas não são as obras que só conhecerão uma única apresentação, se tiverem a chance de uma première. O insigne compositor francês Serge Nigg (1924-2008) já dizia que, se no passado conhecia músicos das mais variadas áreas, no seu presente, ironicamente, preponderavam os “compositores”, mercê dos caminhos individuais “criativos”.

O encontro com o jovem que fez a pergunta que me surpreendeu levou-me à reflexão. Há dois anos e meio sem tocar em público graças à pandemia e, sob outra égide, sendo infenso às interpretações online, o gesto do rapaz foi recebido com simpatia. Um jovem a ouvir e a praticar a música clássica ou de concerto. Esperanças…

A young man asked me in a supermarket in my neighborhood if I was the pianist José Eduardo Martins. His question was the starting point for a few reflections on the decline of classical music.