Os livros do notável compositor
Eu serializo instantes musicais das músicas de todos os gêneros,
estilos, épocas, lugares. E componho em cima.
Uma música experimental, mas à minha maneira.
Um experimento com linguagens, combinatório,
visando uma nova linguagem para um momento novo,
atemporal e globalizado.
Gilberto Mendes
(“Viver sua Música – com Stravinsky em meus ouvidos, rumo à avenida Nevsky”. 1994)
No âmbito do Festival Gilberto Mendes, que festeja o centenário de seu nascimento, está programado para hoje, dia 14 de Outubro às 18:30, no Teatro Guarany, em Santos, um “bate-papo” sobre a obra literária de Gilberto e seu legado nessa área sensível. Flávio Viegas Amoreira, Manuel da Costa Pinto, Márcio Barreto e Zé Tahan irão expor suas posições sobre o importante legado literário de Gilberto Mendes. Haverá igualmente o lançamento do livro do escritor, poeta e crítico literário Flávio Viegas Amoreira, “Gilberto Mendes – Notas Biográficas” (2ª edição). Sinto-me honrado de ser autor do posfácio “Gilberto Mendes frente ao intérprete – Estímulo, ideia, criação e interpretação” (Santos, Imaginário Coletivo, 2022).
Quatro obras do notável músico santista foram resenhadas neste espaço (“Uma Odisséia Musical – dos mares do sul à elegância pop/art déco”. São Paulo, Edusp-Giordano, 1994, 13/10/2007; “Viver sua Música: com Stravinsky em meus ouvidos, rumo à avenida Newsky”. Santos-São Paulo, Realejo-Edusp, 2008, 04/04/2009; “Danielle em Surdina, Langsam”. São Paulo, Algol, 2013. 06/04/2013; “Os dois amigos entraram finalmente na Rua Borges. Santos, Realejo, 2019. 10/07/2021).
É notório o caminho seguido por Gilberto ao longo de seus livros. Sem ter sido um teórico autor de tratados, mas frequentando diversas tendências composicionais, como poderia se deter em determinada técnica se o dom maior de Gilberto era a curiosidade, o encantamento pelo que se lhe apresentava, não apenas os processos de alguns de seus coetâneos ilustres, mas também de músicas que ouvia vindas de outras geografias e que o seduziam. Nos nossos tempos uspianos quantas não foram as vezes em que me alertou contra as igrejinhas, núcleos de compositores que produzem e se satisfazem nos guetos. Gilberto não se indispunha contra correntes, era um cidadão em paz.
Estou a me lembrar da trajetória do primeiro livro. Estávamos em 1990 e um certo dia Gilberto confessa que gostaria de se aposentar tendo defendido uma tese. Àquela altura a aposentadoria se dava aos 70 anos. Sugeri-lhe escrever sobre o seu caminho tão luminoso. Hesitou inicialmente, mas lentamente iniciou o exaustivo trabalho acadêmico. Insisti que, sendo tão imensa a sua posição na música brasileira, bastaria a narrativa exata dos fatos, almejos, criações e relacionamentos acumulados durante a existência. Confessar-me-ia, reiteradas vezes, que a exaustão o acometia e que não fosse a prestimosa colaboração de Eliane, sua dedicadíssima esposa, dificilmente teria forças para a recolha e seleção de vasto material. A redação iniciada por vezes era interrompida. O tempo a passar e por vezes este amigo a telefonar pedindo-lhe seguir escrevendo. Em duas ou três oportunidades evidenciou discreto incômodo com os meus apelos. Sabia eu da importância de sua tese para a literatura musical brasileira. Enfim, no limite do tempo defendeu-a com brilhantismo e eu tive o privilégio de estar na banca examinadora que contou, entre outros professores relevantes, com a presença do ilustre poeta, tradutor e crítico literário Haroldo de Campos.
Meses após Gilberto me diz que ficaria muito feliz de ver sua tese publicada. Procurei a diretoria da EDUSP. Disseram-me que o meu livro “Henrique Oswald – músico de uma saga romântica” tinha sido aprovado pela Comissão Editorial. Afirmei que esse poderia esperar e que urgia a aprovação – impossível não acontecer – do livro do Gilberto Mendes. Submetido à primeira reunião a seguir as conversações, foi aprovado e publicado em 1994 (Edusp-Giordano). Quanto ao meu Henrique Oswald, a publicação se daria no ano seguinte. Como não se comover com as palavras de Gilberto na página dos agradecimentos de “Uma Odisséia Musical – dos mares do sul à elegância pop/art déco”, livro fruto da tese de doutorado: “Especialmente a José Eduardo Martins, que conseguiu extrair de mim este trabalho. Sem o seu incentivo não o teria feito”.
Quatro anos mais tarde a Edusp publicaria “Viver sua Música: com Stravinsky em meus ouvidos, rumo à avenida Newsky”. Se na “Odisséia…” Gilberto revela um sem número de recordações, musicais ou não, que são fundamentais para o entendimento de período efervescente da criação musical no Brasil, com várias correntes por vezes se antagonizando, em “Viver sua Música”, liberto de certas amarras necessárias “impostas” para uma tese acadêmica, Gilberto continua a rememorar, mas encantam-no sobremaneira as terras andadas, seus personagens, sejam ilustres ou não. Um segmento me sensibilizou, revelador de uma das qualidades essenciais de Gilberto, a ternura e a imediata associação a um de seus ídolos, Stravinsky. Estando em Moscou, um dos locais icônicos visitados dentre o imenso campo geográfico percorrido, mormente quando teve obras apresentadas, ele registra:
“A maior emoção minha, nos meus dias de Moscou, foi no passeio a um campo de pioneiras, como eram chamadas as adolescentes que ali passavam parte das férias, no verão, em meio às características datchas dos arredores da cidade. Duas meninas me pegaram pelas mãos e me levaram para mostrar as variadas dependências do acampamento. Paramos num barracão para assistir um pouco ao teatrinho de fantoches que estava sendo representado. E eis que entra em cena, de repente, um novo boneco, e uma das meninas, apontando o palco, exclama, toda feliz: Petruchka! (Petruchka é uma boneca. Петрушка em russo. Ballet de Stravinsky composto em 2011. Nota J.E)
Foi um momento epifânico, de êxtase, ouvir esse nome mágico, emblemático, na voz de uma menina russa ao meu lado, segurando minha mão, na própria Rússia! O momento em que me senti realmente, profundamente, no coração da Santa Rússia de Stravinsky, de Dostoievsky, Eisenstein, do Poema Pedagógico de Makarenko!”
Nonagenário, Gilberto tudo dissera, ou quase tudo. Sente-se livre e a imaginação sobrevoa outros domínios que jamais dele se separaram desde os primeiros anos, como o encantamento pela invenção. E surgem pequenos livros, depositários de histórias outras decorrentes da inventiva. Nessa senda encantatória renova o prazer criativo. Surgem: “Danielle em Surdina, Langsam” (2013) e “Os dois amigos entraram finalmente na Rua Borges” (2019), sendo que os fatos narrados nesse último ele vivenciou, mesmo não sendo um dos personagens.
Gilberto Mendes permanecerá. Apesar do breve recuo do tempo, foi imensa a sua contribuição para a música brasileira. Metaforicamente comparo-o ao navegante que permanece temporariamente em portos determinados. Em cada escala Gilberto absorveu e criou, a atender sua admiração por determinada tendência, mas a curiosidade fê-lo navegar e tantas outras tendências, assimiladas em cada porto, o encantariam e levariam a novas criações. Essa descontração criativa, fruto da perene curiosidade, tornou-o um amante das obras dos grandes mestres da música erudita do passado, mas igualmente um admirador das big-bands norte-americanas, da autêntica música popular brasileira e de ritmos de outros portos. Sempre a navegar no imaginário, Gilberto jamais deixou de ter em sua bússola a direção ao porto seguro, sua Santos eterna nos braços de “minha mulher Eliane, que se tornou uma segunda mãe”.
É Gilberto Mendes o nome maior de nossa música a partir da metade do século XX? É-o, na medida em que frequentou com competência várias das tendências composicionais vigentes. É-o por ter, como todos os grandes mestres, imprimido suas impressões digitais em todas as suas criações. É-o no resultado auditivo, pois, assim como os grandes de antanho, sabe-se que tal composição é de Gilberto Mendes.
Aproveito o post atual para anunciar o recital que se dará no Ateneu Paulistano, em São Paulo, no sábado dia 22, oportunidade em que será apresentado o livro de Flávio Viegas Amoreira, mencionado no início deste. A anteceder o recital, o literato santista tecerá considerações sobre o conteúdo de seu livro.
Going on with the celebrations of composer Gilberto Mendes’ birth centennial, there will be on the 14th, at Guarany Theatre in Santos, a round table on Gilberto’s literary work. In this post I make comments about his four books, all of them reviewed in this space over the years. I also announce the recital that I will give on the 22nd of this month at the Ateneu Paulistano in São Paulo, on which occasion the book written by Flávio Viegas Amoreira, “Gilberto Mendes – biographical notes”, will be launched, with a postscript signed by me describing the 30 pieces that Gilberto Mendes dedicated to me during our intense friendship. I have presented them in several European countries.
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