Navegando Posts publicados em outubro, 2022

Santos festeja seu compositor maior

Estilo é técnica. Uma técnica serve a um só estilo, do qual é consequência.
Ou bem ou mal, com muito ou pouco estudo das técnicas
– vale dizer estilos –
de composição, acabaremos, através do trabalho constante, adquirindo, construindo nosso estilo,
nossa técnica particular para esse estilo.
Gilberto Mendes
(“Uma Odisséia Musical – dos mares do sul à elegância pop/art déco”, São Paulo, Edusp – Giordano, 1994)

As comemorações em torno do centenário de Gilberto Mendes são motivo de orgulho para o Brasil, pois Gilberto Mendes foi sem dúvida um dos mais importantes compositores pátrios da segunda metade do século XX. Livre das amarras que o poderiam aprisionar a uma só corrente musical, Gilberto Mendes navegou por várias técnicas composicionais. Academicismo inicial, rigor dos ensinamentos aprendidos em Darmstadt, minimalismo e, a preponderar, o amor ao descortino das correntes outras, foram fatores fulcrais para a sua criatividade plena.

O Festival Gilberto Mendes que se inicia no dia 7 de Outubro em Santos traz diversificação a evidenciar as muitas facetas de Gilberto Mendes. Tenho o privilégio de abrir as festividades musicais a partir de um recital em que apresento não apenas dez criações de Gilberto, mas igualmente obras de autores que permaneceram como ícones para o compositor.

https://www.santos.sp.gov.br/?q=hotsite/centenario-gilberto-mendes

Do livro de Flávio Viegas Amoreira, ilustre escritor, poeta e crítico literário, “Gilberto Mendes – Notas Biográficas” que terá em sua segunda edição a ser lançada no dia 14 (vide programação) um artigo em que historio as 30 peças para piano que tive o privilégio de ser o dedicatário e de apresentá-las em público em primeira audição, retirei as apreciações que figuram no texto anexado à obra do autor santista e que se referem às 10 músicas programadas para o recital de abertura do importante Festival.

“Poderia dividir em dois grupos as composições que Gilberto me dedicou. Num primeiro grupo, vinte criações compostas entre as décadas de 1940-1950 e, num segundo, dez peças escritas a partir de 1985, para as quais o estímulo de minha parte provocaria a recepção plena de Gilberto. Todas têm uma história e, ao narrar, a origem das criações ficará documentada, mercê do convite do ilustre Flávio Viegas Amoreira para que escrevesse este anexo e, pela imensa admiração que ambos temos pela obra e trajetória de um grande amigo e incomensurável mestre, Gilberto Mendes.

Nas várias viagens a Santos no período de nossa docência na USP não poucas vezes visitei Gilberto. Certa vez, ao almoçar em seu apartamento indaguei-lhe sobre suas obras para piano de antanho. Disse-me sem hesitar que não se interessava por elas, pois faziam parte de uma fase remota, que estavam bem embrulhadas e guardadas em um baú. Tendo insistido, Eliane, sua esposa sempre atenta, convenceu-o a me mostrar aquelas criações. Deparei-me de imediato com o manuscrito, já bem envelhecido, da ‘Sonatina Mozartiana’, datada de 1951. Fui ao piano e decifrei-a diante do casal. Ao finalizar, Gilberto a sorrir afirmou: ‘Não é que ela é bonita!’. Fui lendo as outras obras e sugeri apresentá-las in totum no Festival Música Nova. Relutou inicialmente, mas encorajado por Eliane, aquiesceu. Interpretei-as todas em primeira audição em sua Santos, durante o referido Festival  (26/08/1991). Em seu substancioso livro ‘Uma Odisseia Musical – dos mares do sul à elegância da pop/arte-déco’ (São Paulo, Edusp, 1994), Gilberto escreve: ‘Ainda com referência ao pianista José Eduardo Martins, que já me encomendou tantas músicas, sou-lhe grato por haver tocado toda a minha obra inicial, do período de minha formação praticamente autodidata, que estava esquecida nas gavetas. Cheguei muitas vezes, a pensar em jogá-la fora. Mas alguma coisa me segurava, seria como jogar parte de minha vida, e nunca fui de rupturas com o passado’. Dessas obras, apresento habitualmente no Exterior a encantadora ‘Sonatina à la Mozart’, tendo gravado em 1996 em Sofia na Bulgária e incorporado posteriormente no CD “Retour à l’Enfance” (França, Esolem, 2019). Ao sair na Bélgica a edição da partitura, Gilberto entregou-me um exemplar com as palavras: ‘Com meus agradecimentos por esta descoberta arqueológica, e meu grande abraço sempre amigo’ (16/04/2003).

Clique para ouvir, de Gilberto Mendes, “Sonatina à la Mozart” na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=ZO0-u5kU5c4

Foi a partir de 1985 que as ‘encomendas’ surgidas em conversas, nas quais algum evento, data comemorativa ou peça tombeau eram temas habituais, que, nasceriam dez novas criações de Gilberto Mendes, algumas integrando hoje repertórios de vários intérpretes brasileiros e do Exterior. Algumas têm o culto ao minimalismo, ‘um gosto meu pela estrutura musical estática, repetitiva’, d’après Gilberto.

Em 1985 fui o responsável por um caderno de oito composições a homenagear o notável compositor romântico Henrique Oswald (1852-1931). Publicado pela USP, teria todas as composições em xerox dos manuscritos. Francisco Mignone, Camargo Guarnieri, Gilberto Mendes, Mario Ficarelli, Tsuna Iwami (Japão), Ricardo Tacuchian, Stephen Hartke (Estados Unidos) e Rodolfo Coelho de Souza, aceitaram a proposta. Partindo da consagrada criação ‘Il Neige’! do homenageado, Mignone comporia ‘Il Neige Encore’, Gilberto ‘Il Neige… de nouveau’ e Tacuchian, ‘Il fait du soleil’. No manuscrito autógrafo que recebi, Gilberto escreveria após o título oficial: ‘Quel froid! Mais je suis très bien chez moi… Et les pauvres, les chômeurs…’. A peça de Gilberto é minimalista, “parte do primeiro acorde de Il Neige”, como afirma Gilberto e, apresenta amplificação sonora e motívica nas diversas exposições ao longo dos compassos, através de engenhosa pedalização que leva à reverberação maior a propiciar ao todo uma concepção inusitada.  A primeira audição do caderno se deu durante o Festival Música Nova (São Paulo, MASP, 22/08/1985).

No centenário de Heitor Villa-Lobos (1887-1959), coordenei a coletânea a ele dedicado, igualmente publicado nas mesmas condições pela USP em 1987. Os dez ilustres compositores convidados enviaram suas contribuições: Camargo Guarnieri, Aurelio de la Vega (Cuba-Estados Unidos), Edino Krieger, Gilberto Mendes, Ramón Barce (Espanha), Mario Ficarelli, Jorge Peixinho (Portugal), Almeida Prado, Roberto Martins, Wilhelm Zobl (Áustria). Apresentei a coleção em primeira audição durante o Festival Música Nova (São Paulo, Instituto Goethe, (23/08/1987). ‘Viva Villa!’ é possivelmente a peça para piano de Gilberto mais gravada e tocada no Brasil e no Exterior. Minimalista, apresenta vários ritmos brasileiros de índole popular utilizados por Villa-Lobos. O autor comenta: “Compus Viva Villa sobre acordes que já tinha prontos – também de um velho caderno de notas – e me pareceu ‘brasileiros’, com algo do Villa, no meu sentir’. Os segmentos não obedecem a rígidas repetições e, como último dos ritmos, Gilberto apresenta o da Bossa Nova. Perguntei-lhe o porquê. A resposta foi imediata: ‘Villa Lobos não teve tempo de vida para aplicá-lo’.

‘Um Estudo? Eisler e Webern caminham nos mares do Sul’ foi composto em 1988. Gilberto escreve: ‘O pianista José Eduardo Martins me pediu para compor um estudo. ‘Um estudo?’ repeti, aborrecido, já que há muito tempo não componho peças com títulos de formas musicais. Eu não ia compor um estudo, coisa nenhuma! Mas José Eduardo não desiste fácil, muito pelo contrário. E quando menos esperava, lá vinha ele a me pedir o tal estudo, explicava que era para tocar em Potsdam e Berlim, Alemanha Oriental (naquele tempo!), dentro de uma série de estudos que ele estava encomendando a vários compositores. Um dia contra-ataquei. Só se fosse um anti-estudo, algo bem fácil, com notas de valor igual, andante… mas José Eduardo achou ótima a ideia. De fato, sem querer, eu estava esboçando uma ideia musical. E até me pareceu interessante. Não abri mão, no entanto, de deixar a coisa vaga, no próprio título, e imaginei: ‘Eisler e Webern caminham nos mares do sul..’ (São Paulo, Cadernos Musicais, Outubro, 1990). A primeira audição se deu em Potsdam na antiga DDR, no Neuen Palais Sanssouci, aos 31 de Maio de 1989.

‘Estudo Magno, ao Magno professor em sua aula Magna’. A dedicatória foi dada a uma das mais importantes criações de Gilberto para piano. Entendo o ‘Estudo Magno’ como verdadeira obra prima, que faz jus estar entre os mais significativos do gênero em termos absolutos, opinião corroborada por músicos que ouviram a criação em Portugal, França, Bulgária, Romênia, Bélgica, Inglaterra e País de Gales, centros em que apresentei a composição. Historiando, diria que numa de minhas visitas a Gilberto em sua Santos, disse-lhe que fora convidado para a Aula Magna da ECA-USP, mercê de minha aprovação como professor titular. Daria uma palestra no auditório Camargo Guarnieri seguido de um breve recital. Nasceria, pois, o ‘Estudo Magno’, cuja estreia se deu no dia 4 de Março de 1993. São inúmeras as formulações técnico-pianísticas, mormente aquelas concernentes à denominada técnica dos cinco dedos. Gravei-o na Bélgica para o CD Estudos Brasileiros (Rio de Janeiro, ABM, 2006).

Clique para ouvir de Gilberto Mendes, Estudo, Ex-tudo, Eis tudo pois, na interpretação de J.E.M.:

338) Gilberto Mendes – Estudo, Ex-tudo, Eis tudo pois! – José Eduardo Martins – piano – YouTube

A amizade entre Gilberto Mendes e Jorge Peixinho era proverbial. Em Dezembro de 1994 Peixinho me escreve lamentando ‘a morte de nosso grande amigo Lopes-Graça’ (1906-1994), consensualmente o maior nome da criação musical em Portugal. Seis meses após era ele, Peixinho que partia. Ao saber do infausto acontecimento liguei para Gilberto. Com a voz embargada teve de desligar o telefone, em prantos. Retomamos minutos depois. Quase dois anos após a morte de Jorge Peixinho, recebi convite para recital de abertura do Orada Hansa Artística que seria realizado no Convento da Orada, em Monsaraz, no Alentejo, em Julho de 1997 e que contaria com a honrosa presença do Presidente da República Portuguesa, Dr. Jorge Sampaio. Solicitei ao Gilberto um Estudo em homenagem ao nosso diletíssimo amigo Jorge Peixinho. Nasceria o ‘Estudo, Ex-tudo, Eis tudo pois’ in memoriam Jorge Peixinho, obra tombeau que foge aos ditames habituais. Preito sentido de Gilberto através de acordes em forma de coral que percorrem parte considerável do extraordinário Estudo. Elementos rápidos e metamorfoseados, caros na escrita composicional de Peixinho, entremeiam esses lentos acordes, assim como em outros segmentos, lembranças jazzísticas e da música norte-americana simpáticas aos dois compositores desfilam no percurso e, até, citação de passagem existente nos Funérailles de Franz Liszt, por duas vezes sedimentam o apreço ao amigo que se foi. Liszt está presente pois antes da criação dera recital no Museu Benedito Calixto em Santos e interpretei Funérailles. O recital em Monsaraz se deu aos 13 de Julho daquele ano. Gravei esse Estudo na Bulgária para o CD Estudos Brasileiros (Rio de Janeiro, ABM, 2006).

‘Étude de Sinthèse’ (2004) teve origem a partir da… síntese. Conversava com Gilberto, já na sua oitava década, sobre um derradeiro Estudo. Disse-lhe que gostaria de uma criação no qual ele colocaria os acordes que mais foram sensíveis em sua produção. Mencionei Wagner, Liszt, Debussy, Scriabine… que tinham lá suas predileções. Pensei receber um Estudo vertical, mas Gilberto os horizontou em forma de arpejos que deslizam… Estudo testamentário? Pode ser, pois sereno, envolvente, generoso como seu criador. Interpretei-o em turnê pela Bélgica, gravando-o em Mullem para o CD Estudos Brasileiros (Rio de Janeiro, ABM, 2006).

Consideraria um aspecto que ratifica a abertura de Gilberto Mendes, jamais preso a fanatismos, sejam eles ideológicos ou de tendências composicionais. Frases resumem bem o nosso entendimento e a liberdade que ele proporcionava ao intérprete: ‘A dinâmica entre ‘p’ e ‘mf’, você escolhe, menos no final que é ‘fff’. Tudo bem legato, não obstante eu não tenha feito as arcadas sobre as notas’, ao se referir ao ‘Étude de Sinthèse’. Sob outra égide, nas peças minimalistas, deu-me a liberdade em algumas delas de aumentar ou diminuir as repetições.

‘Largo do Chiado’ tem história singular. Daria recitais em Portugal comemorando 50 anos de meu primeiro recital em solo lusitano, aos 14 de Julho de 1959, na Academia de Amadores de Música em Lisboa a convite do insigne Fernando Lopes-Graça. Conversei com Gilberto e nasceria ‘Largo do Chiado’, breve homenagem do amigo. Composta em Dezembro de 2008, a peça evolui martellato uguale, senza espressione, a evocar nos compassos finais reminiscências do ‘Fado da Severa’, canção caríssima a Gilberto. A estreia se deu durante recital no Convento Nª Senhora dos Remédios em Évora aos 9 de Maio de 2009, interpretando-a a seguir em Tomar e Lisboa. Algumas das obras elencadas, assim como outras não apenas para piano, foram publicadas na Bélgica (Alain van Kerckhoven – New Consonant Music), mercê dos esforços do pianista e professor santista Antônio Eduardo.

Sempre a considerar o intérprete absolutamente necessário, mas num plano secundário em relação a obra a ser apresentada, pois transitório, entendo que determinadas criações através da história jamais viriam à luz se não houvesse o estímulo exterior, seja do intérprete ou vindo de outrem ou ainda de tantos fatores que levam o músico a compor. No meu de profundis apraz-me saber que o estímulo vingou e que fui o mensageiro temporário de todas essas trinta composições. Friso, se talento ou criatividade inexistirem, a criação se perderá no limbo da história. Pode ocorrer a permanência de um compositor durante certas décadas, mas só aqueles que conseguem ultrapassar a arrebentação, amparando-me numa imagem voltada ao mar tão amado por Gilberto, encontrarão o mar infinito. Galhardamente a obra de Gilberto Mendes navega nos ‘mares do sul’ em direção a tantos oceanos imaginários.

Rememorar essas relações musicais é um privilégio que dimensiona o entendimento compositor-intérprete. A corroborar o fato, mencionaria outras maiúsculas criações de Gilberto Mendes das quais participei como pianista: ‘Saudades do Parque Balneário para saxofone alto e piano’, ‘Canções’, ‘Longghorn para trompete, trombone e piano’, ‘Ulysses em Copacabana surfando com James Joyce e Dorothy Lamour’, ‘Concerto para piano e orquestra” e ‘Rimsky’, obra  apresentada em várias cidades da Bélgica com os integrantes do excelente Rubio Kwartet em 2003”.

J.S.Bach, “insuperável”; Franz Liszt, “fenomenal”; Claude Debussy, “fonte da música moderna”, Gabriel Fauré, “daria toda minha obra para ser o autor do Noturno nº4” e Alexandre Scriabine, “o transcendental, o misticismo eslavo contido em Vers la Flamme…”, são cinco de seus compositores eleitos e que povoavam os nossos diálogos. Completarei o recital a interpretar obras desses autores consagrados.

No próximo post comentarei o lançamento de “Gilberto Mendes – notas biográficas”, de autoria d0 ilustre Flávio Viegas Amoreira, livro que tenho o privilégio de participar escrevendo o anexo “Gilberto Mendes frente ao intérprete”. Farei parte da mesa redonda em torno do lançamento.

The city of Santos festively celebrates the centennial of the notable composer Gilberto Mendes. A Festival sponsored by the Santos City Hall will present a series of musical, literary and artistic manifestations in general. I will open the Festival by reading ten of the thirty compositions that Gilberto Mendes dedicated to me over decades of solid friendship.

 

Prática comum em todas as áreas

Toda representação ou reprodução integral ou parcial
feita sem o consentimento do autor [...] é ilícita.
O mesmo ocorre em relação à tradução,
à adaptação ou transformação,
ao arranjo ou à reprodução por uma arte ou um processo qualquer.
(Definição do plágio. Artigo L122-4 do Código francês de propriedade intelectual).

Um leitor atento, Álvaro Aparecido, escreveu-me em Agosto sugerindo um post sobre o plágio. Fez-me regressar, após muitos anos, a um tema que tem recrudescido. Particulariza a música, mormente a música de alto consumo e majoritariamente efêmera, mas pode-se estender a considerações para todas as áreas. Lembraria um post publicado bem anteriormente, no qual comentava a larga utilização dos termos imitação e plágio (vide: “Imitação, Plágio, Inspiração”. 19/09/2009). Plágio e imitação são palavras que, apesar de diferenciações, se coadunam.

No post mencionado citava frases basilares de Francisco Mignone: “Todos os grandes artistas de todas as artes foram enormes plagiários. O plágio só é condenável quando feito com a intenção de roubar o sucesso alheio”. Outra frase bem incisiva: “Originalidade está na lógica da criação e se Debussy é feito de uma parte de franceses (até de Massenet), e uma terça parte de Moussorgsky, lhe bastou botar uma terça parte de Debussy na sua criação para ser original e chefe de escola” (Francisco Mignone, “A Parte do Anjo – autocrítica de um cinquentenário”. São Paulo, Mangione,1947). Acredito que “a intenção de roubar o sucesso alheio” torna-se algo que deve ser insistentemente combatido. Não obstante, apesar de a internet ser a cada dia mais atuante e detectora, o plágio persiste, velado ou não. O célebre Dicionário Moraes, no século XIX, já assinalava fraude como um sinônimo de plágio.

Os vários estilos musicais que se sucederam durante séculos possibilitaram aos compositores coevos manterem linguagens bem próximas, a lembrar ao ouvinte ser determinada criação pertencente ao século XVII, XVIII ou XIX, como exemplos, guardando-se, é evidente, as características próprias de cada compositor. A forma e o conteúdo obedeciam a ditames que eram seguidos como normas. Determinadas formas, como FugaSonata, obedeciam às regras. Sob o aspecto subjetivo, dir-se-ia que uma espécie de prana “sobrevoava” diversos estilos de época e tornava-se pouco provável a ausência de eflúvios penetrando as mentes. O mesmo se daria com os costumes, indumentárias, gostos e preferências…

Em outra abordagem, como não associar lembranças que, desde a infância, abastecem a imaginação dos autores. Estou a me lembrar de algo sugestivo, pois ao apresentar em Paris ao insigne musicólogo François Lesure (1923-2001), então curador do Departamento de Música da Bibliothèque Nationale, um texto que seria publicado posteriormente, disse-me ele que um dado que apresentei era um verdadeiro ovo de Colombo (“La vision de l’univers enfantin chez Moussorgsky et Debussy”, in “Cahiers Debussy”. Paris, Centre de Documentation Claude Debussy, nouvelle série nº 9, 1985). Reminiscências de cantos e contos da “niania”, (babá) de Moussorgsky, ficaram gravados indelevelmente, e o tema da “Grande Porta de Kiev”, um quase segundo hino russo, última peça dos célebres “Quadros de uma Exposição”, continha lembrança sensível da célebre canção francesa “Frères Jacques”, exibida magistralmente nessa criação lúdica do grande compositor russo.

Clique para ouvir, de Modest Moussorgsky, os “Quadros de uma Exposição” na interpretação de J.E.M. É tão nítida a alusão a Frères Jacques no último Quadro (29:00)!

https://www.youtube.com/watch?v=dDr75RcRNDw

Respondo ao Álvaro Aparecido que, nesse caso específico, não há plágio, mas sim retorno consciente ou não a tema que ficou perene na mente do compositor.

Outro aspecto a ser considerado é a citação. Seria evidente a existência de citações explícitas de temas que ganharam ampla aceitação pública. Um compositor, ao fazer uma citação de autor, ou então de algum tema anônimo ou não pertencente ao hinário pátrio, ao cancioneiro popular ou mesmo aos cantos da Igreja, fá-lo conscientemente. O tema de Dies Irae (Dia da Ira), datado do século XIII, foi exaustivamente utilizado por inúmeros compositores através da História, preferencialmente nos Réquiens. Entre eles poderíamos citar os Réquiens de Mozart, Liszt, Verdi, Bruckner, Gounod e outros mais. Hector Berlioz também utilizará o tema do Dies Irae na sua célebre Sinfonia Fantástica. Tchaikovsky, na celebrada Abertura 1812, serve-se do tema da Marselhesa e de um outro da época czarista, Deus Salve o Czar. Debussy inúmeras vezes se lembrará de algum tema, pátrio ou não, e La MarseilleseGod save de queenMarcha nupcial de Mendelssohn, Fanfan la  tulipe e tantos mais surgem rapidamente e se esvaem.

O plágio acadêmico, não mencionado no post citado, é algo grave a ser combatido, mas, hélas, muitas vezes de difícil aferição, mercê das inúmeras fontes bibliográficas nem sempre do conhecimento das bancas examinadoras. Impossível tudo conhecer. Todavia, quem assim age com o desiderato de “roubar o sucesso alheio” poderá até progredir na atividade acadêmica, mas, a exemplo daquele que pratica um crime e a ele tende a retornar, dificilmente passará incólume em sua carreira, pois certamente voltará a praticar plágios outros.

A internet fez recrudescer a utilização de vários aplicativos fornecedores de amplo material, geralmente sucinto e majoritariamente sem a profundidade que se faz necessária. A prática provoca, inclusive, colagens tiradas de um sem número de sites que, no caso de falta de seriedade acadêmica, são de difícil detecção por parte de bancas examinadoras de dissertações e teses. Se artigos são destinados às revistas ou publicações científicas, passam por comitês de redação especializados nas diversas áreas, frise-se, e a detecção se torna facilitada, devido inclusive à menor dimensão do artigo acadêmico e à almejada originalidade em texto de síntese.

Sob aspecto outro, já há sistemas internéticos que detectam se determinado segmento de um trabalho acadêmico foi plagiado. O decoro de um pesquisador faz com que, sempre que conceito ou citação não lhe pertença, a nomeação da fonte dignifique a pesquisa. Estou a me lembrar de que, fazendo parte de banca julgadora de um doutorado na FFLCH da USP nos anos 1990, uma meritória tese possuía mais de mil notas de rodapé. Exagero, indagará o leitor. Todavia, a bem fundamentada tese, apesar de quantidade de citações ou esclarecimentos pertinentes, possuía um alto grau de criatividade. Importante considerar que nem sempre a abundância significa sapientia, pois a quantidade pode representar a necessidade de um postulante mostrar-se “senhor da matéria”, possibilidade de camuflar conhecimento, aparência da verdade.

Acredito firmemente que dissertação e tese não envolvem apenas a presença ocasional do plágio. Geralmente essa prática não vem isolada, pois acompanhada de uma redação eivada de problemas. Um bom orientador normalmente conduz o postulante a resultados positivos. Um orientador menos gabaritado não atenta por vezes à quantidade não despicienda de equívocos e falhas de um orientado. Durante minha já distante vida universitária, observava bem a origem originária, o nome daquele que orientou tal candidato ao trabalho acadêmico. Trata-se de uma garantia, sem dúvida.

O plágio se estende igualmente às traduções de parágrafos sem menção ao autor ou mesmo às adaptações possíveis, ausentando-se a citação das fontes que deram origem a um determinado texto.

Álvaro Aparecido menciona em sua mensagem o autoplágio. É ele condenável? Pergunta complexa, pois é possível entender o autoplágio de diferentes olhares. Se considerarmos o genial Mozart (1756-1791), em sua obra para piano ou solo concertante são inúmeras as recorrências às passagens “semelhantes”, mormente as rápidas, que proliferam ao longo de sua existência. Trata-se de seu estilo e o desenrolar da obra evidencia a maestria mozartiana. Poderíamos enumerar um sem número de compositores que assim agiram. No caso acadêmico, a não citação explícita de pesquisa própria bem anterior ou mesmo frases basilares pode sinalizar desvio pouco saudável.

Há legislação que defende o direito do autor e que é acessada principalmente pelas áreas extra-acadêmicas. Plágio e imitação devem ser combatidos. Todavia, camuflados, podem passar despercebidos. Infelizmente, é o mínimo que se pode afirmar.

A reader suggested I write about plagiarism. I reminded him of a previous post in which I addressed the subject (2009). In the present post I give further consideration to this matter.