“Bóris Pasternak e Alexandre Scriabine”
Nos últimos anos de vida, o elã em direção ao futuro,
o sonho desse devir atingiram uma força e uma acuidade particular.
Tornou-se impaciente e a espera começou a pesar.
A impossibilidade de traduzir, fora da música, o indizível o irritava.
Pôs-se a trabalhar com certa angústia,
como se algo o provocasse ou
como se estivesses a pressentir o tempo escoar:
‘Não mais as palavras, é tempo de se colocar à obra,
necessário se faz agir mais rapidamente, muito tempo foi perdido’.
Bóris de Schloezer (1881-1969)
(“Alexandre Scriabine”. 1975)
Neste terceiro post dedicado a Alexander Scriabine no ano de seu sesquicentenário insiro meu texto sobre o instigante depoimento do escritor Bóris Pasternak sobre Scriabine, publicado na “Nanico – homeopatia cultural” nº 13, Junho de 1996, mercê da anuência de meu dileto amigo, o sábio editor Cláudio Giordano.
Bóris Pasternak (1890-1960) lega-nos apreciações de relevante importância sobre o compositor russo, pois o conheceu ainda adolescente (1903). Seu pai, o pintor Leonid Pasternak, era amigo de Scriabine.
No texto que segue há várias considerações que fazem parte de minhas pesquisas posteriores a 1972 sobre Scriabine (centenário do compositor), publicadas no Brasil, em França e na Bélgica. Impossível algumas dessas reflexões se ausentarem nos vários posts sobre Scriabine publicados neste espaço desde 2007. Acúmulos…
“Entre os textos autobiográficos de Bóris Pasternak nos quais Scriabine está presente em sua lembrança, o ora publicado é testemunho ratificado da admiração, não desprovida de momentos frustrantes, do autor de ‘Doutor Jivago’ para com o criador de ‘Vers la Flamme’. A imensa importância dos escritos de Pasternak está em dimensionar posturas expressas pelos estudiosos do compositor, das primeiras décadas à atualidade.
Conhecem-se em 1903, Bóris nos seus 12 anos, Scriabine, músico já renomado, aos 31. O jovem evoca características de seu coetâneo ilustre encontráveis nos muitos estudos sobre o autor, entre os quais o de Bóris de Schloezer, que conviveu com Scriabine, pois seu cunhado. Sob outro aspecto, a substancial iconografia scriabiniana evidencia um homem elegante, voltado ao dandismo, frágil, quase valetudinário.
Pasternak, no texto em questão, observa a pregação de Scriabine quanto ao ‘homem superior e amoral de Nietzsche’. Nas fronteiras do século, Scriabine lê com inusitado interesse, paixão mesmo, segundo sua filha Marina, ‘Assim Falava Zaratustra’, pensando inclusive numa ópera, jamais realizada, cujos fragmentos do libreto ficaram registrados em um carnet do compositor.
Sabe-se da influência exercida sobre Scriabine das teorias de Helena Blavatsky, cuja obra ‘A Doutrina Secreta’ marcaria o autor do ‘Poema do Êxtase’ em seu caminho em direção a uma teoria teosófica.
Pareceria correto admitir-se que a trajetória empreendida por Scriabine, resultando os vários estágios do escrever música, só poderia ser compreendida entendendo-se a amálgama compositor-pensador. Pasternak relata a partida de Scriabine rumo à Suíça, onde permaneceria alguns anos. É de 1904 um texto do compositor, escrito em um café perto de Genebra: ‘Tudo é minha criação. Eu não sou nada. Eu sou unicamente o que crio. Tudo que existe, existe apenas em minha consciência’.
Na medida em que, por processos inusitados, Scriabine caminha, o distanciamento se processa em relação às técnicas composicionais da juventude, sendo praticamente impossível entender-se como sendo do mesmo compositor Prelúdios e Mazurkas dos primeiros anos e os Poemas, Sonatas e Estudos escritos nas fronteiras da morte. Sob outra égide, o pensador em aceleração contínua e em plena vibratilidade delirante estabelece um elo com o Criador, em sendo ele, Scriabine, o Criador: ‘eu vos exalto à vida através do meu carinho e do charme misterioso de minhas promessas (…) eu sou o centro do universo e o universo está perto do centro’ (‘Cahiers inédits’ 1904-5). Curiosamente, os elos que fazem entender serem do mesmo compositor obras de períodos díspares são os do idiomático pianístico ou aqueles constituídos pelos motivos neurótico-obsessivos, separados entre si pelos silêncios (pausas), com o decorrer dos anos cada vez mais angustiantes.
Se as reminiscências de Bóris Pasternak afloram, deixando transparecer evocações precisas, objetiva e subjetivamente, a respeito de um de seus ídolos, alguns aspectos desse passado distante podem remeter ao levantamento de questões e à formulação de hipóteses: que razões, conscientes ou não, teriam levado Pasternak a abandonar a música? O conservadorismo que levou Pasternak a criticar – apesar da diferença etária, frise-se – os ‘novos meios de expressão’ de Scriabine e de outros autores não refletiria o pensamento sacralizado da maioria da sociedade a que pertencia e que consumia a cultura plena de conteúdos ocidentais ligados à tradição? O ressentimento quanto a Alexandre Scriabine não terá origem na inatingibilidade, por parte de Pasternak, ao talento pleno do autor das Sonatas ‘Missa Negra’ e ‘Missa Branca’?
Seria possível visualizar Bóris Pasternak ouvindo Scriabine a executar ao piano fragmentos reduzidos da Terceira Sinfonia ou ‘Divino Poema‘ op. 43 nas dachas perto de Moscou. Imediatamente antes, compusera os oito Estudos op. 42, plenos da mais ampla virtuosidade.
Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine, os Estudos op 42 nº 1 e nº 5 (Affanato) na interpretação de J.E.M.:
https://www.youtube.com/watch?v=Vz13JKEZKRI
https://www.youtube.com/watch?v=Z1UvhEy0N0w
Saliente-se ter sido Scriabine pianista de méritos a executar, preferencialmente na Rússia e na Europa, composições suas. Permaneceriam na mente de Bóris Pasternak a qualidade pianística singular e a criatividade fulgurante de Scriabine. O ‘eu tocava pessimamente e lia música como criança aprendendo a soletrar’ e a certeza de que o criar música – entenda-se compô-la – mostrava-se em discrepância com o fazer música – entenda-se executá-la – poderia ter sido diferentemente absorvido por Pasternak se o modelo sonoro scriabiniano registrado na adolescência, bidimensionado criação-práxis, não tivesse sido tão mágico. O abandonar a música mereceria ser repensado como fruto da impossibilidade do nivelamento.
Pasternak ouvia a música russa e a ocidental que se tornaram familiares. O seu ouvido aceitaria essencialmente mensagens do código romântico pleno. Scriabine, na sua trajetória místico-criativa, que o leva a uma escrita ousada, distancia-se dessa escuta sacralizada por Pasternak. Se este entende a ‘fase intermediária’ das terceira e quinta Sonatas, paradoxalmente capta conteúdos de obras bem anteriores e plenas da mais intensa exacerbação emotiva – como os Estudos op. 8 e os Prelúdios op. 11 – como totalmente contemporâneos’, quando de fato já não o eram. A criatividade de Scriabine, fruto do amálgama ascensão em direção ao Cosmos-Música, fá-lo atingir níveis do mais preciso vanguardismo nos anos que antecederam a sua morte. O próprio Scriabine dos últimos Poemas e Sonatas disso tinha consciência e, ao tocar em público em sua consagrada carreira de pianista, dava à plateia a oportunidade de ouvir preferencialmente suas criações anteriores, romanticamente comprometidas, portanto. Bóris Pasternak seria assim o exemplo desse ouvinte, pronto a captar mensagens da mais intensa comunicação.
O ‘lado negativo da influência’ de Scriabine, que levaria talvez ao ressentimento, seria a somatória da inacessibilidade ao talento excelso musical e a certeza de que um carisma etéreo, do qual Scriabine era possuidor na sua vontade de expor ideias místico-filosóficas, impusera sentimentos de difícil resolução para o escritor. A respeito da ‘certeza’ conceitual característica de Scriabine — ‘apenas ele poderia permitir-se o luxo de seu próprio egocentrismo, que suas teorias serviam apenas para ele próprio’, ou ainda o lado ‘miraculoso e premeditado, nada planejado, deliberado, desejado’, conteúdos do ‘negativo’ que ficou como influência do compositor — ; Pasternak evidenciaria de um lado o poder carismático de Scriabine, de outro o sentimento frustrante da distância do pensar entre os dois, mercê do ‘egocentrismo’ do autor do ‘Poema Satânico’.
Alexandre Scriabine permanece, talvez, como o mais criativo compositor russo do século XX, sem ligações definidas com ascendentes criadores da Rússia, tampouco deixando imitadores ou discípulos. Morre em 1915 e os pósteros da Revolução de 1917 negligenciam-no nos primeiros anos, pelo fato de ter sido Scriabine um compositor com olhar aristocrático. Contudo, no momento em que o Ocidente se fascina por Scriabine, através, sobremaneira, das ações pianísticas fulgurantes de Vladimir Horowitz e Vladimir Sofronitsky, este na Rússia, tornou-se útil ao regime soviético divulgá-lo e, diga-se, fizeram-no na excelência até os estertores do Sistema.
Bóris Pasternak morreu em 1960. No velório, uma última manifestação sonoro-fascinante sobre seu corpo imóvel. Sviatoslav Richter, um dos mais completos pianistas russos, tocou durante o dia e parte da noite obras de Scriabine num piano de armário colocado bem próximo ao esquife”.
Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine, “Feuillet d’album”, op. 45 nº 1, na interpretação de J.E.M.:
https://www.youtube.com/watch?v=ug7MD8jWo4M
In this third post I comment on the magnificent account given by Boris Pasternak about Scriabine published in the two previous posts, raising hypotheses about the effective influence of Scriabine in the future steps of the author of Dr. Zhivago.
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