João Gouveia Monteiro e o aprofundamento fulcral

Por estes vos darei hum Nuno fero,
Que fez ao Rei, e ao Reino tal serviço;

Mas mais de Dom Nuno Alvares se arrea.
Ditosa Pátria que tal filho teve!

Luís Vaz de Camões
(Os Lusíadas, Cantos 1º, 12ª estrofe; 8º, 32º estrofe, respectivamente)

As biografias humanizam a História,
conferem-lhe um sentido maior do concreto,
interpelam-nos talvez mais como cidadãos do tempo e do mundo.

Aljubarrota, a mãe de todas as batalhas portuguesas.
João Gouveia Monteiro
(“Nuno Álvares Pereira – Guerreiro-Senhor Feudal-Santo”)

Uma das figuras mais importantes da História de Portugal, se não a mais fascinante, encontramo-la em Nuno Álvares Pereira (1360-1431). Ao longo dos séculos tem sido vivamente cultuado em Portugal.

Curiosamente, meu “contato” com o gigantesco personagem se deu nos meus 15 anos, no longínquo 1953. Meu Pai, natural do Minho, cultuava intensamente os valores portugueses e me presentou em dois anos consecutivos com dois livros que li com vivo interesse àquela altura e que conservo carinhosamente nas estantes, “Os Filhos de D. João I” e “A vida de Nun’Álvares Pereira – história do estabelecimento da dinastia de Avis”, do historiador Oliveira Martins (1845-1894). Juntavam-se a muitos outros que ganhei de meu Pai na juventude, voltados às biografias de compositores, literatos ou desbravadores de tantas áreas. Os de Oliveira Martins deixaram-me forte impressão, mormente porque o autor, sem as fontes multidirecionadas que são primordiais às pesquisas historiográficas na atualidade, compensava essa lacuna com uma escrita sedutora, romantizada, que ficou indelével na mente do jovem que eu fui. Não poucas vezes, em minhas dezenas de peregrinações musicais a Portugal, que remontam a 1959, pensei em saber mais sobre o magistral arquiteto da Batalha de Aljubarrota, que se deu em 1385.

Foi-me prazeroso receber das mãos do notável professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, João Gouveia Monteiro, onde ensina História da Idade Média, História Militar Europeia, História da Antiguidade Clássica, História das Religiões e Cultura Medieval, seu precioso livro “Nuno Álvares Pereira, Guerreiro-Senhor Feudal-Santo – Os três rostos do Condestável” (Lisboa, Manuscrito, 2019). Duas obras de Gouveia Monteiro foram resenhadas neste espaço (vide: “Crônicas de História, Cultura e Cidadania”, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011, 23/12/2011 e, juntamente com três outros professores medievalistas, “Guerra e Poder na Europa Medieval”, Coimbra, IUC, 2015. 11/11/2017).

A imersão do autor sobre Nuno Álvares Pereira fê-lo compartimentar a vida do Condestável em três nítidas fases, a do Guerreiro, do Senhor Feudal e do Santo. Essas fases são nítidas, plenamente vividas, a revelar unidade de caráter. Na essência essencial, Nuno Álvares Pereira, o Condestável, é um só a viver etapas distintas na existência. Gouveia Monteiro apresenta o herói, dissecando-o, caminhando passo a passo com o Condestável e, à medida em que constrói a narrativa, faz desfilar incontáveis fontes fidedignas que remontam da Idade Média às últimas pesquisas sobre o período em que Nuno Álvares Pereira viveu. O livro poderia ter sido demasiadamente exegético não fosse a presença constante do autor para que dúvidas não pairassem. Nesse sentido, Gouveia Monteiro se faz guia, reportando-se às passagens lidas bem anteriormente. Essa atitude constante corrobora o entendimento, pois desfilam no livro em apreço centenas de personagens, mormente os que viveram entre os séculos XIV e XV. O leitor poderia perder-se, não fosse a ação didática do ilustre acadêmico. Fá-lo sempre com precisão, certo de que se assim não agisse impossibilitaria a retenção por parte do leitor. Essa presença do biógrafo possibilita àquele, inclusive, cotejar documentação e interpretar pesquisas de um período pleno de acontecimentos cruciais da História de Portugal.

Dividido em quatro capítulos distintos - “Como contar esta História?”, “O General Invencível e o seu Exército”, “O Senhor Feudal e o seu Patrimônio” e “Um Eremita da ‘Pobre Vida’ no Mosteiro” -, a obra de Gouveia Monteiro na realidade compreende “três” personagens em atuações harmoniosas, diferenciadas sim, mas prenhes de unicidade.

Em “Como contar essa História”, Gouveia Monteiro, após minuciosa pesquisa, perscruta cronistas dos tempos de Nuno Álvares Pereira e, através dessa documentação, possibilita ao leitor o descortino do período. Interessa-lhe não apenas o seu herói, mas igualmente o entorno, e esse caminho pluralizado revela determinados eventos que poderiam estar à margem, mas que têm importância fulcral. Ficamos sabendo essencialidades dos espaços geográficos e humanos em que o Santo Condestável atuou através dessa literatura de antanho. Gouveia Monteiro se posiciona logo de início e entende a dificuldade de escrever sobre um personagem histórico que viveu há 600 anos. Das remotas narrativas, três, entre outras, servem de “amparo” a todos os recentes trabalhos sobre o herói português: A “Crónica do Condestabre”, redigida pouco após a morte de Nuno Álvares Pereira (desconhece-se o autor), as importantíssimas biografias redigidas por Fernão Lopes (século XV) e a bem mais recente “Chronica dos Carmelitas” do Frei José Pereira de Sant’Anna (anterior ao terremoto de 1755). A partir dessas fontes primárias, o medievalista se debruçaria sobre mais de 5.000 páginas em torno do tema.

A respeito de Fernão Lopes, Gouveia Monteiro pormenoriza segmentos de suas crônicas, fornecendo embasamento às suas próprias deduções.

Em “O General Invencível e o seu Exército” tem-se o desvelamento de um dos mais importantes comandantes da história de todas as guerras do planeta. Impressiona a trajetória vitoriosa de Nuno Álvares Pereira frente aos seus exércitos. Tendo a guarida do rei D. João I, o Mestre de Avis (1357-1433), o Condestável elabora estratégias com tropas menos numerosas frente aos embates com o Reino de Castela. Impressiona o fato de que as três principais batalhas em que esteve a comandar foram travadas sendo Nuno Álvares ainda jovem. Em Atoleiros, com seus homens apeados, vence castelhanos montados (Abril de 1384). Em Agosto do mesmo ano, arquitetando tática bélica inusitada, vence a célebre batalha de Aljubarrota. No ano seguinte, em terras de Castela, sai vencedor da não menos famosa batalha de Valverde. Se essas três batalhas basilares ficaram no panteão das grandes contendas, em inúmeras outras “escaramuças” ou enfrentamentos menores, alguns desses reintegrando espaços provisoriamente ocupados pelos castelhanos, Nuno Álvares saiu-se vencedor. Bourbon e Menezes pergunta: “Que teria sido D. João, Mestre de Avis, sem o alento animador deste Galaaz?” (1933). O rei D. João I, reconhecendo todos os méritos de Nuno Álvares Pereira, nomeia-o Condestável.  Entre outras honrarias, vemo-lo fronteiro do Alentejo, mordomo-mor do rei D. João I e triplo conde. Paulatinamente D. João o presenteia com terras e propriedades que “assinalam a consagração de D. Nuno Álvares Pereira como o homem mais rico e poderoso do reino, a seguir ao rei” (Gouveia Monteiro).

No terceiro capítulo, “Senhor Feudal”, a preceder as doações realizadas pelo Condestável, o autor salienta as qualidades de seu pai, Álvaro Gonçalves Pereira, já expressas no capítulo anterior em citação constante da “Crônica do Condestabre”: nobre de condição e bom cavaleiro e mui entendido, assim como de ter privado com três reis portugueses: D. Afonso IV, D. Pedro e D. Fernando. Gouveia Monteiro escreve: “Álvaro Gonçalves Pereira é uma figura relevantíssima na vida de Nun’Álvares”. Ao pormenorizar o pai, que inclusive teve meritório desempenho como guerreiro na batalha do Salado e outras mais contendas, ficaria latente a influência de Álvaro Gonçalves Pereira nas escolhas do futuro Condestável desde a juventude.  Tendo fundamental importância junto à Ordem do Hospital, o progenitor de Nuno Álvares teve “…uma capacidade empreendedora e uma energia assombrosa” d’après Gouveia Monteiro, sendo o mandante da construção do Mosteiro de Flor da Rosa (Crato), local onde está sepultado. Tanto Álvaro Gonçalves Pereira como Iria Gonçalves, mãe de Nuno Álvares, esta posteriormente, foram doadores de terras.

Ainda em tempos de combate o Condestável já distribuía entre aqueles que o ajudaram nas batalhas algumas de suas propriedades, mais o fez ao longo de sua vida como Senhor Feudal e despojadamente quando entrou para a Ordem do Carmo. Seguiria, em escala bem mais ampla, as atitudes dos seus progenitores. É notável a presença do homem de fé intensa que desde os tempos como guerreiro, antes das batalhas, permanecia durante bom tempo a rezar. “Estará Fernão Lopes [cronista citado acima] mais próximo da verdade do que até aqui pensávamos, quando comenta o estranho episódio do Condestável, entre penedos, no momento mais apertado de Valverde, passagem em que explica que o Condestável se apartou do resto do seu exército e dos seus mortais inimigos, ‘não como guiador da sua hoste, mas como simples eremitão, fora de todo o negócio’”? (Gouveia Monteiro). Prossegue o autor quanto ao Convento do Carmo: “… legado material mais importante da existência do Santo Condestável: o Convento do Carmo, sem dúvida alguma a obra da sua vida e uma parte importante do seu patrimônio”. Gouveia Monteiro assinala ainda que, apesar das dúvidas concernentes à decisão de edificar o Convento, “a tradição relaciona a decisão com os votos que terá proferido por ocasião da batalha de Aljubarrota ou da batalha de Valverde”.  Entende o historiador que há um mínimo intervalo cronológico entre a construção e a desconstrução patrimonial de Nuno Álvares Pereira, pois ainda em tempos de batalhas e escaramuças o Condestável já tinha o hábito de doar.

Na abertura do quarto capítulo, “Um eremita da ‘pobre vida’ no Mosteiro”, Gouveia Monteiro escreve: “Depois de recordada a longa carreira militar de Nuno Álvares Pereira, resta-me considerar o seu ‘terceiro rosto’: o do homo religiosus, que, aos sessenta e dois anos, decide ir viver para o convento que tinha mandado construir em Lisboa, onde entrará em vida religiosa um ano mais tarde e onde virá a falecer, em 1431”. Será o tema do próximo post. Explico: ao final do livro, João Gouveia Monteiro se posiciona, enumerando cinco pontos relevantes em considerações pessoais de grande interesse. Para tanto, servir-me-ei do seu próprio texto, conciso e fundamental. Compreende-se melhor a intensa religiosidade de Nuno Álvares e, entre outros fatores devocionais, tem importãncia os eremitas e as comunidades eremíticas nos anos derradeiros do Condestável.

An essential contribution to the unveiling of Nuno Álvares Pereira, the Constable (1360-1431), has been made by the remarkable Professor of Medieval History at the University of Coimbra, João Gouveia Monteiro. Consisting of three parts – the Warrior, the Feudal Lord and the Saint -  the researcher’s book, based on reliable  sources basically  dating back to the 14th century, appears to be of absolute importance not only to the  Portuguese culture, as it transcends national borders.