Luzes a possibilitar novos aprofundamentos
Um homem que levou a sério a sua liberdade.
Pedro Picoito
(28 de Abril de 2009)
Tenho para mim que apenas a compreensão do todo possibilita a mais fidedigna interpretação dos fatos. Como tinha razões sobradas o saudoso amigo e ilustre professor de Direito Internacional da USP, Guido Soares, a entender as fases acadêmicas através da metáfora. O postulante no mestrado penetra numa floresta e conhece as diferentes espécies de árvores; quando no doutorado, concentra-se em apenas uma árvore, dissecando-a da raiz à copa; na livre docência, sobrevoa a floresta conhecendo todos os pormenores e a interpreta.
O notável historiador medievalista João Gouveia Monteiro assim o faz ao “sobrevoar” o todo do período em que viveu o personagem talvez mais emblemático da História de Portugal, Nuno Álvares Pereira. Sem a atuação do Condestável, teria hoje Portugal as suas fronteiras? Sobre o Guerreiro Comandante, os bens recebidos do rei D. João I após as vitórias nas batalhas fundamentais para a integridade de Portugal, a fortuna que fez dele o homem mais rico de Portugal, exceção ao rei D. João I, a doação paulatina de seu patrimônio e os anos finais austeros no Convento do Carmo, por ele fundado com parte de seus bens, pesquisas profundas foram e continuam a ser realizadas, sendo crucial o livro do professor de História Medieval da Universidade de Coimbra.
João Gouveia Monteiro, ao final de “Nuno Álvares Pereira, Guerreiro – Senhor Feudal e Santo”, após desfilar o personagem em suas etapas distintas, mencionando e interpretando incontável fonte documental que remonta à Idade Média e prossegue através dos séculos, posiciona-se em tópicos capitais e sobrevoa a floresta. Não o teria feito se anteriormente uma consistente bibliografia não apontasse para obras relevantes de sua lavra a compreender o período medieval.
Transcrevo essencialidades de sua visão abrangente do grande herói português inseridas ao final de seu livro sobre o Condestável. O historiador enumera cinco significantes argumentos e outras mais considerações relativas a Nuno Álvares Pereira junto ao Convento do Carmo, onde viveria seus últimos anos, e sua afeição pelos eremitas e grupos eremíticos.
Em primeiro lugar Gouveia Monteiro menciona as palavras “pobres da serra” contidas num documento do período. Escreve: “Parece-me indubitável que estes ‘pobres da serra’ são os anacoretas da serra de Ossa” [Sul de Portugal]. Prossegue o autor: “… a expressão ‘mandou por um pobre’ é isso que sugere; tendo em conta o grau de familiaridade do Condestável com as comunidades eremíticas alentejanas, pode até ser que não se tratasse apenas de pedir informação sobre o modelo de vida, de requerer aconselhamento, mas também de tentar chamar esse modelo para junto de si, na fase final da sua vida”.
Num segundo argumento, o historiador ratifica seu posicionamento dessa ligação do Condestável com eremitas da serra de Ossa, através da doação a eles destinada, de uma casa e um terreno ladeando o Convento do Carmo, realizada por um seu cunhado, quando Nuno Álvares já estava a morar no cenóbio.
Como terceiro posicionamento, Gouveia Monteiro considera que nos tempos das batalhas, ao ajudar “quatrocentos castelhanos que, desesperados com a falta de alimentos que havia em Castela, chegaram à comarca de Entre Tejo e Guadiana em busca de comida, foi justamente aos eremitas da serra de Ossa que recorreu para os identificar, organizar e materializar o seu apoio’’ e não àqueles mais abastados, o que evidenciaria uma nítida ligação do Condestável àquela altura com os mais pobres, mas generosos, que viviam em eremitérios na austeridade e castidade.
Numa quarta consideração, o ilustre medievalista faz uma tradução literal, diferente daquela apresentada por estudiosos, de frase de oração que “o infante D. Pedro compôs em memória de Nun’Álvares e que o rei D. Duarte enviou ao abade florentino D. Gomes, em apêndice à carta que lhe remeteu em 21 de julho de 1437, …: Norma principium, exemplum dominorum, speculum anachoretarum es, beate Nune”. Propõe o historiador: “Modelo de príncipes, exemplo de senhores, espelho de anacoretas és tu, bem-aventurado Nuno”, frase que decididamente evidencia a afinidade do herói com os eremitas, pois pesquisadores anteriores substituíram “anachoretarum” pelas palavras “contemplativos e religiosos”.
Numa quinta afirmação, Gouveia Monteiro demonstra a “relação que a família dos Pereiras tinha com o fenômeno eremítico do Sul de Portugal”. Os pais de Nuno Álvares foram generosos doadores de terras para os movimentos eremíticos na região do Alentejo.
O autor remonta a uma doença estranha que se abateu sobre Nuno Álvares durante o período das beligerâncias com o reino de Castela. Foi ele levado a um eremitério relevante na região de Setúbal e houve um encontro com uma delegação do entorno, que o visitou protocolarmente, narrativa constante na “Crônica do Condestabre”. Gouveia Monteiro deduz: “Creio bem que esta passagem da ‘Crônica do Condestabre’ traduz metaforicamente o contraste entre os dois mundos, entre duas vocações e formas de assumir a vida, um dilema que dilacerava Nun’Álvares naquela hora: o mundo vão, precário e limitado do cotidiano, da manobra política, do jogo de influências pessoais…; e o mundo muito mais puro e celestial dos eremitérios, terras da água e do mel, onde a intriga dava lugar à contemplação e a acumulação de favores e de riqueza cedia em toda a linha perante o exemplo salvador do despojamento. Julgo, sinceramente, que a história da doença de Nuno Álvares Pereira passa também por este dilema existencial do nosso biografado”.
Nas considerações finais do livro, Gouveia Monteiro tece argumentos relativos à construção do Convento do Carmo por Nuno Álvares ensejada e à vinda dos frades carmelitas do Convento de Nossa Senhora do Carmo de Moura, da região alentejana, após convite formal (1392), ideia possivelmente gestada pelo Condestável após as vitórias em campo de batalha décadas antes. Gouveia Monteiro comenta: “Nun’Álvares terá querido assinalar o seu sucesso militar com um aparatoso monumento em Lisboa, no alto de uma colina virada para o Castelo de São Jorge; a escala da obra era proporcional ao desejo do segundo homem mais poderoso do reino de glorificar o seu feito na própria cidade a quem D. João I devia a Coroa e que era já a capital indisputada do reino. Além disso, era uma forma de o Condestável, homem muito rico e titulado (era também mordomo-mor e tinha já recebido uma quantidade impressionante de mercês régias, sendo igualmente conde de Ourém e de Barcelos), começar a ‘espiritualizar a sua riqueza’”. Paulatinamente o Condestável desprende-se de todas as amarras do “ter” bens materiais. A vida no Convento do Carmo o faz um doador cônscio dos atos. O historiador comenta a seguir: “Fora o início de um despojamento carismático que o velho Condestável queria agora tornar absoluto: prescindir do nome de família (e que família!), abdicar dos cargos e dos títulos, reduzir-se à humilde e insignificante condição identitária de ‘Nuno’, o donato carmelita”. Prossegue o medievalista: “… consumava a sua fuga mundi, com tudo o que de redentor isso representava, em especial para um homem que havia sido tão poderoso quanto ele”.
Bem debilitado, Nuno Álvares Pereira teve morte serena. Gouveia Monteiro menciona descrição de frei José Pereira de Sant’Anna: “De acordo com a reconstituição carmelita, Nun’Álvares pediu para morrer vestido com o seu Santo Hábito e requereu uma mortalha e uma cova para o seu corpo, suplicando que lhe dessem uma sepultura rasa e sem distinção, onde pudesse ‘esconder-se sem diferença do comum dos mais homens’”. O autor nos últimos subcapítulos discorre sobre “A sepultura do donato”, “O culto popular e o livro dos milagres”, “Construir a memória do ‘Santo Conde’” e “A estrada da canonização”.
Quanto ao último, Gouveia Monteiro assinala: “Temos, portanto, que em data próxima do falecimento de Nun’Álvares, já a Coroa se referia a ele, abertamente, como ‘santo’”. Ao longo dos séculos reis e autoridades eclesiásticas ensejaram a canonização do Condestável, desde 1437 através de D. Duarte. Em 1641, D . João IV também requereu o reconhecimento da beatificação de Nuno Álvares, assim como D. Pedro II em 1674, sem contar as tratativas da Ordem Carmelita ao longo do tempo.
Após a notificação de 221 milagres associados a Nuno Álvares Pereira desde o século XV, a canonização do Condestável “apenas se viria a aproximar do seu termo em 2008, em resultado das diligências do cardeal-patriarca D. José Policarpo e das Ordem do Carmo; em 3 de julho deste ano, o papa Bento XVI (seguindo o parecer emitido pela Congregação Ordinária dos Cardeais em 7 de Junho) autorizou a publicação de dois decretos, um reconhecendo as virtudes heroicas do candidato e outro atestando a cura milagrosa da senhora Guilhermina de Jesus, de Vila Franca de Xira (que recuperara a visão). Finalmente, em 21 de fevereiro de 2009, Bento XVI anunciou a canonização, que veio a realizar-se no dia 26 de abril do mesmo ano, em Roma. Foi um final luminoso para o filho de Álvaro Gonçalves Pereira e Iria Gonçalves” (Gouveia Monteiro). Portanto, 577 anos após a morte de Nuno Álvares Pereira, desde 2009 o nome Santo Condestável se tornou oficial, embora assim fosse lembrado desde seu desenlace.
Que a religiosidade de Nuno Álvares Pereira, hoje São Nuno de Santa Maria, fora transmitida por seus ascendentes e documentada durante a atividade do jovem guerreiro parece ser consensual. As preces intensas antes das batalhas, a visualização dantesca de tantos combatentes por ele comandados e de inimigos mortos ou feridos em combate, o acolhimento de habitantes de Castela fugindo dos embates, mas tratados com humanidade pelo futuro Condestável, teriam levado o segundo homem mais rico de Portugal a tudo legar, não apenas aos seus comandados, como aos familiares, aos eremitas, e a erigir templos fundamentais para o culto religioso em Portugal. O Guerreiro, distanciando-se das batalhas, esteve, contudo, na conquista de Ceuta em 1415, trinta anos após Aljubarrota! Viver na austeridade voltada ao culto religioso e aos mais pobres – distribuição de alimentos e atendimentos vários – foi a plena redenção de uma figura entendida pelos seus coevos como já santificada.
O notável medievalista João Gouveia Monteiro, ao se debruçar sobre Nuno Álvares Pereira, o Santo Condestável, lega à literatura sobre o tema um livro impecável sob todos os planos. Ter dividido os períodos de atuação da figura histórica, quiçá a mais representativa de Portugal, dimensionando-a, propicia ao leitor a compreensão inequívoca do todo. Recomendo vivamente a leitura de “Nuno Álvares Pereira – Guerreiro, Senhor Feudal, Santo – Os três rostos do Condestável” (Lisboa, Manuscrito, 2019).
At the end of his book on Nuno Álvares Pereira, the Holy Constable, the noted medievalist João Gouveia Monteiro puts forward his personal positions, enriching the third phase of the biographee’s life, which is focused on his religious retreat in the Convent of Carmo and his links with the eremitic movement in Portugal.