Desde a fecundação ele cronometra a existência

Na estrada por que vou
Não fujo do meu norte
Edmundo Bettencourt

Inúmeros foram os blogs em que me vali das palavras do ilustre escritor e poeta português Guerra Junqueiro, “Tempo infalível e insubornável”. Sob outra égide, o notável filósofo Vladimir Jankélévich traça uma analogia através do instante do acontecido, presente na passagem, à maneira de um flash, do heliotropismo ao geotropismo, o primeiro em direção à plena luminosidade e o segundo a ter início na fração infinitesimal pós-meio dia, que levará à escuridão no perene ciclo dia-noite.

Se a premissa pode causar estranheza, diria que há o Tempo tão bem explicitado no capítulo 3, versículos 1 a 8, do Livro de Eclesiastes, Tempo para tudo na relação extraordinária do homem com os seus semelhantes, com a natureza e com o Divino. A sua passagem determina os nossos ciclos durante a vida, etapas vencidas, vitórias e derrotas, alegrias e tristezas e tantas mais configurações. Só há uma certeza, jamais poderemos alterar a sua trajetória e, da infância à ancianidade, armazenamos lembranças. São elas que corroboram o aprimoramento, graças ao precioso acúmulo do conhecimento.

Nas incontáveis atividades do homem, há Tempos precisos. Tempo físico, Tempo mental. Para algumas profissões, como nos esportes, o Tempo é implacável quanto à brevidade da ação. Dificilmente um esportista ultrapassa um terço da existência na atividade, considerado no caso a chegada à terceira ou quarta idade. Em inúmeras entrevistas, esportistas, quando na terceira idade, rememoram os fatos do esplendor da forma física e essa repetição é constante, nostálgica, pois o passado longínquo é sempre tema para cronistas esportivos e para ouvintes saudosos.

Creio que a música possibilita ao intérprete continuar a atividade até a velhice e a finalização da carreira se dá basicamente entre os 75 e 80 e tais anos, exceções existindo, como a de Mieczysław Horszowski (1892-1993), que se apresentou em público até os 99 anos, ou Arthur Rubinstein (1887-1982), que adentrou os 90.

Estou a me lembrar de uma primeira apresentação pública em 1953 no Convento São Francisco, no Largo que leva o nome do santo. A convite de D. Henrique Golland Trindade, arcebispo de Botucatu, prelado de cultura invejável e orador sacro de renome, meu irmão João Carlos e eu nos apresentamos. Após 71 anos a tocar em público, no Brasil e no Exterior, cesso as apresentações de maneira voluntária, cônscio de que sempre busquei transmitir as mensagens musicais após aprofundamentos. Chego a termo, neste pórtico dos 85 anos, convicto de nunca ter feito concessões de repertório, tampouco cedido espaço à música popular para fins mediáticos, gênero que admiro em algumas de suas tendências mais tradicionais, mas entendo como uma categoria outra. Assim pensava também o ilustre compositor Gilberto Mendes (1922-2016).

Serão três recitais neste ano, dois na Europa e um no Brasil. No dia 25 me apresentarei em Gand, na Bélgica. A escolha tem simbolismo. Nessa cidade foi lançada a maioria de meus CDs gravados na mágica capela de Mullem (século XI), tendo à frente o notável engenheiro de som Johan Kennivé. André Posman, diretor da De Rode Pomp, fez-me   o convite para a primeira gravação e a relação musical e de amizade me leva a render essa humilde homenagem aos amigos que cultuei na Bélgica Flamenga durante esses 27 anos. Um privilégio que acalento no meu de profundis.

Aos 30 o recital será em Lisboa, no Museu Nacional da Música. Encerrarei minha atividade pública na Europa na cidade em que me apresentei pela primeira vez, aos 14 de Julho de 1959, na Academia de Amadores de Música, templo sagrado do excepcional compositor português Fernando Lopes-Graça (1906-1994), que me fez o convite. Se laços de sangue existem, pois meu saudoso Pai nasceu em Braga em 1898, outros laços se formaram e as cerca de 50 viagens a Portugal, sempre a tocar, levam-me à última récita em solo europeu.

O encerramento se dará na Fundação Pinacoteca Benedicto Calixto, em Santos, no dia 24 de Agosto. Inúmeras vezes lá me apresentei, sempre com a presença de outro saudoso amigo, o excepcional compositor Gilberto Mendes (1922-2016).

Sempre preferi tocar em salas menores, geralmente tendo público mais concentrado e verdadeiramente amante da música. Foi uma das causas de jamais ter tido empresário. Enfim, são escolhas e alegro-me de ter agido sempre com esse desiderato, apesar de ter me apresentado em salas enormes, mas sem o mesmo prazer.

O próximo blog será bem curto, pois após o recital em Gand tocarei em Lisboa e darei palestras em Évora e Coimbra. Nesta, haverá o lançamento oficial de meu livro “Impressões sobre a Música Portuguesa e outros temas” (II), publicação da Imprensa da Universidade de Coimbra. Encerro o tour com entrevista na Rádio Difusão Portuguesa (RDP), sob a condução do competente Paulo Guerra.

Terei a companhia de minha querida filha Maria Beatriz. A partir do dia 10 de Junho escreverei dois blogs explicando o porquê dos repertórios apresentados e ilustrados com fotos dos eventos tiradas por Maria Beatriz.

 

After preliminary considerations about the passing of time, I explain that this year my public pianistic performances will come to an end. On this tour I will play in Ghent and Lisbon, my last recitals in Europe. There is a strong symbolism in such choices. I will give lectures in Evora and Coimbra, and in this city there will be the launching of my book “Impressões sobre a Música Portuguesa e outros temas” (II) (Coimbra, Coimbra University Press.