Navegando Posts publicados em julho, 2023

O jornalismo competente

Professor é alguém que ajuda os outros a aprender;
Mestre é, sobretudo, aquele que ajuda os outros a “desaprender”,
a desaprender conceitos errados da vida, de verdade, de sabedoria,
de Amor…
José Flórido

Desde os anos 1980 tenho precauções relacionadas a entrevistas. Voluntariamente jamais quis ter empresário e sempre me afastei dos holofotes. Trata-se de posição rigorosamente individual, que me norteia durante a existência.

Estou a me lembrar de entrevista concedida a um renomado jornal de São Paulo no segundo lustro da década de 1970, nas quais fiz observação crítica sobre Mário de Andrade e a condução da Música Brasileira, assim como indiquei uma obra para piano de Claude Debussy que, por equívoco do entrevistador, teve o nome trocado por uma outra composição, esta para orquestra. Em artigo em outro renomado periódico da cidade, músicos voltados às correntes musicais nacionalistas criticaram virulentamente minha posição a respeito de Mário de Andrade, assim como um deles observou que eu deveria saber que tal obra de Debussy não era para piano, atribuindo a mim o equívoco. Não respondi a essas críticas, pois entendi que elas visavam ao intérprete e não às suas ideias. Fossem essas conceituais, pediria direito de resposta ao periódico.

Posteriormente, quando convidado para dar entrevista, solicitava a leitura antecipada do texto a ser publicado, fato que nem sempre é de agrado de periodistas e até dos jornais ou revistas.

A premissa se faz necessária, pois exceções existem. Ter confiança absoluta em um entrevistador (a) é raro e ocorre pelo conjunto de matérias Culturais por ele (a) publicado. E chegamos à competente Leila Kiyomura do Jornal da USP.

Após trabalhar para os principais jornais de São Paulo, Leila Kiyomura desde 1993 é jornalista do Jornal da USP, especializada em temas Culturais amplos, tendo sólida formação acadêmica. Tive o grato prazer de ser por ela entrevistado no longínquo 2013, quando do lançamento do livro “José Eduardo Martins – Un pianiste brésilien” (Université Paris-Sorbonne, Série “Témoignages”, nº 4, 2012). Certamente, Leila Kiyomura, a escrever para o Jornal da Universidade de São Paulo, e Paulo Guerra, a conduzir a programação Antena2 da prestigiada RDP de Portugal, foram aqueles que mais argutamente me entrevistaram, pois preparadíssimos antes das arguições. Para Paulo Guerra foram umas dez boas e longas entrevistas, sempre quando em Lisboa para recitais e projetos realizados.

Dois fatos permitiram um novo encontro com Leila Kiyomura: a finalização de minha atividade pianística pública neste ano e a recente publicação de meu livro, “Impressões sobre a Música Portuguesa” (II), com o mesmo título do primeiro, publicado pela renomada Universidade de Coimbra fundada em 1290. Leila e a competente fotógrafa Cecília Bastos retornaram à nossa morada e, após longa conversa, dela recebi várias criteriosas perguntas para serem respondidas. O resultado foi publicado no Jornal da USP (online) no último dia 21 de Julho. Deparei-me com o título da entrevista, cujo termo inicial entendo como o mais caro da vida acadêmica, Mestre, a ter uma carga essencial que atravessa os séculos no Ocidente e no Oriente, mas que, na Academia, é o degrau a anteceder o doutorado (vide blog: “O Mestre, lembrá-lo eternamente”, 25/06/2009).

Ao final da presente entrevista, Leila Kiyomura insere um segmento, resultado da entrevista de 2013, em que, com rara sensibilidade, interpretou sensações vividas por mim em 1954.

Clique para acesso à entrevista concedida à Leila Kiyomura do Jornal da USP:

https://jornal.usp.br/cultura/o-mestre-apresenta-sua-ultima-audicao-publica/

I have reservations about interviews. There are interviewers and interviewers. Leila Kiyomura of the Jornal da USP, which focuses on cultural issues, is especially careful when interviewing, thanks to indispensable prior preparation.

 

 

Domingos Peixoto e a dedicação a um instrumento basilar

Conhecer melhor a história da nossa História,
neste reencontro com as memórias,
faz-nos compreender decididamente Aveiro
e sermos mais competentes
nos caminhos de construção de mais e melhor futuro.
João Ribau Esteves
Presidente da Câmara Municipal de Aveiro (2018)

A literatura específica sobre o órgão, instrumento que acompanha a cristandade e que, desde a Alta Idade Média, teve desenvolvimento extraordinário, tem títulos significativos e reveladores, mercê também dos constantes “progressos” quanto à sua feitura através dos séculos. A bibliografia extensa revela sempre maravilhamentos, graças à abrangência e à majestade do instrumento. Se o cravo, em suas várias feituras, sofreu  modificações, mas permaneceu silente durante o século XIX; se os instrumentos de corda continuaram basicamente sem alterações; se o piano se beneficiou da revolução industrial, que resultou na utilização do aço e na tábua harmônica mais forte, a resistir à tensão das cordas; o órgão estaria sempre in progress devido à sua complexidade, a envolver uma quantidade enorme de materiais, apresentando-se, certamente, como o mais completo entre todos os instrumentos. Entre as suas insofismáveis qualidades tem-se a infinita variedade de timbres.

Domingo Peixoto, professor de órgão, estudioso perspicaz do seu instrumento eleito, já legou vários trabalhos literários relevantes sobre o tema, além de coordenar  temporadas organísticas e dedicar-se à restauração instrumental. Resenhei neste espaço uma obra sua anterior (vide blog: “Júlia D’Almendra e o Movimento Organístico em Portugal”, 09/09/2017).

Nessa derradeira turnê à Europa, recebi de Domingos Peixoto um de seus livros, este a pormenorizar “Os Órgãos Históricos de Aveiro” (Câmara Municipal de Aveiro, 2018). O autor primeiramente relata que registros da presença do órgão em Portugal remontam às primeiras décadas do século XIV. Na história de Aveiro menciona a presença de três comunidades religiosas fundadas durante um século, de 1423 a 1524. O instrumento permaneceu durante os séculos vindouros a ser indispensável nos ofícios religiosos, num amálgama com o coro. O mais antigo órgão barroco em Aveiro, da igreja da Vera Cruz, tem a data no someiro, 1753, instrumento construído por Juan Fontanes de Maqueyra.

O autor observa que, já na primeira metade do século XVIII, “o organista terá cada vez mais a função de acompanhar o canto litúrgico, cujo texto passará progressivamente a ser cantado na íntegra. Começará, assim, a desenhar-se um novo cenário no palco litúrgico: o diálogo passará a ser não entre o órgão e o coro, mas entre dois grupos de cantores, ou entre os cantores e uma comunidade/assembleia, que o organista acompanhará de forma contínua”.

Domingos Peixoto mostra-se didata vocacionado, pois desde o primeiro capítulo, “Contextualização”, o leitor se familiariza com os porquês do órgão na comunidade em três basilares contextos: socioeconômico, religioso e litúrgico. Em todos os outros nove capítulos referentes a órgãos de Aveiro, Peixoto historia e pormenoriza, da procedência à feitura, revelando intimidade com todo o material utilizado em cada órgão, fruto da engenhosidade de organeiros, fato que amplia enormemente a pesquisa, mercê da diversidade. Se o resultado sonoro tem certa similaridade entre os vários instrumentos, a estrutura de cada órgão determinaria timbres personalizados. Peixoto detém-se nessa investigação criteriosa, na diversificação dos tubos verticais nas suas variadas dimensões; naqueles em chamada, geralmente não uniformes no que tange ao direcionamento das cornetas, podendo ser horizontais, verticais ou com inclinações diversas; na tubaria como um todo. A ausência de pedaleira nos órgãos ibéricos, que inibe os graves mais profundos, talvez tenha privilegiado a feitura de tubos menores para determinados órgãos. Atento aos registos de cada instrumento, pormenoriza-os. As talhas barrocas em madeira, realizadas por mestres especializados, merecem também a atenção do autor.

Domingos Peixoto reserva especial atenção ao “Órgão Grande” da Igreja de Jesus. Escreve: “Lançada a primeira pedra da igreja em 1462 com a presença de D. Afonso V, o edifício do novo mosteiro seria inaugurado solenemente em 31 de Dezembro de 1464 e 1 de Janeiro de 1465. O monarca deslocar-se-ia de novo à Vila de Aveiro em 1466 para assistir à profissão das princesas religiosas. As últimas décadas do século XV foram marcadas pela presença da Infanta Dona Joana entre 1472 e 1490, ano do seu falecimento, e pelo despertar do culto à Santa Princesa”. Na realidade, cultuada, Santa Joana Princesa é apenas reconhecida pela Igreja Católica como beata.

O autor lamenta estar o “Órgão Grande” desativado. Comenta: “Uma particular interpelação é feita pela majestosa obra de arte que representa o ‘Órgão grande’ da igreja de Jesus – o ex-libris da nossa vida organística – cuja opulência rivaliza com o esplendor setecentista das festas em honra de Santa Joana; mas, dele subsiste in loco apenas a fachada”.

Domingos Peixoto constata que “… apenas dois desses órgãos estudados foram restaurados: o do coro alto da igreja de Jesus e o da igreja da Misericórdia, faz agora quinze anos… Resta-nos esperar que destas linhas brote um impulso novo à recuperação do conjunto dos órgãos históricos da cidade, uma ‘maioria silenciosa’ à espera de quem lhe dê a palavra”.

De muito interesse os apêndices de “Os Órgãos Históricos de Aveiro”, pois Domingos Peixoto aborda instrumentos já desaparecidos, outros órgãos de menor dimensão, alguns domésticos, espalhados pela cidade e vizinhança, os modernos, utilizados também em ambientes laicos, sendo que vários fabricados no Exterior. Tanto nos órgãos Históricos como em outros mais, o especialista Domingos Peixoto analisa os poucos restauros realizados.

De suma importância o debruçamento através de décadas a que se dedicou Domingos Peixoto, sempre com o olhar amoroso, legando ao leitor e à História uma obra basilar em bela edição e plena de ilustrações que corroboram o entendimento.

Dos pouquíssimos órgãos barrocos que ainda subsistem no Brasil, apenas quatro, localizados em Minas Gerais, funcionam bem. O órgão da Igreja Matriz de Santo Antônio em Tiradentes, encomendado em 1779 e construído na cidade do Porto, chegou à cidade em 1798 e teve moldura entalhada, pintura e douramento realizados por artistas no Brasil. Nos anos 1982 e 1991 dei recitais a privilegiar composições de Manuel Rodrigues Coelho (1555-1635), Champion de Chambonnières (1601/2-1672), Johann Kuhnau (1660-1722), Carlos Seixas (1704-1742) e Sonatas para órgão e cordas de Mozart (1756-1791), no âmbito dos Festivais de inverno em Prados, MG (1982-1991), fundado pelo Maestro Olivier Toni (1926-2017).

Domingos Peixoto, an authority on organology, presents us with “Os Órgãos Históricos de Aveiro” (Historic Organs of Aveiro), a book that adds to other researches by the author, establishing a milestone in the unveiling of the existing organs in Aveiro, from baroque to modernity.

 

Bach-Liszt – “Prelúdio e Fuga em lá menor”

A unidade da obra tem sua ressonância.
Seu eco, que penetra nossa alma, ressoa de um em um.
A obra finda se expande para se comunicar
e retorna enfim ao seu princípio.
Igor Stravinsky (1882-1971)

Não poucas vezes abordei o tema das transcrições (vide blog: “Transcrição e interpretação”, 27/08/2022). Elas existem sob inúmeras destinações instrumentais e surgem, a preponderar, da admiração de um compositor pela criação de um antecessor. A obra de J.S.Bach (1685-1750) foi manancial para inúmeros compositores pósteros realizarem transcrições de algumas de suas criações, mormente aquelas originalmente para órgão, voltadas doravante para o piano. O próprio Bach não transcreveria criações de Antonio Vivaldi (1678-1741)? Puristas entendem como desrespeito, enquanto os afeitos à qualidade dessas leituras d’après originais, como homenagem. A transcrição da monumental composição para piano de Moussorgsky, “Quadros de uma Exposição”, realizada por Ravel para grande orquestra tornou-se icônica. Shostakovich (1906-1975) e Francisco Mignone (1897-1986) também orquestraram a criação do compositor russo. Claude Debussy (1862-1915) deu o seu nihil obstat para a transcrição que seu editor Jacques Durand (1865-1928) realizou de suas duas danças, “Danse Sacrée et Danse Profane”, originariamente compostas para harpa e orquestra de cordas. Quantos compositores mais não tiveram suas obras transcritas?

Durante a pandemia, em que a terceira e a quarta idades foram “convidadas” a permanecer reclusas, e que salas de concerto ficaram silentes, tive o grato prazer de ler uma série de transcrições realizadas por músicos que permaneceram na História. Ratifiquei minha admiração pelas suas feituras qualitativas, que só foram realizadas mercê do apreço deles pelos originais e pela vontade de torná-las possíveis também em instrumentações outras.

Naquele período sombrio revisitei duas, realizadas pelo notável compositor e saudoso amigo Gilberto Mendes (1922-2016) após minha solicitação no sentido de que elas também soariam bem se realizadas para piano solo: “Ulysses em Copacabana, surfando com James Joyce e Dorothy Lamour”, para 10 instrumentos, assim como “O Pente de Istambul”, para duo de percussão. Apresentei-as em duas programações do Festival Música Nova, fundado por Gilberto. A prática da “autotranscrição”, se assim podemos definir, foi inúmeras vezes realizada por notáveis compositores. Jean-Philippe Rameau (1683-1764) transcreveria a “Chaconne”, peça final da ópera “Les Indes Galantes”, para cravo, assim como outras de suas criações operísticas. Gabriel Fauré (1845-1924) fê-lo ao transcrever a “Ballade op. 19” para piano solo em versão para piano e orquestra de cordas; Henrique Oswald (1852-1931) também o fez, ao transcrever para quinteto de cordas e piano o seu “Concerto para piano e orquestra sinfônica”. Sugeri ao compositor francês François Servenière (1961-) a transcrição para piano de “Promenade sur la Voie Lactée”,  criada para orquestra sinfônica. Gravei-a para o CD “Retour à l’Enfance”.

Clique para ouvir, de François Servenière, “Promenade sur la Voie Lactée”, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=JQDkWn1HcpQ

Ilustres figuras realizaram transcrições de composições de J.S.Bach. Ferrucio Busoni (1866-1924) transcreveu para piano vários corais de Bach e a magnífica “Toccata, Intermezzo e Fuga”; Tausig (1841-1871) seria consagrado com a transcrição da “Toccata e Fuga em ré menor”; Liszt (1811-1886) transcreveria o “Preludio e Fuga” em lá menor, assim como composições de vários outros autores; Wilhelm Kempff (1895-1991); Alexander Siloti (1863-1945); Myra Hess (1890-1965) e outros mais visitaram composições de Bach e foram tentados a ouvi-las ao piano.

Nos tempos pandêmicos, minha dileta amiga, professora Jenny Aisenberg, ligou-me a dizer que ouvira a transcrição Bach-Liszt do “Prelúdio e Fuga em lá menor”, de Bach, composta originalmente para órgão, na interpretação da notável pianista russa Maria Yudina (vide blog: “Maria Yudina – 1899-1979, 15/08/2020). Conhecia esse “Prelúdio e Fuga”, mas fiquei fascinado pela força emotiva de Maria Yudina. Revisitei essa transcrição junto a tantas outras do gênero.

Nessa última turnê, que assinalou o término de meus recitais na Europa em países que me são particularmente caros, Bélgica e  Portugal, no dia a seguir ao meu derradeiro recital europeu, em Lisboa, dei palestra com vários exemplos musicais de notáveis compositores portugueses: Carlos Seixas (1704-1742), Francisco de Lacerda (1869-1934),  Fernando Lopes-Graça (1906-1994) e Eurico Carrapatoso (1962-). Um ouvinte, que estivera no ano passado no recital que ofereci em Tomar, lá estava em Évora e pediu-me para tocar o “Prelúdio e Fuga” em lá menor, Bach-Liszt. O técnico Gavela, que assessora o Eborae Mvsica, gravou em vídeo a interpretação e me ofereceu. O dileto amigo Elson Otake, responsável há anos pelas minhas gravações no Youtube, introduziu essa magnífica transcrição. Como se tratava de palestra com exemplos, sequer abri a tampa do piano. Contudo, a magnífica igreja barroca de Nossa Senhora dos Remédios tem ótima acústica e abriga algumas aulas especiais e recitais promovidos pela Escola Eborae Mvsica, tão bem dirigida pela professora Helena Zuber. Elson acrescentou, ao final dessa gravação em apreço, três outras transcrições de obras de Bach que gravei em 2005 na Capela Saint-Hilarius em Mullem, Bélgica, presentemente no Youtube: Bach-Hess (Coral “Jesus alegria dos homens”), Bach-Kempff  (“Despertai, a voz está a soar”) e Bach-Siloti (“Prelúdio para órgão em sol menor”).

Clique para ouvir, de J.S.Bach-Liszt, “Prelúdio e Fuga” em lá menor, na interpretação ao vivo de J.E.M.

https://www.youtube.com/watch?v=VBSv8zoIHdI&t=2s

Sponsored by Eborae Mvsica,  on May 31 of this year I gave a lecture with musical illustrations in Évora, in the Baroque church of Nª Senhora dos Remédios, performing Portuguese composers. Previously I had been  asked to play also the Prelude and Fugue in A minor by Bach-Liszt, a beautiful transcription. The recording is on Youtube . It was my last recording of the year in which I end my public performances at the age of 85. Also on Youtube are  my recordings of three other transcriptions of works by J.S.Bach: Jesu, Joy of Man’s Desiring (Bach-Hess), Awake, the voice is sounding (Bach-Kempff), Organ prelude in g minor (Bach-Siloti).