Domingos Peixoto e a dedicação a um instrumento basilar

Conhecer melhor a história da nossa História,
neste reencontro com as memórias,
faz-nos compreender decididamente Aveiro
e sermos mais competentes
nos caminhos de construção de mais e melhor futuro.
João Ribau Esteves
Presidente da Câmara Municipal de Aveiro (2018)

A literatura específica sobre o órgão, instrumento que acompanha a cristandade e que, desde a Alta Idade Média, teve desenvolvimento extraordinário, tem títulos significativos e reveladores, mercê também dos constantes “progressos” quanto à sua feitura através dos séculos. A bibliografia extensa revela sempre maravilhamentos, graças à abrangência e à majestade do instrumento. Se o cravo, em suas várias feituras, sofreu  modificações, mas permaneceu silente durante o século XIX; se os instrumentos de corda continuaram basicamente sem alterações; se o piano se beneficiou da revolução industrial, que resultou na utilização do aço e na tábua harmônica mais forte, a resistir à tensão das cordas; o órgão estaria sempre in progress devido à sua complexidade, a envolver uma quantidade enorme de materiais, apresentando-se, certamente, como o mais completo entre todos os instrumentos. Entre as suas insofismáveis qualidades tem-se a infinita variedade de timbres.

Domingo Peixoto, professor de órgão, estudioso perspicaz do seu instrumento eleito, já legou vários trabalhos literários relevantes sobre o tema, além de coordenar  temporadas organísticas e dedicar-se à restauração instrumental. Resenhei neste espaço uma obra sua anterior (vide blog: “Júlia D’Almendra e o Movimento Organístico em Portugal”, 09/09/2017).

Nessa derradeira turnê à Europa, recebi de Domingos Peixoto um de seus livros, este a pormenorizar “Os Órgãos Históricos de Aveiro” (Câmara Municipal de Aveiro, 2018). O autor primeiramente relata que registros da presença do órgão em Portugal remontam às primeiras décadas do século XIV. Na história de Aveiro menciona a presença de três comunidades religiosas fundadas durante um século, de 1423 a 1524. O instrumento permaneceu durante os séculos vindouros a ser indispensável nos ofícios religiosos, num amálgama com o coro. O mais antigo órgão barroco em Aveiro, da igreja da Vera Cruz, tem a data no someiro, 1753, instrumento construído por Juan Fontanes de Maqueyra.

O autor observa que, já na primeira metade do século XVIII, “o organista terá cada vez mais a função de acompanhar o canto litúrgico, cujo texto passará progressivamente a ser cantado na íntegra. Começará, assim, a desenhar-se um novo cenário no palco litúrgico: o diálogo passará a ser não entre o órgão e o coro, mas entre dois grupos de cantores, ou entre os cantores e uma comunidade/assembleia, que o organista acompanhará de forma contínua”.

Domingos Peixoto mostra-se didata vocacionado, pois desde o primeiro capítulo, “Contextualização”, o leitor se familiariza com os porquês do órgão na comunidade em três basilares contextos: socioeconômico, religioso e litúrgico. Em todos os outros nove capítulos referentes a órgãos de Aveiro, Peixoto historia e pormenoriza, da procedência à feitura, revelando intimidade com todo o material utilizado em cada órgão, fruto da engenhosidade de organeiros, fato que amplia enormemente a pesquisa, mercê da diversidade. Se o resultado sonoro tem certa similaridade entre os vários instrumentos, a estrutura de cada órgão determinaria timbres personalizados. Peixoto detém-se nessa investigação criteriosa, na diversificação dos tubos verticais nas suas variadas dimensões; naqueles em chamada, geralmente não uniformes no que tange ao direcionamento das cornetas, podendo ser horizontais, verticais ou com inclinações diversas; na tubaria como um todo. A ausência de pedaleira nos órgãos ibéricos, que inibe os graves mais profundos, talvez tenha privilegiado a feitura de tubos menores para determinados órgãos. Atento aos registos de cada instrumento, pormenoriza-os. As talhas barrocas em madeira, realizadas por mestres especializados, merecem também a atenção do autor.

Domingos Peixoto reserva especial atenção ao “Órgão Grande” da Igreja de Jesus. Escreve: “Lançada a primeira pedra da igreja em 1462 com a presença de D. Afonso V, o edifício do novo mosteiro seria inaugurado solenemente em 31 de Dezembro de 1464 e 1 de Janeiro de 1465. O monarca deslocar-se-ia de novo à Vila de Aveiro em 1466 para assistir à profissão das princesas religiosas. As últimas décadas do século XV foram marcadas pela presença da Infanta Dona Joana entre 1472 e 1490, ano do seu falecimento, e pelo despertar do culto à Santa Princesa”. Na realidade, cultuada, Santa Joana Princesa é apenas reconhecida pela Igreja Católica como beata.

O autor lamenta estar o “Órgão Grande” desativado. Comenta: “Uma particular interpelação é feita pela majestosa obra de arte que representa o ‘Órgão grande’ da igreja de Jesus – o ex-libris da nossa vida organística – cuja opulência rivaliza com o esplendor setecentista das festas em honra de Santa Joana; mas, dele subsiste in loco apenas a fachada”.

Domingos Peixoto constata que “… apenas dois desses órgãos estudados foram restaurados: o do coro alto da igreja de Jesus e o da igreja da Misericórdia, faz agora quinze anos… Resta-nos esperar que destas linhas brote um impulso novo à recuperação do conjunto dos órgãos históricos da cidade, uma ‘maioria silenciosa’ à espera de quem lhe dê a palavra”.

De muito interesse os apêndices de “Os Órgãos Históricos de Aveiro”, pois Domingos Peixoto aborda instrumentos já desaparecidos, outros órgãos de menor dimensão, alguns domésticos, espalhados pela cidade e vizinhança, os modernos, utilizados também em ambientes laicos, sendo que vários fabricados no Exterior. Tanto nos órgãos Históricos como em outros mais, o especialista Domingos Peixoto analisa os poucos restauros realizados.

De suma importância o debruçamento através de décadas a que se dedicou Domingos Peixoto, sempre com o olhar amoroso, legando ao leitor e à História uma obra basilar em bela edição e plena de ilustrações que corroboram o entendimento.

Dos pouquíssimos órgãos barrocos que ainda subsistem no Brasil, apenas quatro, localizados em Minas Gerais, funcionam bem. O órgão da Igreja Matriz de Santo Antônio em Tiradentes, encomendado em 1779 e construído na cidade do Porto, chegou à cidade em 1798 e teve moldura entalhada, pintura e douramento realizados por artistas no Brasil. Nos anos 1982 e 1991 dei recitais a privilegiar composições de Manuel Rodrigues Coelho (1555-1635), Champion de Chambonnières (1601/2-1672), Johann Kuhnau (1660-1722), Carlos Seixas (1704-1742) e Sonatas para órgão e cordas de Mozart (1756-1791), no âmbito dos Festivais de inverno em Prados, MG (1982-1991), fundado pelo Maestro Olivier Toni (1926-2017).

Domingos Peixoto, an authority on organology, presents us with “Os Órgãos Históricos de Aveiro” (Historic Organs of Aveiro), a book that adds to other researches by the author, establishing a milestone in the unveiling of the existing organs in Aveiro, from baroque to modernity.