Navegando Posts publicados em setembro, 2023

“Macchiette” op.2  – 12 “Piccoli Pezzi” (1878-1883)

E que dizer dos ouvintes habituais das salas de concerto?
Seu repúdio pela mudança é inacreditável!
Seus cérebros obscurecidos não registram que certas combinações sonoras,
à exclusão de todas as outras.
Olivier Messiaen (1908-1992)

Salientáramos, no blog referente às seis peças op. 4 de Henrique Oswald, que esse gênero de composição – peças isoladas formando coletânea – foi frequentado por parte considerável daqueles que escreveram para piano. Teve ampla aceitação nos saraus musicais, mormente no século XIX e nas primeiras décadas do século XX. Uma fronteira tênue separa o op. 4 de Oswald das suas miniaturas. Estas constituem a síntese da síntese, traduzindo a maestria do músico através do espírito voltado ao essencial, desprovido de quaisquer artificialismos. Descritivas ou abstratas, as miniaturas encantam pelo despojamento. Três outras coletâneas de miniaturas que gravei na Bélgica me dizem muito: as “Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste”, do notável compositor açoriano  Francisco de Lacerda (1869-1934), que podem ser ouvidas pelo Youtube; as 28 “Músicas de piano para as crianças”, do grande Fernando Lopes-Graça (1906-1994), lançadas em Portugal em álbum duplo a contemplar outras criações do mestre português e as dez miniaturas que constituem “Bluettes” de Oswald, lançadas no Brasil pelo selo Sesc juntamente com outras composições do autor.

Sempre a divulgar compositores e intérpretes pátrios, o Instituto Piano Brasileiro introduziu no Youtube as doze miniaturas de Henrique Oswald (1852-1931) que compõem “Macchiette”, 12 piccoli pezzi compostas entre 1878-1883 em Firenze. Intercala títulos a sugerir determinadas cenas – como “La Campane dela Sera” que, após exposição, leva suavemente o badalar dos sinos à extinção; “Ninna-Nanna”, que corresponderia à curta “Niania” de Moussorgsky (1839-1981) ao se lembrar de sua babá; “Pastorale” que conduz o ouvinte à cena bucólica; “La caccia” e as cornetas excitando ritmicamente os praticantes da prática esportiva nas pradarias – com outros relativos à dança. O resultado é uma coletânea plena de um charme inefável. Deveria estar presente nos currículos das escolas de música, pois “Macchiette” corrobora ensinamentos voltados ao gosto musical e à condução das frases musicais.

Pelo fato de as miniaturas estarem inseridas em 12 links, dividi “Macchiette”  em três segmentos:

La Campane Della Sera op. 2 nº 1

Henrique Oswald – Le campane della sera [Os sinos da noite] Op.2 No.1 (José Eduardo Martins, piano) – YouTube

Scherzo op. 2 nº 2

https://www.youtube.com/watch?v=qZg85NviF1U

Valsa op. 2 nº 3

https://www.youtube.com/watch?v=POnXFOg11OQ

Cançoneta op. 2 nº 4

https://www.youtube.com/watch?v=65lbaRnaAfs

O álbum da “Macchiette” op.2, publicado na Itália, corroboraria a didática de Henrique Oswald voltada, no caso, aos alunos já com conhecimentos pianísticos básicos. O título da coletânea tem diversas apreensões. Há um desenho de Francesco Lazzaro Guardi (1712-1793) que é nomeado “Macchiette”. O termo “Macchietta” relaciona-se a ato de comédia vigente no período em que a coletânea foi composta. Seria também possível que Oswald tivesse observado criações de jovens que buscavam pintar naquelas décadas ao ar livre, privilegiando a natureza em tonalidades contrastantes. O grupo, denominado “Macchaioli”, nasceu em Florença (1855 – década de 1870). Anos após o surgimento do grupo de artistas na Toscana, suas pinturas marcantes tiveram influência no impressionismo francês.

Ninna-Nanna op. 2 nº 5

https://www.youtube.com/watch?v=7i8cNwZrKqI

Marcia op. 2 nº 6

https://www.youtube.com/watch?v=pIAPtcOTeOg

Romance op. 2 nº 7

https://www.youtube.com/watch?v=thpwnhYYsd4

Gavota nº 2 op. 2 nº 8

https://www.youtube.com/watch?v=ke8FfQRqyiw

“Macchiette” favoreceria a comparação, em parte, com a criação pictórica. Reuni-las em dimensão adequada, a ter sempre em mente o caráter que as une, é um dos fatores que torna “Macchiette” uma coletânea tão harmoniosa. Não se iluda o leitor. Nosso grande Nelson Freire (1944-2021), em entrevista décadas atrás, confessou que as peças singelas eram as mais difíceis de serem gravadas. Corroboro a opinião do pianista, pois, despojada de qualquer artificialismo, a miniatura sinaliza a síntese da síntese, como afirmo acima.

Pastoral op 2 nº 9

https://www.youtube.com/watch?v=KcT7hreFq5o

Minueto op. 2 nº 10

https://www.youtube.com/watch?app=desktop&v=BUjangG9Nus

Sarabanda op. 2 nº 11

https://www.youtube.com/watch?app=desktop&v=vQae0skmcwI

A Caça op. 2 nº 12

https://www.youtube.com/watch?v=y7p0F_OY1Vw

Assim como as obras portuguesas citadas anteriormente, extraordinárias na feitura, mas quase nulamente frequentadas pelos pianistas, “Macchiette” segue a mesma sina. Poder-se-ia fazer uma edição fac-similada, mas haveria interessados em apresentá-la em público? Assistimos, a cada ano mais acentuadamente, à atração provocada pelos holofotes por parte de intérpretes numa acelerada conquista de recordes velocistas. Essa aparência da verdade pode satisfazer egos de excepcionais virtuoses, habitués do repertório que atrai o público, pois a reverência a tantos magistrais compositores basicamente ignotos parece não os interessar. O não engajamento à imensa porção do iceberg repertorial submerso tipifica intérprete e público. Uma lacuna absoluta existe e é negligenciada pelos protagonistas envolvidos. Há esperanças. Que se concretizem.

“Macchiette”, a collection of 12 short pieces, is one of Henrique Oswald’s most sensitive piano creations: 12 miniatures, a synthesis of compositional synthesis.

Respondendo aos incentivos recebidos

A música torna um homem sábio?
Só há sabedoria se associada à perenidade e serenidade:
A sabedoria não só é coextensiva com toda a vida,
como também nos traz calma e reduz a nossa inquietude.
Parece, no entanto, que a música nunca nos dá uma sabedoria total, mas apenas uma meia-sabedoria:
quando os seus efeitos são duradouros, são avassaladores;
e quando é tranquilizadora,
a serenidade que lhe devemos é geralmente efêmera.
Vladimir Jankélévitch

Agradeço aos leitores pelas inúmeras mensagens “provocadoras” posicionando-se a favor da continuidade das apresentações pianísticas públicas. Mencionam tantos retornos, após a definição de encerramento de ilustres figuras das artes ou de destacados esportistas, decisões essas que poderiam me levar a considerar resolução consciente tomada. Comove-me essa preciosa atenção.

Não tivesse havido um outro recente findar, referindo-me às gravações, cujo término se deu em 2019, igualmente voluntário e sem quaisquer sequelas, o término presente poderia estar sujeito à mudança de atitude. Anteriormente já mencionara que o período pandêmico, entre males e precauções, serviu para reflexões sobre a existência e finitudes, mercê de tantos que se foram, não poucas figuras conhecidas, inclusive uma querida cunhada. A incerteza quanto à vida levou-me à certeza da precisa finitude que se avizinhava, o encerramento da atividade pianística pública. “Qual a sua razão de não empregar a palavra carreira”, questiona um leitor. Jamais utilizei o termo, este destinado àqueles que se apresentam sistematicamente dezenas de vezes ao ano. Apesar de ter repertório tradicional, que poderia proporcionar quantidade de recitais e consequente repetição repertorial, tinha a convicção de que obras do passado criadas por notáveis compositores, mas pouco ou nada frequentadas, assim como determinadas tendências da composição contemporânea que me encantam, ajudaram-me a descortinar o desconhecido, revelando soluções incríveis que, ao longo dos séculos, grandes mestres têm depositado nas partituras. Farol que me permitiu singrar a via musical sempre amorosamente. Reza a história que o grande público gosta de ouvir as obras consagradas, repetitivamente apresentadas, necessidade que a ele se impõe de manter referências.

Clique para ouvir, de Alexandre Scriabin, Feuillet d’Album Op. 45, nº 1, na interpretação de J.E.M:

https://www.youtube.com/watch?v=ug7MD8jWo4M&t=61s

Ao longo de dezesseis anos e meio de blogs ininterruptos não deixo de salientar compromisso com a música. A finalização da apresentação pública não significa a interrupção abrupta. Continuarei a perpassar quantidade expressiva de obras que me ajudaram a entender o potencial da música sobre o homem. Irei apresentá-las em reuniões reservadas, precedidas de comentários sobre a criação musical. Aprofundamentos estão em andamento a respeito de algumas composições eleitas ou a redescobrir.

Um dos meus autores preferidos, o filósofo-musicólogo Vladimir Jankélévich (1903-1985), tantas foram as suas obras que percorri desde os anos 1970, tem uma passagem basilar em um de seus livros essenciais: “La Musique et l’Ineffable” (Paris, Éditions du Seuil, 1983). Escreve: “Há na música uma dupla complicação, geradora de problemas metafísicos e morais, feita para distrair nossa perplexidade. De fato, a música é por sua vez expressiva e inexpressiva, séria e frívola, profunda e superficial; ela tem e não tem uma razão. Seria a música uma diversão sem limite? Ou talvez se trate de uma linguagem cifrada e como o hieróglifo de um mistério? Ou talvez os dois juntos?”.

Marcelo, um amigo várias vezes mencionado nos blogs, fez-me anos atrás a pergunta descontraída e que está, coincidentemente, explícita no texto de Jankélévich. Seria a música entretenimento e diversão ou algo mais? Respondi-lhe na ocasião que, fosse ela diversão ou simples entretenimento, não estaria eu a dedicar a existência cultuando-a. Jankélévich insere palavras fulcrais: “séria e frívola, profunda e superficial”. Séria teria toda relação com profunda, razão e conhecimento se aplicam à música clássica, culta, erudita ou de concerto. Frívola e superficial inserem-se no “codinome” efêmero. Os séculos apenas ratificam a imanência da música de concerto. Apesar da desproporção gigantesca entre a música permanente e a efêmera, é esta última que tem aumentado assombrosamente a divulgação frente às multidões que acorrem aos espetáculos, majoritariamente em amplos espaços. Para o gênero frívolo, a mutação constante e o esquecimento do que foi apresentado no espetáculo anterior norteiam aqueles que a ele se dedicam, promovem e arregimentam numeroso público, geralmente mais jovem. A mutabilidade do efêmero torna-o motivo de anseio para milhões de adeptos em busca de ídolos, incensados no ato, substituídos rapidamente por outros.

 

Não sou insensível à música não pertencente à denominada clássica. Admirei alguns “clássicos” da música popular e a lista é longa: o jazz band norte-americano sob a condução de Benny Goodman, Tommy Dorsey, cantores como Ella Fitzgerald, Bing Crosby, Frank Sinatra, Charles Aznavour e os nossos Lupicínio Rodrigues, Ataulfo Alves, Dorival Caymi, Tom Jobim e tantos outros. Suas criações, que perduraram durante décadas, basicamente estiolaram-se com o emergir frenético de tendências outras em mutação impactante e musicalmente duvidosas e descartáveis.

Essas divagações apenas ratificam algo que entendo como dádiva, a de continuar a cultuar a música denominada clássica. O repertório é imenso. O pianista teria de viver gerações para conhecer parte do legado deixado por mestres que escreveram para cravo, pianoforte e piano.

Finda a apresentação pública, abre-se um caminho novo que me entusiasma, o intimismo diante de amigos fiéis. Precedida de uma explanação sobre determinado tema, interpretarei periodicamente algumas obras referenciais. Regina participará executando criações que a História preservou. Se as sonoridades estarão presentes, dois livros começam a ganhar forma em minha mente.

Acredito ter respondido aos inúmeros leitores que generosamente me pedem para prosseguir. Nestes próximos meses outras gravações, constantes nos meus CDs, serão introduzidas no Youtube. Bem hajam.

Clique para ouvir, de Jean-Philippe Rameau, “Les Niais de Soligne”, na interpretação de J.E.M:

https://www.youtube.com/watch?v=xdKjHjNx700&t=299s

I have received many messages encouraging me to continue with the public performances. I’d like to make a few comments on the subject and thank the readers for their kindness.

“O Piano Intimista de Henrique Oswald”

Continuo a pensar que o músico é alguém
com quem se pode contar para levar a paz ao seu semelhante,
mas que é também um lembrete do que é a excelência humana;
acredito que o nosso mundo finito segrega esforços individuais finitos para dar corpo a um ideal.
Yehudi Menuhin (1916-1999)

Alvissareira a atitude do Instituto Piano Brasileiro, dirigido pelo competente Alexandre Dias, ao disponibilizar para o Youtube composições para piano de Henrique Oswald que gravei na Bélgica e foram lançadas em CD para o selo da Academia Brasileira de Música. Cuidadosamente o Instituto as inseriu com as partituras, fator decisivo para que tais obras despertem o interesse daqueles que porventura  desejem estudá-las.

A anteceder a vontade do Instituto do Piano Brasileiro, várias outras gravações que realizara na Bélgica já pontuavam no aplicativo, mormente as de música de câmara com piano. O CD “O piano intimista de Henrique Oswald”, lançado em 2012 pela Academia Brasileira de Música, ABM, contém unicamente peças para piano, entre elas duas coletâneas sensíveis, “Machiettes” op. 2 e “Six Morceaux” op. 4, compostas no longo período em que Henrique Oswald viveu em Florença.

A inserção da “Rêverie” op. 4 nº 2 no post anterior levou dois atentos leitores a pedir-me para introduzir outras peças desse opus em um próximo blog. São cinco outras composições. A fim da ideia de conjunto, posiciono os seis links, divididos em três segmentos. No substancioso catálogo do Instituto Piano Brasileiro, as seis peças estão individualizadas. Três leitores gostariam de saber mais sobre o romantismo “nostálgico”, segundo um dos ouvintes por ele detectado na expressiva “Rêverie”. Meu dileto amigo e ilustre compositor francês François Servenière observou que o romantismo oswaldiano “vai direto ao coração”. As seis peças que compõem o opus 4 têm títulos convencionais.

Valse op. 4 nº 1

https://www.youtube.com/watch?v=efR9ENaw50I&t=3s

Rêverie op. 4 nº 2

https://www.youtube.com/watch?v=kQVASBH6oRM

Entender a destinação das pequenas peças para piano de Henrique Oswald nos faz penetrar no período em que elas foram compostas. Há certamente uma herança, recebida pelos compositores do século XIX, de patrimônio amplamente praticado pelos autores desde a segunda metade do século XVII e destinado ao cravo. A Suíte constituída por diversas peças, mormente danças de índoles e andamentos diversos, preponderou na primeira metade do século XVIII. Durante o século XIX compositores organizaram coletâneas de peças curtas. Essas breves composições reunidas não mantinham a rigorosa observância da tonalidade, fator existente nas peças das Suítes para cravo. Poder-se-ia acrescentar que a imaginação dos compositores, distante das “amarras” que a Suíte impunha, foi povoada por temáticas outras e a dança deixou de ser essencial.


Oswald estaria rigorosamente a professar tendência tão apregoada, pois muitos compositores que perduraram pela qualidade escreveram coletâneas, sendo que essas curtas peças ou poderiam ser interpretadas isoladamente ou reunidas de acordo com a intenção do criador. As curtas composições poderiam, ao gosto do autor, ter ou não um título. Sob outra égide, o termo Suíte continuou a ser utilizado e um exemplo claro é a Suite Bergamasque de Claude Debussy (1862-1918). Maurice Ravel (1875-1937) comporia Le Tombeau de Couperin a ter em mente a Suíte barroca e a nomenclatura das peças.

Quanto a Oswald, frise-se a fluência dessas pequenas e expressivas criações e a recepção pela comunidade, graças ao lirismo inerente em suas composições. A dificuldade média, sob o aspecto técnico pianístico, resultaria na absorção pelos estudantes de piano que as interpretavam em saraus da burguesia florentina.

Minueto op.4 nº 3

https://www.youtube.com/watch?v=mJw238kXbZk&t=38s

Berceuse op. 4 nº 4

https://www.youtube.com/watch?v=0yU3gEcXvVU&t=9s

As dezenas de pequenas peças de Henrique Oswald obedeciam a destinações claras e bem adequadas ao meio em que vivia. Compõe danças e peças a sugerirem estado de alma, observação da natureza e temáticas mais. Não obstante, titulações que permanecem pela tradição são bem comuns na obra para piano de Oswald e as que apresento neste blog são incontestáveis exemplos.

Tendo pleno domínio da escrita, contudo Oswald prima pelo emprego de melodias de fácil apreensão, mercê de uma enorme capacidade em criar temas cativantes. Se Oswald é incontestavelmente um grande melodista, deve-o também ao fato de que, na Itália, o culto à ópera e à melodia produziu temas contagiantes nesses gêneros praticados na península.

Barcarolle op. 4 nº 5

https://www.youtube.com/watch?v=AVZCFB_v_ro

Impromptu op. 4 nº 6

https://www.youtube.com/watch?v=HW5wC-wlFbw

The Brazilian Piano Institute, which has been developing a unique revival of Brazilian composers and performers, recently introduced recordings from the CD I recorded in Belgium and released by the Brazilian Academy of Music, under the title “The Intimate Piano of Henrique Oswald”. The six pieces that make up op. 4 are of rare beauty and bear witness to a sensitive period lived by the composer in Firenze.