Como não se comover com as mensagens recebidas?

Ó minha velha companheira, minha música, você é melhor do que eu.
Sou um ingrato, eu te dispenso.
Mas não me deixas, não deixas que os meus caprichos te afastem.
Tu me desculpas, sabes que estou a brincar.
Eu nunca te traí, tu nunca me traíste, estamos seguros um do outro.
Vamos embora juntos, minha amiga. Fica comigo até ao fim!
Romain Rolland (1866-1944)
(“Jean Christophe”)

Na manhã sequente à chegada a São Paulo, após o recital derradeiro em Santos, fui ao estúdio e, distraído, o primeiro pensamento surgiu a respeito de qual repertório para um próximo recital. Diria que um automatismo me fez assim pensar. Passado o instante do acontecido, fiquei sim a refletir, nesse day after, sobre as partituras não lidas que me darão certamente prazer de ler, estudar e transmitir a amigos em reuniões privadas. Como a respiração não pede férias, os pianos não ficarão silentes.

Guardando todas as reservas necessárias quanto à intenção de divulgar mensagens generosas que chegam, separei algumas, dado o fato de ter sido a última apresentação pública. Agradeço profundamente neste espaço aos sensíveis remetentes mencionados e a todos que escreveram.

“José Eduardo, sem palavras…
Você não poderia ter encerrado seus concertos em público de uma maneira mais majestosa, no seu auge, sem concessões…
Assim como no seu concerto maravilhoso de outubro do ano passado no Teatro Guarani, pude notar a modernidade de todas as obras, de todos os compositores de todos os tempos, como se todos obedecessem a uma única linha atemporal.
Por exemplo, no seu concerto do último dia 31, as obras de Liszt são tão modernas quanto os estudos do Almeida Prado e do Gilberto, como se não houvesse uma separação do tempo em que elas foram compostas.
Enfim, o que podemos notar é que os Grandes são eternos, assim como você, José Eduardo, como intérprete de toda essa grandiosidade que nos é oferecida pelo potencial criativo maior do ser humano.
Obrigada a todos eles, e OBRIGADA a você, José Eduardo!
Com admiração e carinho”,
Eliane Mendes (viúva do notável compositor Gilberto Mendes)

“Na noite de ontem, não pude fugir à tentação de ouvir a extraordinária mensagem artística daquele que eu sempre desejara ouvir e que tanto sucesso fazia, lá fora, a bem das artes do nosso Brasil.
Confesso que valeu a pena e também valeram os meus esforços em troca do que me foi ofertado. Que família abençoada a sua, caro dr. Ives! Que esbanjamento de talento!
Apesar de José Eduardo Martins ter confirmado que sim, repito o que pessoalmente ontem eu lhe disse, ou seja, que não acredito que ele consiga parar, em definitivo, a sua carreira naquela brilhante noite, como divulgado.
Em abono ao que penso, completo o que foi naquele momento interrompido: – impossível sufocar tanta arte dentro de um corpo que transborda o mais apurado anseio e capacidade de repassá-la! – É o mesmo que tentar podar, no cerne, um fantástico tronco em pleno desenvolvimento que sequer necessita de incentivo, porque sabe que alcançou o estágio máximo sem necessidade alguma de crescer mais.
Reconheçamos que a decisão é sábia, difícil de ser seguida, e… sem dúvida alguma, dolorosa para quem ainda pede mais!
Santista que sou, entretanto, comove-me a decisão, ou tentativa, desse portentoso artista de encerrar sua brilhante carreira na minha querida Santos, justamente onde foi começada, o que mais uma vez comprova a sua sensibilidade”.
Carolina Ramos (destacada poetisa santista. Mensagem ao meu dileto irmão Ives Gandra)

“Agora segue-se a pura síntese pianística, sem a presença do público. É outro nível de licor artístico, ainda, aquele que reservarás à família e aos amigos íntimos.
Ouvi o Alfred Brendel em 30 de Novembro de 2008, em Lisboa, na tournée de despedida. Tocou um concerto de Mozart. Mas o que mais me impressionou foi o encore, após muita insistência do público que o vitoriou ruidosamente. Tocou uma transcrição de Busoni de um êxtase quintessencial de Bach, a obra mais bela que conheço: Nun komm’, der Heiden Heiland
Néctar. Não há maior consolo do que a companhia deste hidromel de Bach nas mãos taumaturgas de um xamã. Provavelmente assim terá sido 18 dias depois, em Viena, onde o Luiz de Godoy esteve”.
Eurico Carrapatoso (ilustre compositor português)

“Fico feliz que o encerramento se deu de motu proprio e do jeito que você escolheu. Como diz Shakespeare, all’s well that ends well!
Gildo Magalhães (professor titular da FFLECH-USP)

“Só quero muito saber como foi e como o senhor está se sentindo… Pode estar certo de que seus alunos continuarão o seu legado. Mas não o deixarão encerrar sua carreira e o senhor terá muitos outros últimos concertos.
Fique bem e ensaie muito para a sua grande e eterna audição, mestre feliz”.
Leila Kyomura (jornalista do Jornal da USP)

“Que belíssima carreira musical!!!!
BRAVO!!!!!
Aplaudo de pé!!!!
Grande abraço”
Maria Clara (bisneta do compositor Henrique Oswald)

Clique para ouvir, de Henrique Oswald, “Rêverie” op.4 nº2, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=kQVASBH6oRM

“Li com emoção seu relato dos momentos que envolveram seu último recital, mas não se engane, o som maravilhoso que você sempre arrancou dos pianos de todo o Planeta com mágica beleza continuarão pairando pelo éter de todo o Universo. O seu amor pelo teclado e o empenho com o qual você sempre se dedicou na busca da excelência não se perderão pelo tempo, continuarão sendo formas de energia, sutil mas vigorosa, se expandindo além do nosso limitado mundo material, uma luz a clarear os ainda pouco entendidos horizontes do espírito que espera algo mais do que as palmas  da plateia, mas segue, com retidão e caridade, o instinto do coração que almeja o contato com o Divino.
Uma honra contar com sua amizade”.
Marcos Leite (arquiteto)

“Bom quando um ouvinte diz que o pianista poderia estar a tocar por mais alguns anos. Sinaliza que foi acertada a decisão de finalizar gloriosa carreira. Sempre será dele a ocasião de terminá-la. Tranquilidade e prudência são determinantes”.
Belisário M. Bettencourt (leitor)

Acredito firmemente que, se não tivesse gravado os 25 CDs, a grande maioria a privilegiar o repertório pouco frequentado ou jamais registrado, poderia penetrar no sombrio caminho depressivo. As palavras proféticas de meu querido amigo belga-flamengo e diretor da De Rode Pomp, André Posman, “é preciso deixar o seu legado”, deixando-me absolutamente livre para escolher repertórios, resultaram. Inúmeras gravações estão presentemente no Youtube e Spotify. Se, dos cinco LPs gravados do final da década de 1970 ao princípio dos anos 1990, guardo reservas quanto à técnica da gravação e à qualidade dos pianos, não há uma só faixa dos meus 25 CDs que eu lamente. Atravessava o Atlântico sabedor de que encontraria as melhores condições possíveis para as sucessivas gravações. A acústica da mágica capela Saint-Hilarius (séc. XI) em Mullem, na região flamenga da Bélgica, Johan Kennivé, extraordinário engenheiro de som, pianos impecáveis…

Sob outra égide, quantos não foram os blogs dedicados a excelsos pianistas que deixaram as suas marcas digitais impregnadas de elementos essenciais: labor, respeito à composição, criatividade, imaginação e poesia? Quando Pierre Boulez afirmou que o culto respeitoso à música é uma questão de vida ou de morte, expressava verdade insofismável.

Continuarei estudando obras novas e voltando meu olhar às criações eleitas que apresentei em público. Regina e eu visitaremos composições a quatro mãos e a dois pianos. Não deixaremos de apresentá-las em reuniões privadas. Em área outra que também amo, dois livros fervem em minha mente. Resultarão.

Tenho à cabeceira de meu leito o expressivo testemunho ao final da saga de “Jean Christophe”, um dos grandes romances do século XX. Creio que não poderia ser outra a epígrafe do presente blog. Bem hajam os leitores que me privilegiaram nessa transição, com palavras que já penetraram no meu de profundis.

Clique para ouvir, de J.S,Bach, Awake, the voice is sounding, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=0nQUzeqdu4s&t=2s

I’ve received generous messages about my last public performance and chose some of them for this post. The city of Santos was the right choice. I’ve lived some unforgettable moments there since my first recital on November 20, 1957. There have been 15 recitals over the decades in eight different halls in the beautiful city by the beach. My friendship with the remarkable composer Gilberto Mendes, a native of Santos and a brother-like friend, was a highlight in my life.