Tardia revisita


Daqui a séculos, abaixar-se-ão alguns olhos para ler estas linhas,
ou erguer-se-ão para contemplar não sei qual monolito
que talvez a esta hora se está levantando
em memória de um homem ou de um sucesso? Quem sabe?
O que mais vezes ludibria a voracidade do tempo não é a pedra; é o livro.

Alexandre Herculano
(Vale-de-Lobos, 5 de Março de 1870)
(inserido no Almanaque Bertrand, 1952)

Estava reorganizando os livros nas estantes quando me deparei com o “Almanaque Bertrand” de 1952 (399 páginas). Tivemos outros, de anos diferentes, que se perderam pelas décadas. Entre os muitos livros sempre consultados, lá se encontrava o esquecido exemplar que tantas alegrias e sonhos trouxe ao adolescente que eu fui.

O Google sucintamente historia a trajetória do Almanaque: “Almanach Bertrand é um almanaque editado pela Livraria Bertrand, de Portugal, fundada na primeira metade do século XVIII pelos irmãos Bertrand. O Almanaque Bertrand, de tiragem anual, foi publicado de 1899 (com data de publicação de 1900) até 1970 (com data de publicação de 1971), perfazendo 72 edições, regressando quarenta anos depois em 2011, continuando até aos nossos dias, contendo calendários, artigos, poemas, provérbios, anedotas, caricaturas e as famosas adivinhações”.

Durante um bom tempo, intermediando as leituras mais particularizadas e lidas na íntegra, folheava, àquela época remota, as páginas dos Almanaques Bertrand e as recordações afloraram, assim como as tantas interrogações voltadas à Cultura, ou mais adequadamente, Culturas, segundo a abrangência do notável Alfredo Bosi, crítico e historiador da literatura.

Entre a enorme quantidade de material, sempre tratado de maneira sucinta, perpassavam temas os mais variados sobre história, biografias, literatura, poesia, contos, geografia, cidades, monumentos, artes, amenidades… Há inúmeras matérias sobre regiões e cidades portuguesas com suas diversidades, costumes, festejos. Distribuído no Brasil, o Almanaque Bertrand privilegiava cidades do país e muitos colaboradores eram brasileiros. Sobre São Paulo, há a foto do Edifício Esplanada e a explanação: “A mais recente obra de arquitetura construída em S. Paulo. O seu desenho, idealizado pelo engenheiro Niemeyer, o mesmo que projetou o edifício das Nações Unidas em Nova York, é extraordinário pela estranha leveza que aparenta à vista a sua estrutura. Esta obra, como modelo, tem tido muitos apreciadores, e o seu estilo já se encontra registrado nos catálogos mundiais de engenharia, como sendo a moderna arquitetura brasileira”.

No volume em pauta há texto sobre Mozart, Bernard Shaw, Rei Gustavo V da Suécia, Camões ou, numa abertura, “Curiosidades Histórico-Literárias”, a abranger quantidade de autores da Grécia Antiga ao século XIX que enriqueceram o pensar e as letras.

Um dos objetivos do Almanaque Bertrand era o de evidenciar, nos textos dedicados às figuras ilustres, características que pudessem interessar aos leitores, incluindo certas particularidades. As matérias mais longas e que demandaram pesquisa foram assinadas por figuras ilustres, outras mais decorrentes de material de interesse enviado por leitores: fotos de cidades e monumentos, igrejas e edificações históricas. Da minha área específica, Música, se o artigo sobre Mozart prepondera, há outros voltados a ela: “Música executada em instrumentos de vidro”, “Violino mudo”.

Aprende-se através de matéria assinada por António Baião, “Herculano e Castilho”, comentários a respeito do relacionamento entre os notáveis António Feliciano de Castilho (1800-1875), autor, entre muitas obras, de polêmico método de leitura, e Alexandre Herculano (1810-1877). Uma grande amizade se desfaz após crítica de Castilho ao consagrado “Eurico, o Presbítero”, do renomado escritor, poeta e historiador. Ao leitor apresento extrato de uma carta de Castilho a Herculano (23/02/1847) em que a lhaneza se faz presente: “A amizade sólida dum homem de juízo não se destrói por uma pequena e forçada omissão de civilidade. Enfim, não quero endoidecer procurando o que de sorte nenhuma poderia achar; seja qual for, acredite V.Sª que, apesar de não saber desculpá-lo perante o meu coração, sou ainda e serei sempre, Amigo muito certo e obrigado, António Feliciano de Castilho”.

Quanto ao conjunto literário, poético, musical, artístico, textos do Almanaque fazem-me lembrar do material inserido nos cadernos “Nanico – Homeopatia Cultural”, título da publicação do competente editor Cláudio Giordano, que durante um bom período foi bálsamo cultural.

Um dos artigos, “Clube colonial de caçadores”, aponta com naturalidade para prática abominável há tempos “abandonada”. Caçadores ao lado de elefante e leão abatidos se orgulham dos feitos. Por vezes determinadas chamadas tinham pouco mais de um parágrafo, breve nota apenas, mas havia também, em várias partes do Almanaque, adivinhações, palavras cruzadas, charadas que, preenchidas pelos leitores, tinham a respostas corretas no Almanaque do ano a seguir. Charges plenas de humor sadio enriqueciam o Almanaque Bertrand de 1952.

Voltar ao ano 1952 através do Almanaque Bertrand, que alcançava uma juventude ávida do conhecimento, faz-me refletir sobre o desiderato de não tornar a leitura do anuário maçante, daí a variedade de material diversificado, leve, mas não desprovido de interesse, que entendo façanha alvissareira. Fico a pensar, nos meus 85 anos, na alienação plena de parte da juventude atual, que não mais tem interesse pela leitura. A obra em pauta, ligeira, trazia inúmeras fontes, a levar o jovem a despertar para aprofundamentos ao longo da existência. Sob outra égide, sobressai o trato da língua portuguesa sem descuidos, que se esvaiu em nossas terras nas sete décadas decorridas desde a publicação do Almanaque Bertrand em foco, mormente após a era internética. Nossos principais sites primam sem rubor algum por deslizes gramaticais e falta de conteúdo. Tempos outros, complexos.

On a shelf I found, behind other books, the Bertrand Almanac dated 1952, an annual publication containing miscellaneous information related to many general fields. I remembered reading it in the past and, when leafing through it, memories came to the surface.