Navegando Posts publicados em dezembro, 2023

Um sensível e inusitado gesto de gratidão

Um gatinho faz pipi.
Com gestos de garçom de restaurant-Palace
Encobre cuidadosamente a mijadinha.
Sai vibrando com elegância a patinha direita:
— É a única criatura fina na pensãozinha burguesa.

Manoel Bandeira
(“Pensão familiar”)

Figuras ilustres em inúmeras áreas tiveram especial afeto por gatos, cães e pássaros. Inúmeros textos e fotos corroboram o fato. Desde a era das fotografias, são incontáveis as imagens de músicos, pintores, literatos e poetas com seus animais de estimação.

Sob outra égide, o culto à fauna animal em sua extensão, domésticos ou não, encontra-se no Egito, na Antiga Grécia e em outras civilizações e ficou gravado na estatuária, nas pinturas em afresco, cerâmica e outros mais receptores. Cultuar esse zoomorfismo tinha sentido reverencial, máxime aos deuses, dando-lhes a forma necessária a cada destinação.

Meu dileto amigo, o competente editor Cláudio Giordano, tem brindado seus amigos há muito tempo com segmentos literários relevantes. Fê-lo recentemente ao tratar do ‘Grande Sertão Veredas’, de Guimarães Rosa. Poucas semanas atrás, Giordano enviou aos seus leitores a carta que o consagrado pintor, desenhista e poeta Paul Klee escreveu, já nos estertores da existência, a três de seus gatos, que foram fenecendo ao longo. Ela revela o quanto eles lhe foram importantes. Distingue-os, embrenhando-se nas manifestações comportamentais de cada um.

“Queridos Nuggi, Fritzy e Bimbo:

Chegado ao fim da minha vida, dirijo-lhes esta carta para lhes dar conta da importância que tiveram no meu atribulado percurso como pintor.

Creio que não teria chegado onde cheguei como artista do meu tempo sem o amor de vocês e a inspiração que nunca me regatearam.

Fiz questão de mantê-los presentes em tudo quanto fiz, desde as cartas aos poemas, passando, naturalmente, pelos quadros, em que tentei modestamente representá-los.

Vocês acompanharam-me nas horas de sofrimento e incerteza, de exílio e de privação, mas também naquelas que me deram a ilusão da felicidade. Primeiro o meu querido Nuggi, cinzento e meigo, ainda nos anos da juventude; depois, Fritzy, tigrado, brincalhão e matreiro, a que também chamei Fripouille, nos tempos mais intensos da criação pictórica e também do reconhecimento artístico pelo público e pela crítica; por fim, Bimbo, branco e discreto, já nos anos da doença e da decadência física, sempre dedicado, sempre presente, sempre terno e atento.

Agora que estou de partida, levo comigo a recordação do que vocês foram para mim e a convicção de que não teria sido o que fui, nem teria chegado onde cheguei, sem o seu amparo e dedicação. No meu íntimo, sei que voltaremos a encontrar-nos, porque não pode acabar no perecível mundo material e terreno um amor como o nosso.

Eternamente de vocês
Paul Klee”

A literatura e a iconografia destes últimos séculos são ricas no que tange a personalidades da Cultura com seus animais de estimação, muitos deles recebendo o afeto pleno dessas figuras exponenciais. A menção ínfima a essa dedicação se faz necessária:

Charles Baudelaire (1821-1867), em “Le chat”, insere no primeiro verso Viens, mon beau chat, sur mon coeur amoureux; Colette (1873-1954) reverencia os gatos durante toda a existência. Estes adquirem voz. O afeto que a escritora lhes dedicará, a tantos que percorreram sua vida, está presente ao longo de sua obra literária; T.S.Eliot (1888-1965) dedica um livro para crianças com poemas sobre gatos, “Old Possum’s Book of Practical Cats”; Cecília Meireles (1901-1964), no poema “Os Gatos da Tinturaria”, evidencia com maestria a natural nonchalance desses felinos domésticos; Jorge Luis Borges (1899-1986), em “A um Gato”, expõe em versos fulcrais a relação amorosa com seu gato e o último verso evidencia primazia do felino: Eres el dueño de un ámbito cerrado como un sueño.

O compositor português, nascido nos Açores, Francisco de Lacerda (1869-1934), entre as “Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste”, percorre extensa fauna e insere “Mon chien et la lune”, acompanhada de sugestiva epígrafe: Viens ici! / Tais-toi! / Que vois-tu? / Des ombres? / Chopin? / Debussy? / Viens ici. / Tais-toi. / Ce sont des Amis à nous. A menção a Debussy faz-me lembrar do afeto de Debussy aos seus cães.

Giacomo Rossini (1792-1868) compôs o divertido “Duetto buffo di due gatti”. Igor Stravinsky (1882-1971) e Dmitri Shostakovich (1906-1975) gostavam de cães e gatos.

O afeto do homem aos animais que com ele convivem, cães e gatos, disseminou-se e ganhou a larga preferência das populações, realidade visível, mormente nas vias e parques das grandes cidades em que são vistos em profusão cães das mais diversas raças, puras ou frutos da miscigenação.

Conheci exemplo de pleno afeto por parte do saudoso amigo e notável compositor Gilberto Mendes (1922-2016). Nos últimos anos de uma vida plena de realizações, Gilberto e sua esposa Eliane tiveram a companhia de Mel, um cão dócil. Aqueles que o visitavam puderam compreender esses laços inefáveis. Viúva, Eliane tem hoje a companhia da sucessora da Mel, Pietra.

Não obstante, lembraria o afeto do compositor russo Mikhail Glinka (1804-1857) pelos pássaros, chegando a ter 16 gaiolas em sua morada. Olivier Messian (1908-1992) os venerava, mas na natureza, e o seu “Catalogue des oiseaux” é obra capital.

Em blog bem anterior escrevi sobre um coleirinha ou papa-capim que viveu em nossa morada 33 anos. Durante minhas teses acadêmicas, em que a madrugada era fiel companheira, o coleirinha entoava o seu delicado canto e estimulava-me a continuar (vide blog: Adeus, coleirinha”, 10/05/2008). Sabedor de sua morte, um amigo me deu dois outros, que nos encantam com os seus chilreios delicados.

Clique para ouvir, de Jean-Philippe Rameau (1683-1764), “Le rappel des oiseaux”, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=IAdsA8kvcxI&t=8s

A carta de Paul Klee é ato de gratidão. Documento possivelmente único, pois pormenorizado e desprovido de quaisquer artificialismos, a revelar, sim, o mais sensível afeto.

The remarkable painter and cat lover Paul Klee’s letter to the three cats that accompanied him throughout his life, naming each of them, is full testimony to the most sensitive affection. They are portrayed in many of his paintings, photographs and letters.

Tardia revisita


Daqui a séculos, abaixar-se-ão alguns olhos para ler estas linhas,
ou erguer-se-ão para contemplar não sei qual monolito
que talvez a esta hora se está levantando
em memória de um homem ou de um sucesso? Quem sabe?
O que mais vezes ludibria a voracidade do tempo não é a pedra; é o livro.

Alexandre Herculano
(Vale-de-Lobos, 5 de Março de 1870)
(inserido no Almanaque Bertrand, 1952)

Estava reorganizando os livros nas estantes quando me deparei com o “Almanaque Bertrand” de 1952 (399 páginas). Tivemos outros, de anos diferentes, que se perderam pelas décadas. Entre os muitos livros sempre consultados, lá se encontrava o esquecido exemplar que tantas alegrias e sonhos trouxe ao adolescente que eu fui.

O Google sucintamente historia a trajetória do Almanaque: “Almanach Bertrand é um almanaque editado pela Livraria Bertrand, de Portugal, fundada na primeira metade do século XVIII pelos irmãos Bertrand. O Almanaque Bertrand, de tiragem anual, foi publicado de 1899 (com data de publicação de 1900) até 1970 (com data de publicação de 1971), perfazendo 72 edições, regressando quarenta anos depois em 2011, continuando até aos nossos dias, contendo calendários, artigos, poemas, provérbios, anedotas, caricaturas e as famosas adivinhações”.

Durante um bom tempo, intermediando as leituras mais particularizadas e lidas na íntegra, folheava, àquela época remota, as páginas dos Almanaques Bertrand e as recordações afloraram, assim como as tantas interrogações voltadas à Cultura, ou mais adequadamente, Culturas, segundo a abrangência do notável Alfredo Bosi, crítico e historiador da literatura.

Entre a enorme quantidade de material, sempre tratado de maneira sucinta, perpassavam temas os mais variados sobre história, biografias, literatura, poesia, contos, geografia, cidades, monumentos, artes, amenidades… Há inúmeras matérias sobre regiões e cidades portuguesas com suas diversidades, costumes, festejos. Distribuído no Brasil, o Almanaque Bertrand privilegiava cidades do país e muitos colaboradores eram brasileiros. Sobre São Paulo, há a foto do Edifício Esplanada e a explanação: “A mais recente obra de arquitetura construída em S. Paulo. O seu desenho, idealizado pelo engenheiro Niemeyer, o mesmo que projetou o edifício das Nações Unidas em Nova York, é extraordinário pela estranha leveza que aparenta à vista a sua estrutura. Esta obra, como modelo, tem tido muitos apreciadores, e o seu estilo já se encontra registrado nos catálogos mundiais de engenharia, como sendo a moderna arquitetura brasileira”.

No volume em pauta há texto sobre Mozart, Bernard Shaw, Rei Gustavo V da Suécia, Camões ou, numa abertura, “Curiosidades Histórico-Literárias”, a abranger quantidade de autores da Grécia Antiga ao século XIX que enriqueceram o pensar e as letras.

Um dos objetivos do Almanaque Bertrand era o de evidenciar, nos textos dedicados às figuras ilustres, características que pudessem interessar aos leitores, incluindo certas particularidades. As matérias mais longas e que demandaram pesquisa foram assinadas por figuras ilustres, outras mais decorrentes de material de interesse enviado por leitores: fotos de cidades e monumentos, igrejas e edificações históricas. Da minha área específica, Música, se o artigo sobre Mozart prepondera, há outros voltados a ela: “Música executada em instrumentos de vidro”, “Violino mudo”.

Aprende-se através de matéria assinada por António Baião, “Herculano e Castilho”, comentários a respeito do relacionamento entre os notáveis António Feliciano de Castilho (1800-1875), autor, entre muitas obras, de polêmico método de leitura, e Alexandre Herculano (1810-1877). Uma grande amizade se desfaz após crítica de Castilho ao consagrado “Eurico, o Presbítero”, do renomado escritor, poeta e historiador. Ao leitor apresento extrato de uma carta de Castilho a Herculano (23/02/1847) em que a lhaneza se faz presente: “A amizade sólida dum homem de juízo não se destrói por uma pequena e forçada omissão de civilidade. Enfim, não quero endoidecer procurando o que de sorte nenhuma poderia achar; seja qual for, acredite V.Sª que, apesar de não saber desculpá-lo perante o meu coração, sou ainda e serei sempre, Amigo muito certo e obrigado, António Feliciano de Castilho”.

Quanto ao conjunto literário, poético, musical, artístico, textos do Almanaque fazem-me lembrar do material inserido nos cadernos “Nanico – Homeopatia Cultural”, título da publicação do competente editor Cláudio Giordano, que durante um bom período foi bálsamo cultural.

Um dos artigos, “Clube colonial de caçadores”, aponta com naturalidade para prática abominável há tempos “abandonada”. Caçadores ao lado de elefante e leão abatidos se orgulham dos feitos. Por vezes determinadas chamadas tinham pouco mais de um parágrafo, breve nota apenas, mas havia também, em várias partes do Almanaque, adivinhações, palavras cruzadas, charadas que, preenchidas pelos leitores, tinham a respostas corretas no Almanaque do ano a seguir. Charges plenas de humor sadio enriqueciam o Almanaque Bertrand de 1952.

Voltar ao ano 1952 através do Almanaque Bertrand, que alcançava uma juventude ávida do conhecimento, faz-me refletir sobre o desiderato de não tornar a leitura do anuário maçante, daí a variedade de material diversificado, leve, mas não desprovido de interesse, que entendo façanha alvissareira. Fico a pensar, nos meus 85 anos, na alienação plena de parte da juventude atual, que não mais tem interesse pela leitura. A obra em pauta, ligeira, trazia inúmeras fontes, a levar o jovem a despertar para aprofundamentos ao longo da existência. Sob outra égide, sobressai o trato da língua portuguesa sem descuidos, que se esvaiu em nossas terras nas sete décadas decorridas desde a publicação do Almanaque Bertrand em foco, mormente após a era internética. Nossos principais sites primam sem rubor algum por deslizes gramaticais e falta de conteúdo. Tempos outros, complexos.

On a shelf I found, behind other books, the Bertrand Almanac dated 1952, an annual publication containing miscellaneous information related to many general fields. I remembered reading it in the past and, when leafing through it, memories came to the surface.