Joaquim Vieira e o desvelamento parcial de Lopes-Graça através de entrevistas

Uma das fatalidades da música portuguesa foi nunca ter ela encontrado,
nos três ou quatro momentos históricos em que a nossa cultura estremeceu na clara ou obscura consciência da sua missão nacional,
a personalidade ou as personalidades que,
no seu domínio próprio, encarnassem os ideais ou tendências da hora.
Fernando Lopes-Graça (1906-1994)
(“A Música Portuguesa e os seus Problemas” II)

Se pudesse, passava a vida a ouvir música.
Eduardo Lourenço (1923-2020)
(“Tempo da Música – Música do Tempo”)

A montagem de um documentário sobre figura ilustre, que permanece através de obra legada à posteridade, requer do organizador sensível acuidade na escolha dos estudiosos do homenageado. O trabalho investigativo demanda tempo, pois necessário se faz colher essencialidades dos depoimentos, inserindo-as no roteiro, o que implica outro atributo do organizador, saber selecioná-las apropriadamente.

Consensualmente, Fernando Lopes-Graça é o nome maior da criação composicional em Portugal no século XX, quiçá de sua história. Atravessando basicamente todo o século, o músico nascido em Tomar não apenas foi o grande compositor, como regente coral e pianista, legando uma vasta obra literária, na qual aos temas voltados à música se somam a tantos outros, estes, críticos em relação à contemporaneidade portuguesa em seus vários matizes. Como professor, orientou alguns dos mais proeminentes músicos de Portugal.

“Documentário Música de Graça” tem abrangência, e os depoentes, intérpretes – mormente pianistas -, musicólogos e compositores se pronunciaram em breves intervenções intercaladas, na captação precisa de determinadas características de Lopes-Graça.

Joaquim Vieira soube apreender de cada entrevistado elementos para a montagem do puzzle. Assim sendo: atuação do mestre Lopes-Graça, processos de criação, importância do legado, a abranger uma gama extensa de gêneros musicais, desde aquele dedicado aos miúdos em seus inícios pianísticos às canções corais a partir, tantas delas, do cancioneiro popular, e às obras camerísticas e orquestrais, sendo que inúmeras rigorosamente complexas na concepção e na apreensão por parte daqueles que nelas se debruçam. Sua obra para piano é extensa, expressiva, e uma das mais importantes do século XX. A amplitude de sua opera omnia, sempre rigorosa, certamente insere Lopes-Graça entre os grandes compositores do período. Em uma das várias intervenções, o pianista António Rosado, que gravou na excelência obras fundamentais de Lopes-Graça, bem evidencia a complexidade de muitas das criações, “um mundo difícil de se entrar”.

Estar ligado ao Partido Comunista rendeu-lhe inúmeros dissabores durante o prolongado Estado Novo, que se prolongou de 1933 a 1974. As múltiplas dificuldades enfrentadas corroboraram a criação de composições que permanecerão, mercê de uma força de expressão rara no amplo universo das emoções. O musicólogo e sociólogo da música, Mário Vieira de Carvalho, autor de livros fundamentais sobre Lopes-Graça, em uma de suas intervenções comenta que o compositor “… não coloca a música a serviço da política no sentido simplista do termo. Como ele próprio dizia: ‘a música não pode ser imolada em qualquer doutrinação estética ou ideológica’. Ele faz uma distinção entre música, ou seja, arte no sentido lato, e ideologia”. Corrobora a posição de Vieira de Carvalho a colocação do maestro e compositor Álvaro Cassuto, seu ex-aluno, ao testemunhar que, durante o convívio mestre-aluno, jamais Lopes-Graça falou sobre ideologia, mas apenas sobre música. O maestro António Sousa, autor de obras precisas sobre o seu conterrâneo tomarense, mormente no período em que viveu em sua terra natal, comenta que, após o 25 de Abril de 1974, retorna Lopes-Graça à militância do PCP. A preceder a fala de Sousa, ex-diretor do Canto Firme, escola referencial de Tomar, Joaquim Vieira apresenta imagens de locais da histórica cidade, tão caras ao seu filho maior.

O compositor e regente Sérgio Azevedo (1968-), ex-aluno de Graça, destaca a importância do mestre de Tomar não só para a Música, mas para as Artes e a Cultura em geral. Miguel Henriques, igualmente pertencente a plêiade de excelentes pianistas portugueses, destaca processos estruturais das criações, que se estendem das obras mais singelas às mais complexas de Lopes-Graça, posição corroborada pelo pianista francês Bruno Belthoise, intérprete de vários compositores portugueses. O pianista e regente João Paulo Santos salienta a importância das canções de Lopes-Graça. Por sua vez, a pianista Joana Gama, que recentemente gravou tão bem as “Viagens na Minha Terra” – coletânea a conter 19 peças -, ratifica a permanente presença da voz oculta dos campesinos em alguns dos quadros das “Viagens…”. “Em Monsanto da Beira, apanhando a margaça”, Joana interpreta a peça e, engenhosamente durante a execução, Joaquim Vieira insere em surdina o som dessas camponesas cantando “A Margaça” sob o ritmo dos adufes. Resultou. Foram centenas as criações de Graça para coral, criações apresentadas sob sua regência pelo coro da Academia dos Amadores de Música.

O documentário “Música de Graça” exibe excertos de vídeo, a evidenciar momentos do incansável labor do notável etnólogo corso Michel Giacometti (1929-1990), que durante décadas realizou em Portugal relevante recolha de material musical, gravando e filmando cantares do povo em diversas situações do cotidiano, captando, através da música e do diálogo, a vida e o duro labor dos camponeses em suas aldeias. Nesse vídeo, a presença de Lopes-Graça, atento à narrativa e ao som de um flautista campesino, ratifica a sua admiração por esses cantos, tantos deles harmonizados pelo mestre e, nessa versão, apresentados pelo coro da Academia de Amadores de Música, sempre sob sua regência, nas suas peregrinações pelo país.

Tantos outros preciosos depoimentos enriquecem o importantíssimo documentário organizado por Joaquim Vieira e produzido pela Nanook para a Rádio Televisão Portuguesa (RTP). Vale lembrar que algumas ilustres figuras que tiveram ligação com a vida-obra do compositor não estão presentes. Nos mais diversos documentários produzidos alhures isso ocorre. Antolha-se-me que essencialidades do intenso labor, configuram Lopes-Graça como uma das mais completas personalidades da Cultura em Portugal no século XX, pois é notável a diversidade que lhe era qualidade natural.

Não poucas vezes neste espaço tenho salientado a importância extraordinária da música portuguesa, que mereceria uma divulgação ampla no planeta. Para tanto, partituras deveriam ser distribuídas pelos governos de Portugal às entidades que se espalham pelo mundo.  A limitada atenção à Alta Cultura não é sentida apenas num só país. Sem a divulgação, sem a presença de ótimos intérpretes portugueses tocando obras referenciais fora das fronteiras, o obscurantismo se perpetuará. As qualidades insofismáveis de Carlos Seixas (1704-1742) e de Fernando Lopes-Graça, apenas como alguns exemplos da criação portuguesa, estariam a merecer o empenho dos detentores do poder. Se assim fosse, certamente suas obras entrariam em repertórios além-fronteiras. Em um colóquio em Lisboa afirmei que, se numa sala de concertos em Portugal fosse pronunciado o nome de Villa-Lobos, nosso mais ventilado compositor, uns poucos levantariam as mãos afirmando conhecê-lo. Em termos do Brasil, corre-se o risco de, ao ser mencionado o nome de Lopes-Graça, um silêncio sepulcral atestar o desconhecimento.

Tive o privilégio de participar de algumas entradas no documentário, máxime a falar sobre “Canto de Amor e de Morte” que, na opinião do saudoso compositor Jorge Peixinho (1940-1995), vem a ser “… obra mais consequente e coerente na relação entre os diversos níveis de organização que a música portuguesa, com toda a verossimilhança, terá alguma vez logrado”. Joaquim Vieira soube muito bem intercalá-las com sábios pronunciamentos sobre “Canto…” dos ilustres António Victorino de Almeida e Mário Vieira de Carvalho. Tive acesso ao único manuscrito autógrafo de “Canto de Amor e de Morte”, obra original para piano (1961), logo após obtendo duas versões realizadas por Lopes-Graça, para quarteto de cordas e piano e para orquestra. Em 2012, em edição conjunta Numérica, PortugalSom e dgARTES, foi lançado o duplo CD contendo “Canto de Amor…”, “Músicas Fúnebres”, “Música de piano para crianças” e “Cosmorame”, obras que gravei na Bélgica. Preparei a edição crítica do “Canto de Amor e de Morte” publicada pelo Movimento Patrimonial da Música Portuguesa (mpmp).

Que o relevante “Música de Graça” seja estímulo para outros documentários focalizando compositores incontestes que dignificam a criação musical em Portugal. Parabéns efusivos ao ilustre jornalista e escritor Joaquim Vieira pela organização de documento tão precioso para a arte musical.

Clique para assistir o documentário “Música de Graça”:

https://www.rtp.pt/play/palco/p12547/e735550/musica-de-graca

The documentary “Música de Graça” pays homage to the great Portuguese composer Fernando Lopes-Graça. The productor, Joaquim Vieira, an accomplished journalist and writer, selected musicians still active, some of them having known Lopes-Graça personally, who enrich the documentary addressing a variety of topics.