O filósofo Eduardo Lourenço, ouvinte seletivo

Certamente se um dia voltar para Deus
a nenhuma outra coisa o deverei
senão a estas estradas de uma melancolia lancinante
que desde o canto gregoriano até Messiaen
devoraram em mim o sentimento da realidade do mundo visível.
Eduardo Lourenço (1923-2020)

Eduardo Lourenço foi um notável filósofo, escritor, ensaísta, crítico literário, interventor cívico e professor português. Em blog bem anterior inseri um diálogo expressivo de Eduardo Lourenço com o ilustre arquiteto Álvaro Siza Vieira (1933-), trailer de “O Labirinto da Saudade” (vide blog “A problemática do legado”, 27/04/2019).

“Tempo da Música – Música do Tempo” (Lisboa, Gradiva, 2022, 4ª edição) destaca-se como apreciação do filósofo sobre uma área que lhe foi tão cara. Suas considerações distinguem-se daquelas exaradas pelo filósofo-musicólogo francês Vladimir Jankélévich (1903-1985) no que se refere ao approch, este, em seus vários livros sobre música penetrando no inefável sob o prisma musicológico-filosófico, mas a realizar por vezes a análise estrutural das obras. Eduardo Lourenço, por sua vez, exprime-se como um ouvinte sensível e esclarecido: “Da música só posso falar como receptor passivo dela, embora de uma paradoxal passividade, pois o seu efeito é o de uma comoção ou emoção a nenhuma outra comparável, e ser, ao mesmo tempo, uma espécie de viagem sem outro viajante que nós mesmos, perdidos num espaço que não é nenhum espaço conhecido e os contém virtualmente a todos”. Não obstante, há determinadas identidades entre os dois filósofos no que tange às apreciações “abstratas” ou fruto da oitiva. Nesse campo da apreciação, considere-se que muitos outros autores se embrenharam sem as ferramentas técnico-musicais, legando-nos textos críticos que levam à reflexão.

O recolhe dos textos e fragmentos de Eduardo Lourenço sobre música esteve sob os cuidados da professora, historiadora da arte e musicóloga Barbara Aniello, que, num abrangente prefácio, testemunha o labor junto a Eduardo Lourenço, pois a primeira edição de “Tempo da Música – Música do Tempo” data de 2012.

A diarística do filósofo sobre música é de curta ou média dimensão e compreende 25 escritos sine data e aqueles obedecendo a critério cronológico-geográfico (Coimbra, Alemanha, França), finalizando pelos mais recentes. Ao todo tem-se 99 textos.  Alguns a conter apenas um breve parágrafo, certamente para que uma ideia não fugisse.

Escrever a respeito de uma área tão sensível, não sendo músico ou teórico e valendo-se apenas da atração e gosto musical, pode apresentar uma série de armadilhas. Todavia, o amor dedicado à Música é bem expresso em uma frase do filósofo: “Se pudesse, passava a vida a ouvir música”. No livro em apreço, não poucas vezes Eduardo Lourenço testemunha a devoção. Creio que, para o leitor não pertencente à área, assim como para aqueles que se dedicam à Música, alguns de seus conceitos indicam a apreciação sincera, lírica, associada a outras artes, filosófica, onírica por vezes, das composições que ouve presencialmente nos teatros ou em gravações. A gama apreciativa se estende desde o canto gregoriano, mas se evidencia majoritariamente a partir do seu ídolo maior, J.S.Bach (1685-1750), a prolongar-se até a contemporaneidade.

Diferencia-se Eduardo Lourenço da grande maioria dos ouvintes sem interesse pela música contemporânea, possivelmente devido à Torre de Babel a abrigar um número de tendências que proliferam na atualidade. Os contemporâneos escolhidos por Eduardo Lourenço chegavam aos seus ouvidos consagrados há poucas décadas. Devido à sua escuta voltada à tradição, poderiam não o seduzir. Não obstante, nas fronteiras dos anos 1950, nessa diarística voltada à música, já se mostrava fascinado igualmente pelas novas linguagens que penetravam as salas de concerto: Webern, Alban Berg, Xenakis, Honegger, Hindemith, Schönberg, Cage, Boulez… Sua mente privilegiada capta o que se lhe apresenta como essencial. A leitura dos seus textos sobre música, quando realizada por músico, atesta o entendimento do filósofo au-delà da partitura e essa visão estabelece um sentido apreciativo a mais. Menos do que a forma, que pressupõe a análise especializada, interessa-lhe, pela sua formação não musical, a resultante sonora que desencadeia a apreensão singular. E essa consequência o fascina, sempre. Vê-se um homem amante do passado, mas hodierno na captação do novo. À formação acadêmica não musical de Eduardo Lourenço, ao ato professoral praticado em Portugal e centros de excelência mais ao Norte, somam-se seus relevantes livros pertinentes à área de atuação e a presença da música a pulsar numa voluntária necessidade de ser externada na solidão.

Eduardo Lourenço em breve escrito se posiciona: “Ora, nada mais propício do que a música para justificar o abismo que há entre senti-la e compreendê-la… Sentir é o grau ínfimo da apropriação: é só um ouvir com os sentimentos possíveis de prazer, desprazer, deleite ou aborrecimento, em suma, um ouvir gostando ou não gostando”. Nessa dualidade emocional, o filósofo se posiciona: “Estive sempre distraído com o mundo, uma distração proporcional a toda a atenção que prestei à música interior… nunca consegui decifrar o sentido dessa atenção. É o meu mundo interior” (1999).

No próximo blog colocarei observações de Eduardo Lourenço a respeito da apreensão que faz de determinadas obras mestras, sempre com os ouvidos e a mente abertos.

Eduardo Lourenço, a notable philosopher, writer, teacher and critic, has left us writings on music of profound insight. Without theoretical knowledge, he comments on compositions he hears in live performances or on recordings. Music was essential in the philosopher’s life. In “Tempo da Música – Música do Tempo”, a collection of notes on music written by a non-musician, he talks about the emotions arisen by music and establishes brilliant relationships between the art of sounds and other forms of artistic expressions. A book that’s worth reading.